Eventual escalada militar entre Venezuela e Guiana traria efeitos negativos para toda a região, diz especialista em relações internacionais da Unesp

Líder Nicolas Maduro mantém tom ambíguo quanto a possíveis caminhos para implementar decisão de plebiscito que prevê incorporação de parte do território da vizinha Guiana. Ações do governo venezuelano dificultam desejo da diplomacia brasileira de projetar liderança na América do Sul. Conflito aberto poderia afetar desde investimentos internacionais até diálogo e cooperação regional.

O referendo convocado no domingo, 3/12, pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, para submeter à aprovação popular a decisão de criar um novo estado denominado Guiana Essequiba, que compreenderia parte do território de Essequibo, que pertence ao país vizinho da Guiana, continua suscitando cada vez mais dúvidas. Embora o governo tenha divulgado os dados do referendo em tempo recorde, assegurando que 96% dos votos defenderam o “sim” à proposta, ainda não está claro o que vai decorrer daí.

De acordo com o presidente do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) da Venezuela, Elvis Amoroso, a participação popular foi “esmagadora” e ultrapassou os 10,5 milhões de votos para “Sim”, dentre um total de 20 milhões de eleitores registrados no país. Após a divulgação do resultado das urnas, o presidente Maduro classificou o pleito como um dia “histórico”: “O povo da Venezuela falou alto e bom som para lutar”, declarou. E na terça-feira (5), em seu perfil no X, publicou o que chamou de “o novo mapa da Venezuela”, onde o território do país aparece acrescido da região de Essequibo. No mesmo dia, o líder venezuelano apresentou um projeto de lei que regulamentará a criação do novo Estado. Os deputados do legislativo federal venezuelano deliberarão sobre a proposta nesta quarta-feira (6). Maduro também ordenou que a PDVSA, empresa estatal petroleira venezuelana, conceda licenças para exploração de petróleo e gás na região, e disse que os EUA não devem se envolver na disputa.

Marília Carolina Barbosa de Souza Pimenta, professora de relações internacionais do câmpus da Unesp em Franca, e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA e América Latina (INCT-INEU), destaca o caráter histórico da reivindicação da Venezuela, mas também associa a iniciativa à movimentação política de Maduro visando as próximas eleições no país.

“É importante estabelecer que é uma causa antiga: essa reivindicação existe desde o século 18. As fronteiras da Venezuela chegam naturalmente ao Rio Essequibo. Portanto, é natural a ideia de se constituir esse espaço. Maduro falou muito sobre libertação, sobre continuar a luta pela libertação dos povos da América Latina. Portanto, esta iniciativa seria uma consequência do processo de independência da Venezuela”, explica. Por outro lado, é importante ressaltar que se trata de outro país, dotado de uma história singular, com suas próprias instituições políticas e administrativas e uma população que usa como língua nacional o inglês, não o espanhol.

“Esse referendo que o Maduro organizou foi para que se manifestasse a população venezuelana, e não a população de Essequibo. Isso gera uma série de questionamentos com relação à legitimidade dessa proposta. O que ela significa de fato? Anexação territorial? Invasão militar? Ou apenas a possibilidade de começar uma negociação com a Guiana no que se refere à administração e o controle dessa região?”, questiona a pesquisadora.

Essequibo é uma região que conta com grande volume de petróleo, e parte destes recursos já são explorados pela empresa americana Exxon Mobil desde 2015. E a Guiana já sinalizou a possibilidade de intensificar a exploração de petróleo nos próximos anos. “As reservas em Essequibo estão estimadas em 10 bilhões de barris de petróleo. Obviamente, esses recursos seriam importantes para a Venezuela num momento de aprofundamento da crise política, econômica e social. O Maduro vai pleitear a reeleição em 2024. Assim, buscar mais espaço, mais território, mais reservas, poderia abrir possibilidades políticas a partir dos recursos gerados pela exploração do petróleo. Essa ação é absolutamente crucial nesse momento para o Maduro”, explica a professora da Unesp.

Como potência regional, o Brasil se vê implicado na estranha movimentação de Maduro, e o presidente Lula já se expressou quanto aos possíveis desdobramentos, dizendo esperar que “o bom senso prevaleça”. “Sem dúvida, este é o primeiro teste para a diplomacia e para o exercício da liderança do governo Lula na região. Obviamente que, para ele, a via do bom senso significa evitar, a qualquer custo, uma saída militar. Na verdade, ele quer dizer que uma escalada militar maior na região  é justamente o que não precisamos no momento”, diz a docente.

“Temos duas guerras em curso e atravessamos um contexto mundial de crise das democracias, com uma série de revezes em andamento sobre os processos democráticos. Se observarmos a quantidade de crises que estamos enfrentando ao mesmo tempo no sistema internacional, realmente tudo o que não precisamos no momento é de mais uma crise na América do Sul, ainda mais uma crise militar.”

Ela também comenta a atuação do assessor especial para assuntos internacionais da presidência Celso Amorim, que  recentemente visitou Caracas duas vezes para conversar com Maduro e com políticos venezuelanos, a fim de dissuadi-los de dar seguimento à empreitada. “Lula busca resgatar a sua projeção de liderança na região. A ação do Maduro gera um constrangimento ao desejo de projeção de poder do Brasil, além de abrir caminho para pressões internacionais, seja por parte da ONU ou dos Estados Unidos. Mesmo Cuba tem historicamente uma boa relação com a Guiana”.

Neste contexto, uma possível invasão militar da Venezuela a Guiana pode gerar resultados absolutamente negativos para toda a região, acarretando também, além das dores e da destruição que acompanham qualquer conflito bélico, a perda de investimentos internacionais e das perspectivas de colaboração regional, que poderiam incluir, por exemplo, a reativação de dispositivos de paz estabelecidos pelo tratado da UNASUL.

“Uma invasão militar será absolutamente desastrosa do ponto de vista dos esforços de colaboração que foram desenvolvidos desde o início dos anos 2000, e que incluíram, principalmente, a criação da UNASUL. Ou mesmo os mecanismos de diálogo visando a cooperação na Amazônia, que já existem e poderiam ser ativados num momento de crise como esse. Vale então questionar por que o Maduro tem insistido nessa questão. A ONU tem tentado intervir e estabelecer o diálogo diplomático, mas ele não deixa claro se vai haver uma invasão militar. Ele recorre a uma linguagem militar que, de fato, acaba acirrando os ânimos dos atores envolvidos”.

Ainda de acordo com a especialista em relações internacionais, as vias diplomáticas são sempre as mais desejáveis. Entretanto, ela acredita que possa existir também um caminho simbólico a ser explorado, a fim de que a população de Essequibo também seja ouvida por meio de um referendo para sinalizar sua posição.

“É importante que essa população seja ouvida e também vá às urnas. Essas pessoas poderiam demonstrar se querem ser parte do Estado venezuelano, se querem obter a cidadania venezuelana, se querem a estatização da exploração dos recursos ou mesmo seguir os caminhos propostos pelos políticos venezuelanos para a exploração dos seus recursos etc. É importante que a própria população decida qual é o caminho desejável”, diz.

Confira também a entrevista no Podcast Unesp.

Imagem acima: Nicolas Maduro mostra desenho de mapa da Venezuela alterado para incluir o estado de Essequibo, que pertence à Guiana.