Na Unesp, transição para documentação digital vai demandar mudanças na cultura organizacional

Universidade está investindo em equipamento, treinamento e produção de conhecimento com objetivo de, no futuro, processar dezenas de diferentes categorias de documentos por meio digital. Por enquanto, destaque é para sistema híbrido, que combina arquivos virtuais e de papel.

Relatórios, planilhas de controle financeiro, correspondência, atas de reuniões, atestados, memorandos, prontuários… Toda instituição produz e recebe uma grande variedade de documentos que são fundamentais ao seu funcionamento. São os documentos de arquivo, que podem ser gerados para realizar tanto atividades-meio quanto atividades-fim. Nas universidades, isso não é diferente. No cotidiano é fácil identificá-los, muitas vezes acondicionados em pastas de papel características que transitam pelas salas destinadas aos serviços burocráticos. Mas como manejar essa massa de informações num mundo em que as tarefas diárias cada vez mais são executadas no meio digital? A resposta a essa pergunta virá dos estudos do campo da preservação digital.

A preservação digital é um conjunto de práticas técnicas e de gestão que tem por objetivo garantir, no longo prazo, que os arquivos digitais possam preservar sua autenticidade e integridade, e que se mantenha a possibilidade de acessá-los mesmo que o hardware ou os softwares nos quais foram criados fiquem obsoletos. A Unesp vem investindo esforços para implementar essas novas práticas, focando a preservação de vídeos, fotos, teses e outros tipos de objetos digitais.

Esses esforços, que começaram com a aprovação da Política de Preservação Digital para Documentos de Arquivo da Unesp em 2018 e, posteriormente, com a criação da Comissão Permanente de Preservação Digital (CPPD), já resultaram em projetos para as bibliotecas da Unesp, para acervos de fotografias e para a preservação dos registros em vídeo das reuniões do Conselho Universitário. No caso dos documentos de arquivo, o primeiro passo da transição para uma lógica digital aconteceu em 2022, quando a Unesp adotou o ofício digital.

Segundo Maria Leandra Bizello, professora do Departamento de Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília, e integrante da CPPD, a adoção dos documentos digitais implica uma transformação de cultura organizacional. E não é uma mudança simples. É preciso investir em máquinas, pessoal e produção de conhecimento, inclusive para o desenvolvimento e manutenção de repositórios confiáveis – algo que as universidades já estão fazendo atualmente.

“O uso do papel envolve uma cultura burocrática que existe há séculos. Dentro da burocracia brasileira, qualquer pessoa sabe produzir uma carta. Aquele documento em papel possui uma série de sinais que vão assegurar que ele é válido, que possui integridade, autenticidade e é verdadeiro. Isso aparece na data, na assinatura, nos logos… Agora, para que se possa produzir um documento nato digital, é preciso encontrar outras formas. Ainda é possível assinar o documento fisicamente, mas também há a opção de assinar digitalmente. Mas é preciso que exista uma forma de garantir de que foi a pessoa certa que assinou”, diz a docente, que destaca a relevância de novas soluções que hoje já são disponibilizadas, como a ferramenta de assinaturas digitais ofertada pela plataforma Gov.Br.

Um sistema híbrido

 O cotidiano da Universidade envolve a produção, recebimento e circulação de uma infinidade de tipos de documentos de arquivo. Segundo o plano de classificação elaborado pela Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso (CADA), cabem nesta categoria desde as normas da Unesp até os históricos escolares de estudantes, atas de reuniões, acordos coletivos de trabalhos, anuários estatísticos, manuais, memorandos, prontuários, listas de presença, folhas de frequência de alunos, convênios de estágio, provas e exames, relatórios, editais, projetos de pesquisa, atestados, cartas de aceite, bases de dados, catálogos de cursos e planilhas de controle financeiro. Porém, apenas o ofício se tornou um objeto digital na Unesp até este momento.

De acordo com Maria Leandra, um dos grupos de trabalho organizados a partir da CPPD está estudando como padronizar os processos na forma de objetos digitais natos. A opção se deve ao fato de que os processos são um dos tipos de documento de arquivo mais utilizados no cotidiano da Unesp. Eles cumprem várias funções: processos seletivos, processos administrativos, processos de concessão de bolsas, moradia estudantil ou auxílio-aluguel etc. 

“É um estudo que ainda vai acontecer. A ideia é que não haverá mais uma digitalização de processos, e sim um documento digital desde o começo. Vamos adotar uma forma híbrida. Os processos que já estão tramitando continuam em papel. Mas, quando esse formato digital existir, os novos processos serão abertos no ambiente virtual”, diz Maria Leandra, que além de fazer parte da CPPD, é também integrante da CADA.

Estrutura descentralizada

Embora ainda tramitem fisicamente, a Unesp já possui um sistema digital que registra o andamento dos processos e o vai-e-vem dos papéis. O SIGAD é o sistema de gestão arquivística que acompanha toda a “vida útil” dos documentos da Unesp. Cada nova etapa de um processo – abertura, recebimento, encaminhamento etc. – fica registrada neste sistema online, mesmo que essas movimentações ocorram com a ajuda dos Correios e do serviço de malotes.

Quem gerencia todas movimentações são as seções técnicas de comunicações de cada unidade da Unesp. São elas que recebem e encaminham todos os documentos em tramitação, mantendo atualizados os registros correspondentes. Essas seções técnicas funcionam em rede, têm atribuição de arquivo e também de destinação documental. Isso significa que, além de organizar a tramitação dos processos, os profissionais desses órgãos são responsáveis pela guarda da documentação histórica e por avaliar quais documentos serão encaminhados para o arquivo permanente ou para o descarte.

Graças ao bom funcionamento dessa rede, a Unesp pode dispensar o uso de um arquivo central, algo que as outras universidades estaduais paulistas possuem. “A Unesp possui uma experiência muito sofisticada de arquivos descentralizados”, diz a docente do curso de Arquivologia.

A meia-vida dos documentos de arquivo

Há três tipos diferentes de arquivos: os correntes, os intermediários e os permanentes. Os arquivos correntes guardam os documentos que precisam estar à disposição para consulta no setor onde foram produzidos. Os arquivos intermediários reúnem documentos que não estão mais nos arquivos correntes, mas estão cumprindo um prazo precaucional ou vigência. Nesta categoria estão, por exemplo, os processos de prestação de contas, que devem ser guardados por certo período durante o qual o tribunal de contas pode exigir sua apresentação.

É durante essa “quarentena” nos arquivos intermediários que os profissionais encarregados da gestão dos documentos definem se eles serão descartados ou mantidos no arquivo permanente. Ou, ainda, se podem ser classificados como documentação histórica. Os documentos guardados no arquivo permanente podem já ter perdido seu valor administrativo – imagine o prontuário de um estudante que já se formou, por exemplo. Mas a instituição pode entender que eles ainda são importantes por seu valor histórico ou cultural.

Um dos motivos para que a Unesp opte por guardar certos documentos permanentemente é o potencial que apresentam para servir a pesquisas futuras. “O prontuário médico é um documento que, pela legislação do Conselho Federal de Medicina, pode ser descartado depois de 20 anos da última passagem do paciente pelo hospital. Entretanto, numa instituição de pesquisa não dá para jogar fora um prontuário médico, pois pode servir como insumo de pesquisa. Já vi, por exemplo, pesquisas sobre tuberculose na faculdade de medicina em que a pesquisadora foi buscar no prontuário a primeira fase da pesquisa, para depois ir à casa do paciente saber o que que aconteceu. Para, inclusive, deenvolver uma série de inovações”, comenta Maria Leandra Bizello.

Mesmo com a mudança de cultura em que a preservação digital implica, um certo hibridismo permanecerá. Maria Leandra lembra que o projeto piloto de preservação dos vídeos das reuniões do Conselho Universitário abarca também a digitalização das atas de reuniões mais antigas, realizadas quando não se faziam registros audiovisuais. “São atas que estão em papel ainda, mas não podem ser descartadas de jeito nenhum. É possível até que sejam digitalizadas e colocadas no repositório para facilitar a consulta, mas nem tudo que é digitalizado pode ser descartado”, diz.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Preservação Digital do Jornal Unesp. Série traz reportagens sobre a preservação digital e as iniciativas que a Unesp têm desenvolvido para transformar a sua cultura organizacional.

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