Até a manhã de quarta feira, cerca de 14 mil imóveis localizados na grande São Paulo ainda sofriam com a falta de energia elétrica, devido às fortes chuvas que se abateram na tarde de sexta e afetaram a rede de transmissão em diversas partes do Estado. O atraso na normalização do fornecimento de energia ocasionou uma chuva de críticas, tanto sobre a Enel Brasil, empresa privada a quem cabe explorar o serviço de fornecimento de energia elétrica na região, quanto sobre o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e principalmente sobre o prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB).
Até agora, foram confirmadas oito mortes decorrentes das chuvas em regiões distintas do Estado. A Defesa Civil do Estado e de várias cidades e o Corpo de Bombeiros registraram mais de 2 mil chamados em ocorrências em 40 cidades. Ao todo, o temporal deixou ao menos 2,5 milhões de pessoas sem energia. A Defesa Civil informou que a velocidade dos ventos chegou a 151 km/h em Santos. Na capital, as rajadas chegaram a 103,7 km/h, um recorde dos últimos 5 anos.
Em razão das fortes chuvas, a falta de energia paralisou instalações e estações elevatórias da Sabesp, afetando o nível dos reservatórios e o abastecimento de água em diversas regiões. Em nota, a Sabesp afirmou que desde sexta-feira está com equipes mobilizadas e em constante contato com as concessionárias de energia para restabelecer todas as instalações o mais breve possível e também adotou medidas operacionais para amenizar a situação.
Para o professor e especialista em gestão de recursos hídricos da Unesp em Ourinhos, Rodrigo Lilla Manzione, fenômenos como este vão ser cada vez mais comuns devido às mudanças climáticas. Mas o que ocorreu neste caso foi uma forte influência do El Niño.
“O El Niño tem deixado os eventos climáticos mais fortes e poderosos. Ele é um combustível para esses eventos, porque quando certos fatores climáticos se combinam, como pressão, temperatura e umidade, o resultado é o surgimento de eventos mais poderosos. E envolvendo não só água, mas também nuvens de poeira, como foi visto no interior. O El Niño fez com que esse episódio fosse mais forte, persistente e varresse grande parte do Estado”, diz.
Manzione alerta para o despreparo das cidades brasileiras para enfrentar estes eventos. “A gente já sabe dos problemas relacionados às questões das enchentes e das ondas de calor. Agora estamos vendo as ventanias e tornados varrendo os nossos municípios. As nossas cidades não estão preparadas. Algumas estão se movimentando para integrar as redes que reúnem cidades resilientes. Existe o portal Brazilian Cities Network, que mostra diversas iniciativas em cidades mundo afora. No Brasil, aparecem algumas como Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Porém, são apenas protocolos de intenções. Medidas efetivas não têm sido colocadas em prática. Vide o que aconteceu nos últimos meses em Porto Alegre com os furacões que têm ocorrido lá”, analisa.
Segundo o professor, é necessário tirar as propostas do papel e para isso é necessário investimento pesado na Defesa Civil e em diversos pontos das cidades, incluindo medidas estruturais.
“A gente tem diversos relatos de ações para tornar as cidades mais resilientes. Essa é uma palavra muito repetida muito aqui no Podcast Unesp: resiliência. Nos Estados Unidos, por exemplo, existe um ranking das cidades mais resilientes. Denver, no Colorado, é a número um. E as três últimas são Jacksonville, Tampa e Miami. Todas essas três cidades estão localizadas na Flórida, que é um dos estados mais vulneráveis à mudança climática dos Estados Unidos, justamente por causa da elevação do nível do mar e a quantidade de pântanos que existem por lá. Então essas cidades são bem vulneráveis e isso aumenta os riscos. O risco é produto da vulnerabilidade, do perigo e da quantidade de elementos expostos”, diz ele.
O estudioso pondera que, ao assumirem a administração das suas respectivas cidades, os prefeitos herdam um legado de décadas de descaso e falta de investimentos em aspectos como infraestrutura urbana, infraestrutura climática e até equipes de poda adequadamente preparadas. “E a primeira coisa que os gestores cortam é a verba para manutenção, alegando contingenciamento. Porém, nesse caso específico de São Paulo, onde cerca de 500 mil pessoas ainda estavam sem eletricidade mesmo três dias depois do evento, existe uma situação um pouquinho mais complicada, que é a qualidade do serviço prestado pela companhia vencedora do processo de privatização. Tem sido noticiado que essa companhia (Enel) diminuiu muito a quantidade de equipes treinadas fazer o religamento da transmissão elétrica. Sem equipes, não há como religar a energia. E muitas vezes, por contrato, a prefeitura não pode botar a mão na rede. A rede não pertence mais à prefeitura, não pertence mais ao Estado, pertence àquela companhia. É a ela que cabe resolver o problema durante o tempo de duração da concessão”, diz.
Durante os últimos dias, muito se falou sobre questões de realizar uma fiação subterrânea na cidade de São Paulo, para que as árvores não interfiram mais nos cabos da rede elétrica. Porém, Manzione aponta as complexidades desse tipo de implementação.
“Para o caso dos vendavais, é uma ótima solução. Só que, quem reside em São Paulo, sabe o que acontece quando uma grande avenida começa a passar por reformas, o caos que se sucede. Então, não é tão simples enterrar a fiação junto com a tubulação”, diz. “Outra questão muito importante em São Paulo é a diferença entre a cidade legal e a cidade ilegal. A cidade legal é aquela que paga impostos, que recolhe o seu IPTU e recebe os serviços da prefeitura. Mas tem a cidade ilegal, a cidade invisível. São aquelas pessoas que moram em favelas e moradias impróprias por não terem alternativa. E o poder público permite que esse tipo de coisa aconteça. A água, a luz são levadas para esses locais de forma clandestina. Na teoria, não há serviço prestado para essas pessoas, então não há por que a concessionária atendê-las. Veja a complexidade do problema”, diz.
O professor destaca a possibilidade de empregar os pesquisadores das universidades paulistas para colaborar nesses casos. “A universidade está à disposição da sociedade para auxiliar com esse tipo de questão, em que o conhecimento técnico e especializado se faz necessário. São Paulo conta com três das principais universidades do Brasil: USP, Unesp e Unicamp. Nós temos inúmeros institutos de pesquisa de renome, onde atuam mestres e doutores formados no Brasil e no exterior. É preciso exercitar parcerias com o poder público. A gente precisa desenhar uma política de longo prazo e desenvolvê-la.”
Confira a entrevista completa no Podcast Unesp.
Imagem acima: população de São Paulo protege-se da chuva. Fernando Frazão/Agência Brasil.