Cursos interdisciplinares ganham espaço nas universidades como aposta para engajar estudantes e atualizar modelo de ensino

Em paralelo ao modelo das habilitações específicas, cerca de 50 instituições de ensino superior do país já oferecem também graduações generalistas, organizadas em grandes áreas do saber. Sistema inspira novas formações, desperta interesse entre jovens e suscita debate entre especialistas em educação.

Se, por um lado, uma queda consistente nas matrículas no ensino superior tem sido registrada nos últimos anos, algumas instituições públicas e particulares já procuram responder a esse movimento buscando novos caminhos pedagógicos e reestruturando o modelo curricular oferecido aos estudantes. Uma destas inovações envolve a busca por um ensino mais interdisciplinar, capaz de proporcionar acesso a uma palheta mais variada de informações e conhecimentos, e que muitas vezes se aproxima do modelo de ensino universitário adotado em outros países. 

Segundo o Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior, existem hoje 48 cursos interdisciplinares disponíveis no Brasil, oferecidos por instituições públicas e privadas. Destas, 39 são universidades federais. Estes números podem parecer apenas uma gota no vasto oceano do ensino superior brasileiro. Mas, aos poucos, os cursos superiores interdisciplinares consolidam sua reputação como alternativa arejada e moderna ao currículo das universidades mais tradicionais, e mais capaz de atender às demandas do mercado de trabalho.

Nas instituições que apostam na interdisciplinaridade, os estudantes não se limitam a dominar um conjunto bem delimitado de saberes e práticas essenciais para exercerem uma profissão específica. Pelo contrário, recebem uma formação generalista e dinâmica que lhes permite transitar por diferentes áreas do conhecimento e reconhecer suas interligações, contradições, limites e contribuições, a fim de possibilitar a eles navegar pela sociedade contemporânea.

A proposta é tão simples quanto desafiadora: retirar as diversas áreas do saber de suas caixinhas e integrar conhecimentos. Para isso, os cursos interdisciplinares oferecem aos alunos uma grade diversa de disciplinas, que tem por objetivo dar suporte teórico e prático para que o aluno desenvolva e apure seu senso crítico.

“É preciso ter em mente que estamos em um momento em que tudo muda muito rapidamente. Formar um profissional com essa perspectiva aberta me parece mais interessante do que apostar no modelo mais tradicional e mais especializado”, avalia Fernanda Cardoso, pró-reitora de Graduação da Universidade Federal do ABC (UFABC), pioneira no modelo e única instituição do país a oferecer apenas cursos interdisciplinares como entrada na universidade, tanto no Bacharelado como na Licenciatura.

As modalidades oferecidas são: Bacharelado em Ciência e Tecnologia, Bacharelado em Ciências e Humanidades, Licenciatura em Ciências Humanas  e Licenciatura em Ciências Naturais e Exatas. No caso do Bacharelado em Ciência e Tecnologia, considerado o mais versátil, o aluno pode optar por formações específicas em Biotecnologia, Ciência da Computação, Ciências Biológicas, Física, Matemática, Química e Neurociência, ou em uma das oito engenharias oferecidas na instituição (ambiental e urbana, energia, informação, instrumentação, automação e robótica, materiais, aeroespacial, biomédica e gestão).

A UFABC, referência em cursos interdisciplinares entre as federais. Crédito: Vinícius Alves.

Os egressos desse modelo deixam a faculdade conhecendo toda uma grande área do saber, com forte fundamentação teórica e prática. Com o diploma na mão, tem as opções de seguir para o mercado de trabalho, dar continuidade a seus estudos na própria instituição, porém em um curso de formação específica tradicional, como engenharia, medicina ou relações internacionais, ou ainda ingressar na pós-graduação.

Quem vê de fora sempre pergunta: é possível estudar assim? Eu respondo que não é mais possível formar alguém de outro jeito.


Fernanda Cardoso, pró-reitora de Graduação da UFABC

“Quem vê de fora sempre pergunta: é possível estudar assim? Eu respondo que não é mais possível formar alguém de outro jeito, já que vivemos em um mundo em constante transformação”, diz Fernanda. “Nossos alunos estarão sempre juntos das mudanças, sem sofrer defasagem. Estamos formando gente que sabe, desde o primeiro dia, pensar fora da caixa – inclusive das caixas das disciplinas. Desde o começo, eles são provocados a conviver com o diferente e a ter autonomia sobre sua trajetória.”

No entanto, apesar dos benefícios e aparentes vantagens, a proposta dos cursos interdisciplinares ainda encontra algumas resistências nas instituições de ensino mais tradicionais e entre alguns docentes.

“A educação tem um discurso progressista, mas ainda é muito conteudista e tem muito foco na avaliação. É preciso construir o conhecimento com os estudantes”, diz Maria Antonia Ramos, docente do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Unesp, campus de Rio Claro, e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Pedagogia Universitária da Unesp (Gepu). “Os professores precisarão aprender a trabalhar com áreas do saber diferentes da sua formação, com humildade para reconhecer que não sabem tudo. Eu venho da área da educação, mas precisarei saber como um físico constrói seu conhecimento”, diz. Ela avalia que essa guinada, por parte dos professores, é importante para que haja um salto qualitativo na formação dos estudantes. “Uma educação realmente transformadora e crítica precisa desenvolver práticas que articulem diferentes áreas do conhecimento”, diz.

A virada nas universidades federais

Em 2007, quando teve início o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras, o Ministério da Educação (MEC) induziu as instituições de ensino superior a realizarem reestruturações em seus cursos e currículos, com o objetivo de aprimorar o processo formativo na graduação. A ideia era implantar o regime de ciclos no Ensino Superior para ampliar as opções de formação dentro das universidades. A decisão se inspirou em exemplos internacionais, incluindo o modelo dos colleges dos EUA, porém pensando em um desenho capaz de responder às demandas de formação acadêmica do Brasil. Foi ali que os Bacharelados Interdisciplinares, popularmente chamados de BIs, começaram a ganhar espaço.

Em paralelo, à época de criação dos BIs ocorria um processo de interiorização da oferta de vagas nas universidades, por meio da criação de novos institutos federais de ensino superior e da implantação de novos campi, além da ampliação da oferta de vagas nas instituições já consolidadas.

Nesse contexto, parte das universidades federais passou a oferecer os Bacharelados Interdisciplinares, que se apresentaram como um modelo alternativo às graduações longas, com itinerários de formação rígidos e predefinidos. São programas de formação, em nível de graduação, com uma proposta generalista e organizados em grandes áreas do conhecimento, como Artes, Ciências da Vida, Ciência e Tecnologia, Ciências Naturais e Matemáticas, Ciências Sociais, Ciências da Saúde, e Humanidades.

Todos, independentemente da área, conferem diplomas de nível superior válidos para ingressar em uma pós-graduação, prestar concurso público, ingressar no mercado de trabalho ou seguir para a formação superior em um modelo tradicional, mas em tempo menor, obtendo ao final dois diplomas.

“O estudante não tem que escolher aos 18 anos o que vai fazer para o resto da vida. Ele dispõe de anos para experimentar primeiro. Conheço um jovem que queria ser médico e no meio do caminho se encantou pela sociologia. Ele pode fazer essa troca por estar em um BI”, conta Renata Veras, coordenadora do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Este modelo permite que o aluno viva a universidade e experimente várias áreas antes de escolher que caminho profissional seguir. Ele tem uma inserção precoce na pesquisa, na monitoria e pode se familiarizar com o ambiente universitário.”

Uma das principais características dos BIs é a interdisciplinaridade e o diálogo entre áreas do conhecimento. A Universidade Federal da Bahia, por exemplo, oferece bacharelados interdisciplinares em Humanidades, Ciência e Tecnologia, Artes e Saúde, que tem como obrigatória a disciplina “Contemporaneidade”, para discutir política e economia do Brasil, permitindo uma formação não restrita apenas à área da saúde.

Outro grande diferencial é a flexibilidade curricular. Isso porque, em geral, o número de disciplinas obrigatórias é reduzido e o aluno pode montar sua grade com liberdade, segundo seus interesses e planos futuros. Esse ponto, no entanto, requer atenção: a universidade deve contar com ações complementares para evitar a perda de foco ou evasão.

Na UFABC, por exemplo, existe um projeto de tutoria, que já funcionou em diversos modelos, para que todos os alunos que ingressarem na universidade tenham algum acompanhamento, para evitar que o excesso de possibilidades se transforme em falta de foco.

“Desde pequena, sempre brinquei de cientista, mas por mais que gostasse das aulas na escola, não conseguia me identificar especificamente com uma disciplina ou outra. Eu achava que história e geografia, por exemplo, contribuem muito com o aprendizado de biologia, física e química. Quando prestei vestibular, a possibilidade de entender tudo mais profundamente, de forma integrada, me atraiu”, conta Bianca Barboza, estudante que acaba de concluir o Bacharelado em Ciência e Tecnologia da UFABC. Atualmente, ela completa a graduação no curso de Neurociência, na mesma instituição.

Vale reforçar que, além do bacharelado, algumas universidades federais, como a UFABC, oferecem também licenciaturas interdisciplinares, que visam formar professores para o ensino fundamental e médio de forma dinâmica, integrada e muito crítica. “Minha família sempre incentivou, mas de forma geral não entendem a proposta do curso. Acreditam se tratar de um ‘ciclo básico comum’ ou de uma fase que tem ‘um pouco de tudo’”, brinca Bianca. “Pretendo seguir minha formação no Bacharelado em Neurociência e quero colaborar mais com os projetos de extensão. Hoje trabalho junto a um grupo da UFABC que reúne fisioterapeutas, engenheiros biomédicos e neurocientistas debruçados sobre a importância do exercício físico e cognitivo para pacientes com Parkinson.”

Moderno, mas nem tanto

O modelo interdisciplinar dos cursos de graduação pode até parecer algo recente e distante das universidades mais tradicionais, mas não é exatamente assim. Já nos anos 1960, foi criada a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB) que concentrava seus estudantes de medicina, biologia, medicina veterinária e agronomia em um único período básico de dois anos, e contratava  seus docentes com base não na habilitação que constava em seus diplomas de graduação, mas sim a área em que desenvolviam atividades de pesquisa. Posteriormente, a FCMBB foi desmembrada e deu origem a diferentes unidades que compõem o campus da Unesp em Botucatu (veja box a seguir).

Uma das iniciativas mais conhecidas de ensino superior interdisciplinar é oferecida pela Universidade de São Paulo (USP). Há 33 anos, ela oferece o curso de Ciências Moleculares, que fica sob responsabilidade da Pró-Reitoria de Graduação.

Edifício do curso de Ciências Moleculares, na Cidade Universitária da USP. Foto: Fábio Durand

O curso é oferecido aos jovens que já ingressaram como alunos de algum curso tradicional da universidade. O processo seletivo é aberto anualmente, ao fim do primeiro semestre. Quem se interessar em concorrer deve se preparar para uma jornada de testes, bem diferentes dos vestibulares: além de resolver uma prova escrita, os candidatos participam de uma dinâmica de grupo na qual têm que resolver um determinado problema juntos.

“Você nunca sabe quando um conhecimento inesperado será recuperado para resolver um problema. Muitos dos sistemas computacionais, por exemplo, são inspirados em sistemas biológicos Da mesma forma, podemos usar sistemas computacionais para resolver problemas biológicos”, diz o estudante de Ciências Moleculares, Rafael Badain. “Eu considero que as divisões do conhecimento em caixas são muitas vezes artificiais e subjetivas. Um curso interdisciplinar te dá a possibilidade de sair dessas caixas, e olhar para tudo de forma muito mais diversa.”

Podem concorrer a uma vaga em Ciências Moleculares pessoas de todos os cursos. Quem for aprovado e optar pela mudança não perde a vaga no curso de origem e pode retornar a ele a qualquer momento – em especial após a formatura. Por ano, são oferecidas 35 vagas. Na última seleção 200 pessoas se inscreveram, segundo a USP.

“Temos diversos ex-alunos em posição de destaque em ramos variados do mercado, como CEOs de empresas de tecnologia, bancos, no Google e em indústrias farmacêuticas”, conta Merari de Fátima Ramires Ferrari, que é professora associada da USP. “A interdisciplinaridade é o futuro. Logo não dará mais para ser só físico, biólogo ou matemático. Essa cultura é antiga e estamos discutindo essa modernização em todos os cursos da USP.”

Logo não dará mais para ser só físico, biólogo ou matemático. Essa cultura é antiga e estamos discutindo essa modernização em todos os cursos da USP.

Merari de Fátima Ramires Ferrari, professora associada da USP

Quem topa o desafio deve se preparar para uma boa carga de estudos, em diferentes áreas: nos dois primeiros anos, os estudantes têm aulas de matemática, computação, física química e biologia, como uma introdução a essas disciplinas. Já nos últimos dois anos, os discentes escolhem as disciplinas que querem cursar, inclusive fora da universidade. Eles podem cumprir os créditos estagiando em um hospital, dando aulas ou estudando artes ou ciências aplicadas, garantindo uma formação individualizada e exclusiva.

“Essa formação não oferece um caminho ‘certinho’ para trilhar, como acontece no caso de uma graduação em medicina ou em direito. Mas, você pode criar seu próprio caminho, e atuar até mesmo em carreiras e funções que nem existem ainda”, diz Badain. “Eu já atuo profissionalmente como consultor científico para empresas e pretendo continuar aplicando os conhecimentos de pesquisa científica em ciência cognitiva.”

Ilum aposta em metodologia ativa para formar estudantes

O fortalecimento dos cursos interdisciplinares tem incentivado a criação de novos modelos de educação superior pelo Brasil, pautados pela inovação e aproximação do conhecimento teórico e prático. Dentre estas iniciativas, a Ilum Escola de Ciência tem despertado atenção tanto nas discussões dos especialistas em educação quanto junto aos estudantes que planejam seu futuro profissional.

A Ilum Escola de Ciência está vinculada ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que funciona em Campinas (SP) e é supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Com um projeto pedagógico integrador, oferece educação superior com abordagem interdisciplinar em período integral. Logo nos primeiros dias de aula, os alunos já começam a utilizar toda a moderna estrutura dos laboratórios do CNPEM, para aliar teoria e prática, além de interagir com cientistas que já atuam no mercado de trabalho.

“É realmente um curso interdisciplinar que olha para o mundo atual. Tem uma preocupação clara com estudos sobre meio ambiente e mudanças climáticas, além de biologia molecular, ciência de dados e inteligência artificial”, conta o diretor da instituição, o físico Adalberto Fazzio. “Uma grande diferença daqui em relação a outras instituições é a metodologia de ensino. Prezamos por uma metodologia ativa, por meio da qual o aluno tem diversas tarefas para cumprir, em grupo e individualmente.”

Interior de sala no Ilum. Crédito: divulgação
Estudantes em atividade no Ilum. Crédito: divulgação

A proposta do curso começou a ser discutida em 2016, ainda no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A Ilum, no entanto, só começou a funcionar em 2022, depois de cumprir todas as etapas burocracias exigidas pelo MEC para abertura de novos cursos superiores. A segunda turma já iniciou os estudos neste ano.

As ideias essenciais surgiram da observação do cotidiano dos muitos cientistas que atuam ou que usam as instalações do CNPEM, que estão entre as tecnologicamente mais avançadas do país, para conduzir suas pesquisas.

“Percebemos que os pesquisadores do CNPEM tinham alguma dificuldade com a interdisciplinaridade, por isso decidimos focar nessa área”, conta Fazzio. “O que a gente vê na grande maioria das universidades brasileiras é uma formação disciplinar e que demanda um tempo muito longo. Pensamos em desenvolver um modelo diferente, que poderia servir de exemplo para outras instituições”, diz. “Pensamos em um bacharelado que já formasse os jovens com um caráter interdisciplinar. A ideia era que uma pessoa que cursasse biologia pudesse aprender também matemática, computação ou física, pelo menos nos seus conteúdos fundamentais.”

Quem se forma no Ilum recebe o título de Bacharel em Ciência e Tecnologia, reconhecido pelo MEC, após três anos intensos de estudos. Em todos os semestres, os alunos cumprem uma disciplina ligada à realização de projetos na qual atuam como “cientistas júniores”, trabalhando em conjunto com pesquisadores profissionais para resolver demandas de pesquisas já em andamento.

“O sistema de avaliação para entrada na universidade é diferente do usado por outras faculdades, que só levam em conta notas no vestibular ou do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. Aqui há interesse pelo processo criativo, pela linha de raciocínio e pelos interesses diversos das pessoas”, diz Paola Ferrari, 19, estudante do Ilum. “Temos acesso a laboratórios de diversas especialidades, incluindo química, nanofabricação de materiais, biologia molecular, microscopia, espectroscopia, computação e humanidades. Os professores fazem com que coloquemos a teoria na prática, o que facilita o aprendizado. Não ficamos todo o dia nas salas de aula”, diz.

Outra grande diferença está na estrutura que é oferecida aos estudantes selecionados para o curso. Depois de aprovados no processo seletivo, eles recebem alimentação, transporte e moradia gratuitos, com verba do MEC, além de apoio psicológico e possibilidade de prática esportiva. Diante de tantos recursos e possibilidades, é fácil entender a grande atração que o Ilum está exercendo sobre os estudantes. No último processo seletivo, suas 40 vagas atraíram 1.200 candidatos. Por decisão da diretoria, metade das vagas é destinada a egressos de escolas públicas. É importante ressaltar, também, que esse modelo está bastante distante do cenário mais amplo da educação brasileira, em que a maioria dos jovens sequer consegue acessar o ensino superior.

Na FMB, disciplina prepara para trabalho em equipe

Uma iniciativa de formação interdisciplinar está em andamento na Faculdade de Medicina de Botucatu desde 2003. Naquele ano, foi oferecida pela primeira vez uma disciplina para alunos oriundos das graduações em enfermagem e medicina, intitulada Interação Universidade Serviços e Comunidade. Desde então, a disciplina se consolidou, e a turma deste ano reúne 180 estudantes dos primeiros anos dos cursos de medicina, medicina veterinária, nutrição e enfermagem.  Em sintonia com o movimento de curricularização da extensão na universidade, o nome foi alterado para Programa de Interação Universidade Serviços e Comunidade, embora  mantenha-se como uma disciplina, e agora conta também com a colaboração de funcionários da rede de atendimento em saúde da cidade.

A Faculdade de Medicina de Botucatu. Crédito: ACI/Eliete Soares

A coordenadora da disciplina é a médica Eliana Goldfarb Cyrino, docente do Departamento de Saúde Pública da FMB, campus de Botucatu. Ela explica que a disciplina já foi concebida para proporcionar ao aluno uma perspectiva interdisciplinar e interprofissional. Os professores pertencem a cursos diversos, e empregam uma metodologia que permite aos alunos conectar os conteúdos das diferentes disciplinas. “Mas não é aquele sistema em que cada um leciona uma parte do curso”, diz Cyrino.

Ao invés do campus universitário, a sala de aula é o sistema de saúde do município de Botucatu. Os alunos são organizados em 12 equipes, que cobrem 12 setores da cidade. Em seus trabalhos, os estudantes interagem com profissionais de variadas formações, como psicólogos, terapeutas ocupacionais, médicos, fisioterapeutas etc. além dos professores. Ao longo do curso, eles vão conhecendo a população da região em que atuam, bem como as dificuldades e desafios que fazem parte do seu cotidiano e impactam sua saúde.

“É importante que os alunos tenham essa experiencia de trabalho em equipe. Ela vai fazer com que respeitem a atuação dos outros profissionais, e entendam que a ação deles é fundamental para que o seu próprio trabalho dê certo. E que essa combinação vai permitir uma assistência em saúde melhor à população”, diz.

Cyrino explica que a instituição da nova disciplina está ligada a movimentos que, há alguns anos, buscam renovar a educação médica, tanto no Brasil como no exterior. Aqui no Brasil, a busca por renovação remonta ao ano de 2001, quando foram elaboradas novas diretrizes curriculares para diversos cursos, inclusive de medicina. Uma nova série de diretrizes foi publicada em 2014. No caso da formação em medicina, essas novas diretrizes foram alimentadas pelas experiências adquiridas durante o programa Mais Médicos.

 “As novas diretrizes avançaram na perspectiva de pensar uma formação que valorize muito o campo da atenção primária em saúde, do cuidado da saúde da família, de uma perspectiva de que hoje o profissional de saúde precisa trabalhar em equipe pelo bem do paciente e da saúde da população”, diz. Isso implica superar a fragmentada formação tradicional, em que cada disciplina apresenta seu conteúdo específico, mas não há troca entre elas. “É como se fosse relegada ao aluno a tarefa articular esse conhecimento”, diz.

Lá fora, essa busca por uma formação interdisciplinar alcançou diversos centros de excelência.  “É preciso sair do modelo atual de formação, tão biomédico e tão voltado só para doença. Por exemplo, na Escola de Medicina de Harvard o currículo passou a incluir e valorizar o ensino de disciplinas de antropologia e de ciências sociais para os futuros médicos”, diz. A ideia é que, além da formação técnica, o aluno possa dispor de ferramentas para entender quem é a pessoa que está atendendo. “Não existe um paciente único, que em todo lugar apresenta as mesmas características. Existe uma singularidade, e isso passa por temas como raça, gênero, etnia. É preciso saber como atender cada pessoa”, diz. 

O que está patente é a necessidade premente de encontrar novas vias para o ensino superior. Não será necessariamente um processo fácil, sem resistências ou erros. Mas já está em andamento, imposto pelas novas realidades com que devem se defrontar os profissionais que adentram o mercado de trabalho hoje.

“Os cursos de medicina, enfermagem, veterinária e nutrição da Unesp passaram por reformulações curriculares com o objetivo de proporcionar uma formação onde as disciplinas se integrem mais para ajudar o estudante a entender todos os processos envolvidos no cuidado a um ser humano, diz Eliana Goldfarb Cyrino. “São cursos que estão buscando, na medida do possível, atualizarem-se para o século 21.”

Faculdade de Medicina de Botucatu foi pioneira no ensino interdisciplinar

Há sessenta anos, em 1963, iniciavam-se as atividades da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (FCMBB), que posteriormente seria incorporada a Unesp, dando origem a atual Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), uma das unidades da Unesp. Oferecendo graduação nas áreas de medicina, medicina veterinária e biologia, o projeto da nova faculdade trouxe diversos aspectos inovadores que permitiram que, ao longo dos anos, a instituição consolidasse sua reputação como um dos principais centros de formação de médicos no país, posição que mantém até hoje. Uma destas inovações estava na estrutura curricular parcialmente unificada que destoava do modelo prevalente nas demais instituições de ensino superior do país.

 Quando iniciavam seus estudos, os estudantes de biologia, medicina e veterinária frequentavam as mesmas classes, num ciclo básico comum. O proposto era assegurar uma base de conhecimentos mais ampla. Em 1965, o curso de agronomia foi criado na FCMBB e os estudantes desta graduação também passaram a compartilhar os mesmos bancos. Este período durava dois anos. Depois, as turmas eram divididas segundo suas habilitações.

Os docentes que atuavam no ciclo básico possuíam uma formação diversificada. Essa variedade se devia ao fato de que a direção da universidade orientava sua política de contratação de professores não pelo diploma de graduação que os profissionais possuíam, mas sim por sua especialização e por sua área de pesquisa.

Dentre as disciplinas dos primeiros anos estavam citologia, histologia, morfologia, genética e evolução, química, física e biofísica. As matérias que necessitavam de prática eram ministradas após o segundo ano. Professora de medicina aposentada do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB/Unesp), que iniciou sua carreira na então FCMBB, Edy di Lello Montenegro lecionava as disciplinas de citologia e histologia para os alunos do ciclo básico. “Células e tecidos são um assunto fundamental, que todos os alunos devem conhecer”, diz ela. “Claro que existiam diferenças [de interesse para os grupos de alunos], e elas eram pontuadas”, explica.

Ela diz que o modelo interdisciplinar contribuía para aproximar os professores. “Nós fazíamos reuniões científicas que permitiam um intercâmbio muito grande entre as cadeiras básicas e as aplicadas. Os encontros ocorriam nas férias, e cada um contava sobre o experimento que estava fazendo e os resultados que esperava. Era um evento semelhante a um congresso”, lembra. A construção de uma biblioteca completa, que contemplasse todos os campos de ensino, também foi essencial para a formação de bons pesquisadores.

Para que pudessem se sair bem nas disciplinas práticas, mais avançadas, era preciso que os alunos saíssem do ciclo básico com uma boa formação. “Quando chegavam às turmas especializadas, os alunos estavam bem preparados”, diz Francisco Maffei, professor aposentado da Faculdade de Medicina de Botucatu. A proposta era que os alunos fossem agentes do seu próprio aprendizado, desenvolvendo uma postura ativa.

A integração entre disciplinas, docentes e alunos também permitiu o desenvolvimento de pesquisas práticas e teóricas. “A ideia era criar uma faculdade com objetivo de ensino, assistência e pesquisa, e que todos os docentes seguissem um regime de dedicação completa a essas atividades”, diz Maffei. Essa diretriz resultou no surgimento do curso de pós-graduação em Bases Gerais da Cirurgia e Cirurgia Experimental, em 1975, coordenado pelo professor Willian Saad Hossne, cujas atividades seguem até hoje. “Hoje, a pós-graduação tem um número de alunos muito grande, e continua com bastante prestígio, dentro e fora da faculdade”, diz ele.

Após a criação da Unesp, em 1976, o curso básico foi dissolvido e a FCMBB desmembrada, dando origem à estrutura do atual câmpus de Botucatu, composto pela Faculdade de Medicina, faculdade de Veterinária e Zootecnia, Faculdade de Ciências Agronômicas e o Instituto de Biociências.   O legado da interdisciplinaridade e da busca por inovações no ensino perdura na FMB. A instituição segue colaborando com iniciativas dos Ministérios da Saúde e da Educação como o Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares das Escolas Médicas (Promed) e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pro-saúde), que buscam transformações no ensino das ciências médicas no país, integrando-as ao desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), valorizando a atividade prática desde cedo e proporcionando uma aproximação entre os alunos e a realidade da população. 

Imagem de abertura: Ilum/Divulgação. Fotos Unesp: Acervo Centro de Memória da FMB