Adultos que foram crianças no final dos anos 1980 e 1990 tiveram, em algum momento, contato com o Zé Gotinha, um personagem que ajudou o Ministério da Saúde a confortar os pequenos a fim de que não temessem o momento de receber, sob a forma de gotinhas, a vacinação contra a poliomielite, também chamada de paralisia infantil. A partir do ano que vem, os frascos contendo a famosa “gotinha que salva” contra a pólio serão substituídos pela vacina intramuscular, produzida com vírus inativado.
A versão atual do calendário vacinal brasileiro inclui três doses injetáveis da Vacina Inativada Poliomielite (VIP) administradas aos 2, 4 e 6 meses de idade e duas doses de reforço com a vacina oral que são administradas aos 15 meses e aos 4 anos de idade.
A decisão, anunciada pelo Ministério da Saúde, está em consonância com as recomendações da Câmara Técnica em Assessoramento em Imunizações (CTAI), que assessora o Ministério da Saúde, e com as diretrizes globais da Organização Mundial da Saúde (OMS) para erradicação da doença. A meta da OMS é que a vacina inativada substitua totalmente o imunizante oral em todo o mundo até 2030.
A mudança é justificada pela situação atual dos casos de poliomielite no mundo. Dos 647 casos de poliomielite paralítica notificados em 2023 em todo o planeta, somente 16 foram causados pelo vírus natural ou poliovírus selvagem. Todos os outros casos da doença foram atribuídos a vírus derivados da vacina oral. Trata-se de um panorama muito diferente da realidade que ainda era vista há cerca de trinta anos, quando a presença do vírus selvagem causava, em média, 1.000 casos de paralisia por dia em 125 países.
Para erradicar o vírus no país e no mundo, adotou-se a estratégia de conduzir extensas campanhas de vacinação com a vacina oral contra a poliomielite (VOP). “Em decorrência da vacinação com esse imunizante, os casos de poliomielite pelo vírus selvagem diminuíram mais de 99,9%, nos últimos anos. É um testemunho da eficácia da vacina em gotinhas para combater o vírus selvagem”, diz Carla Domingues, doutora em medicina tropical e especialista em epidemiologia e gestão. “A região das Américas foi a primeira região do mundo a obter o Certificado de Erradicação da Poliomielite provocada pelo vírus selvagem, em 1994”, diz ela, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações (PNI) de 2011 a 2019.
Como o número de casos por vírus derivado da vacina é muito maior do que os casos por poliovírus selvagem (2% dos casos), a principal a estratégia das organizações internacionais de saúde na luta para erradicar a poliomielite é diminuir a quantidade de vírus atenuados em circulação através da troca gradativa do imunizante oral pelo injetável, constituído por vírus mortos e que não podem se replicar.
“Quando o risco de pólio vacinal é muito maior do que o risco de pólio selvagem, isso é um indicador de que se deve mudar para a vacina inativada. Essa é a tendência de todos os países desenvolvidos e no Brasil também. É uma escolha enquanto sociedade”, afirma o médico infectologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, diretor da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/UNESP). O vírus selvagem autóctone hoje circula somente em dois países: Paquistão e Afeganistão.
A vacina oral poliomielite (VOP), conhecida como vacina Sabin, é feita com o vírus atenuado, que é previamente enfraquecido no laboratório para reduzir a sua capacidade de provocar a doença. Após a vacinação, o poliovírus atenuado percorre o sistema digestivo e se aloja no intestino das crianças, onde se replica e leva à produção tanto de anticorpos circulantes no sangue como no interior do próprio intestino, uma característica muito útil para combater a propagação do poliovírus selvagem. Cerca de seis semanas após a vacinação, o organismo passa a eliminar o vírus atenuado nas fezes.
A transmissão da doença se dá principalmente por meio do contato direto com fezes contaminadas ou por meio de gotículas de secreções da orofaringe (ao falar, tossir ou espirrar) de pessoas doentes. Ou seja, tanto alimentos como a água contaminada podem ser fontes de infecção, o que aumenta o risco especialmente em países sem saneamento básico e com esgotos a céu aberto.
Por um lado, a presença dos vírus no ambiente ajudou a aumentar a imunidade coletiva ou de rebanho. Em contato com o vírus atenuado para não causar doença, o organismo é estimulado a desenvolver anticorpos que o defendam. “O vírus atenuado circula como o vírus comum, mas vai imunizando as pessoas, o que é importante nas situações em que é necessário eliminar a pólio”, explica Carlos Fortaleza.
No entanto, a reação ao vírus vivo da vacina oral pode ser diferente no caso de indivíduos cujo sistema imunológico está enfraquecido por uma variedade de condições médicas ou tratamentos, como quimioterapia, transplante de órgãos ou doenças autoimunes. Quando uma pessoa imunossuprimida recebe uma vacina atenuada, há um risco aumentado de que esse vírus vivo possa se replicar e causar uma infecção, já que o seu sistema imunológico não é capaz de combater o microrganismo adequadamente. Em casos raros, o vírus pode sofrer alterações genéticas e recuperar a sua capacidade de causar paralisia. Além disso, uma pequena fração de indivíduos vacinados também apresenta poliomielite vacinal, mesmo sem serem imunodeprimidos. A medicina ainda não conseguiu explicar os motivos pelos quais esses casos ocorrem. Há pesquisas investigando se pode haver algum tipo de predisposição genética nessas situações.
“Englobando todos esses casos, a vigilância epidemiológica mostra que a chance de um caso de poliomielite derivado do vírus da vacina oral é de uma em 1 milhão de indivíduos vacinados”, diz o médico. Por todos esses motivos, as vacinas de vírus atenuado são contraindicadas para pessoas imunossuprimidas. A orientação é que elas recebam vacinas inativadas, nas quais são empregados vírus mortos ou fragmentos das proteínas virais. Estes não se replicam, nem apresentam risco de causar infecção. Desse modo, espera-se reduzir a quantidade de vírus atenuados em circulação no ambiente e, assim, os casos de poliomielite derivada do vírus vacinal.
Segundo o relatório mais recente da Iniciativa Global para a Erradicação da Poliomielite (GPEI), divulgado em setembro de 2023, muitos desafios significativos para alcançar a erradicação da doença persistem ao redor do planeta, incluindo áreas com situações humanitárias e de segurança complexas. As guerras fazem parte desse conjunto de adversidades. De acordo com organização, ao menos 35 países relataram surtos de poliovírus em 2023, sendo que alguns países ainda são considerados endêmicos em nível global. Os países com surtos são aqueles que conseguiram eliminar o poliovírus selvagem autóctone, mas enfrentam desafios de reinfecção por meio da importação de poliovírus selvagem ou por meio do surgimento e circulação do poliovírus derivado da vacina.
Até 14 de março de 2023, conforme o relatório do GPEI, Afeganistão, Malawi, Moçambique e Paquistão registraram casos de poliovírus selvagem do tipo 1. Já os casos de poliovírus do tipo 1 derivado da vacina foram observados em Madagascar, Moçambique, Malawi e República Democrática do Congo. O levantamento também registra um caso de poliovírus derivado da vacina do tipo 3 em Israel e a presença de poliovírus derivado da vacina do tipo 2 em 29 países. Felizmente, o Brasil não apareceu em nenhuma dessas listas. Aqui, o último registro de infecção pelo poliovírus selvagem foi em 1989, na cidade de Souza, no estado da Paraíba.
A expectativa é que a troca da vacina diminua a quantidade de vírus atenuados em circulação, com impacto positivo na redução dos casos de poliovírus derivados da vacina. “A troca da vacina oral pela inativada diminui a proteção contra a introdução do vírus no Brasil, mas conservá-la mantém o risco de poliomielite por vírus derivado da vacina. Esse é o dilema. Devemos ficar de olho: se por acaso começar aumento de casos em países vizinhos, por exemplo, a gente tem que fazer campanha com a vacina oral. Mais um ponto muito importante é aumentar a cobertura vacinal e manter ações permanentes e efetivas de vigilância da doença”, diz Fortaleza. A ocorrência, em julho, de um caso de poliomielite por poliovírus circulante derivado da vacina tipo 2 no estado de Nova York, nos Estados Unidos, e em março de um caso confirmado de poliomielite devido ao poliovírus tipo 1 derivado da vacina no Peru, reforçam a necessidade de manter o alerta e a cobertura vacinal. Afinal, os dois casos envolveram indivíduos não vacinados.
Dados oficiais recentes mostram que a cobertura vacinal para a pólio em 2022 alcançou 77,20% (dados ainda estão sujeitos à alteração), com administração de cerca de 7 milhões de doses de vacina inativada poliomielite (VIP) e 4,3 milhões de vacina oral poliomielite (VOP) em crianças menores de cinco anos de idade. “Para afastar os riscos, é importante que os municípios brasileiros alcancem 95% de cobertura vacinal, como já conseguimos anteriormente”, diz Fortaleza. No começo da gestão atual, o Ministério da Saúde lançou o Movimento Nacional pela Vacinação para resgatar na população a confiança nas vacinas, evitar o retorno de doenças erradicadas e para o Brasil voltar a ser referência mundial no tema.
Em tempo: O Zé Gotinha vai continuar ao lado dos profissionais da saúde na batalha pela retomada da confiança nas vacinas e da cultura de vacinação do país. O personagem até ganhou perfis oficiais nas redes Instagram, Threads e Tik Tok.
Imagem acima: Deposit Photos.