Apostar apenas na eletricidade não é a melhor opção para diminuir emissões de automóveis brasileiros

Estudo aponta obstáculos para eletrificação em larga escala da frota e sugere que estratégia que combina ampliação no uso de carros movidos a etanol e pequena parcela de veículos elétricos conseguiria alcançar metas estabelecidas no Acordo de Paris.

O setor global de transportes, que compreende de automóveis de passeio até aviões e grandes navios, responde por aproximadamente 21% do total de emissões de gases de efeito estufa que estão gerando o processo de mudanças climáticas. Segundo levantamento da Agência Internacional de Energia (IEA), apenas o transporte rodoviário, que em sua maioria é composto por veículos leves, responde por 15% do total de emissões. A constatação da magnitude do impacto desse setor sobre a atmosfera terrestre tem estimulado alguns países a criarem mecanismos para renovar sua frota de veículos. De forma geral, nas principais economias do mundo a estratégia tem envolvido a substituição de veículos movidos a combustão interna de combustíveis fósseis por opções menos poluentes, favorecendo em especial a adoção de motores elétricos.

De acordo com a mesma IEA, a China viu a venda de veículos elétricos a bateria (BEV) dobrar de 2020 para 2021. Na Europa, 17% dos novos veículos vendidos em 2021 eram elétricos. Já os Estados Unidos registraram um recorde de 631 mil veículos elétricos vendidos no ano de 2021.

Enquanto nas principais economias do mundo o patamar das emissões por veículos leves fica próximo da média global de 15%, o quadro no Brasil difere. Por aqui, as principais fontes de emissão estão na mudança do uso da terra e da atividade agropecuária, e o uso de automóveis responde por apenas cerca de 6% do total das emissões.

As diferenças observadas entre o contexto brasileiro e aquele encontrado na China, nos EUA ou em países europeus estimulou uma dupla de pesquisadores da área de planejamento energético da Unesp, no câmpus de Guaratinguetá, a se debruçarem sobre os cenários possíveis para a descarbonização da frota brasileira no longo prazo. Para a dupla, é importante que a política pública adotada para incentivar a descarbonização da frota seja baseada em dados que contemplem as particularidades do país.

Brasil: um caso especial

Um dos motivos associados à baixa emissão de gases do efeito estufa pelo setor de transportes brasileiro está diretamente relacionado, no caso da frota de veículos leves, ao amplo uso de biocombustíveis, principalmente o etanol, misturado à gasolina ou não. Um levantamento produzido pela UNICA (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), por exemplo, apontou que o uso do etanol resultou em uma redução de emissões de 535 milhões de toneladas de CO2eq (medida usada para comparar emissões de diferentes gases do efeito estufa) entre 2003 e 2019. Segundo o comunicado da entidade, para alcançar essa economia de emissões de CO2 proporcionada pelo uso do etanol seria preciso plantar o equivalente a quase 4 bilhões de árvores nos próximos 20 anos.

“O setor de transporte e de veículos leves é muito estratégico para o Brasil, por conta da relevância do transporte rodoviário no país”, explica Sofia Glyniadakis, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá, e uma das autoras do artigo relatando o estudo, que foi publicado recentemente na revista Energy Policy. “E minha percepção, a partir de notícias que lia nos jornais, é que quando se falava em políticas e de mobilidade sustentável, havia uma evidência maior em relação aos veículos elétricos. Mas eu sentia a necessidade de conduzir uma investigação comprobatória, que se baseasse efetivamente em dados.” A pesquisa é orientada por José Antonio Perrella Balestieri, professor do Departamendo de Energia da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá. Balestieri  é especialista em engenharia de energia, com foco em planejamento energético, e também assina o artigo.

Hoje, a frota de veículos leves no Brasil ultrapassa os 60 milhões de unidades (veja abaixo). Destes, a imensa maioria utiliza motor flex. O total de veículos elétricos rodando pelas ruas ainda é minúsculo, da ordem de 0,2%. No entanto, a procura por este tipo de motorização tem crescido, a ponto de representar 3,1% dos emplacamentos no ano passado.

Para analisar a eficácia das diversas tecnologias na redução da emissão de gases do efeito estufa, e colaborar para a orientação de políticas públicas para este objetivo, a dupla de pesquisadores elaborou projeções de diferentes cenários tendo como horizonte o ano de 2050. Em um primeiro cenário, no qual não seriam  adotadas políticas de apoio à descarbonização, e sem qualquer incremento no percentual de veículos elétricos que compõem a frota, o resultado seria um aumento nas emissões de 134%, um resultado muito ruim. 

A pesquisa desenhou também outros três cenários, nos quais a inserção de veículos elétricos na frota total cresceria até alcançar 10%. Esse parâmetro de 10%, explica a pesquisadora, foi obtido a partir de um algoritmo que considera diversos dados, entre eles o histórico de crescimento da frota brasileira e a viabilidade da inserção desses veículos no mercado. 

Considerando a participação dos elétricos na frota, três cenários foram projetados. O primeiro contemplou uma política de emissões semelhante à atual, em que fontes fósseis seriam acionadas em casos específicos, como uma baixa performance na geração de energia hidrelétrica, por exemplo. Em um segundo cenário, o de viés mais pessimista, não ocorria qualquer intervenção por parte do estado para estimular o desenvolvimento de fontes renováveis, e a prioridade estaria no crescimento das matrizes baseadas em fontes fósseis. O terceiro cenário, o mais otimista, envolve o uso de novas fontes de geração renovável e representa o contexto mais sustentável dos três. 

A partir das projeções, os pesquisadores concluíram que, nos três cenários citados acima, bastaria que a frota alcançasse um patamar de apenas 10% de veículos elétricos, em combinação com 90% de automóveis movidos exclusivamente a etanol, para alcançar a redução de 58% das emissões de gases do efeito estufa até o ano de 2050. “Mesmo no cenário mais pessimista para o Brasil, em que não fosse possível realizar uma adaptação da matriz ampla o suficiente para proporcionar um crescimento totalmente sustentável do fornecimento de energia,  e seja preciso queimar carvão para dar ensejo à eletricidade prevista, ainda assim este se provou um cenário capaz de alcançar a meta de descarbonização”, explica a pesquisadora.

É preciso explicar que, uma vez que o Brasil não possui uma meta oficial de redução do setor para 2050, o valor de 58% foi estabelecido com base nas metas anuais definidas pelo RenovaBio. O programa, lançado pelo governo federal em 2016, prevê um conjunto de políticas públicas para colaborar no alcance dos compromissos firmados pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris para a redução das emissões de gases do efeito estufa. Além de medidas que visam a sustentabilidade e a previsibilidade na produção de biocombustíveis, o RenovaBio também estabelece metas anuais de descarbonização da frota até 2030. Essas metas serviram de referência para que os autores estabelecessem uma estimativa de quais seriam as metas para 2050.

Biocombustíveis são a chave

Os dados, destacam os pesquisadores no artigo, reforçam a necessidade de se levar em consideração o uso dos biocombustíveis na elaboração de políticas de redução das emissões de gases do efeito estufa no transporte para o Brasil. “O que pode permitir ao Brasil chegar a esse resultado na projeção de cenários para 2050 é o uso do etanol. Ele propicia uma emissão baixíssima sem demandar muitas modificações de ordem tecnológica para o consumidor, uma vez que não exige necessidade de criar estações elétricas ou modificar a infraestrutura já existente”, diz Balestieri.

Para o cálculo das emissões, o modelo elaborado pelos pesquisadores considera um nível de emissão de 3,6 kgCO2/l para a gasolina, já considerando a mistura de 23% de etanol praticada no país. Já para o etanol foi admitido o valor de 0,36 kgCO2/l, que considera as emissões desde a produção da cana-de-açúcar até a queima do combustível. Em um exercício teórico, os pesquisadores calcularam que a ampliação do chamado etanol de segunda geração para toda a cadeia reduziria este valor para 0,18 kgCO2/l, o que implicaria uma diminuição ainda mais expressiva nas emissões, alcançando 77%. Já a emissão dos veículos elétricos foi calculada com base no uso de tecnologias sustentáveis para a geração de energia da matriz elétrica. Afinal, em um país abastecido por energia oriunda de termelétricas, um veiculo elétrico acaba emitindo carbono indiretamente, porque a eletricidade que ele emprega foi gerada a partir de fontes fósseis

Neste ponto, o Brasil tem uma vantagem em relação a outros países que têm incentivado a adoção de veículos elétricos. O país tem 83,7% de sua energia elétrica produzida a partir de fontes renováveis. Com base no planejamento do Ministério de Minas e Energia para o crescimento da matriz elétrica brasileira, os pesquisadores concluíram que o sistema pode sustentar um aumento da demanda de energia equivalente a presença de 38% de automóveis elétricos na composição da frota. Esse cálculo se baseou também em estimativas da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores), que desde 2004 divulga relatórios anuais sobre a frota brasileira.

Etanol carece de previsibilidade

Ainda que o trabalho aponte a necessidade de se contemplar o biocombustível nas políticas de descarbonização do setor de transportes brasileiro, Perrella chama a atenção para o fato de que a produção do etanol está intimamente relacionada ao preço do açúcar, uma commodity cujo preço varia de acordo com o mercado global. “Em momentos em que o mercado externo está pagando caro pelo açúcar, a produção do etanol fica em baixa no país. E vice-versa”, afirma o professor, que aponta a necessidade de se elaborar políticas públicas que busquem reduzir essas variações.

Outra variável difícil de projetar diz respeito ao desenvolvimento tecnológico. No momento em que os pesquisadores começaram a coletar dados e elaborar projeções para escrever o artigo, a tecnologia de veículo híbrido não estava disponível no Brasil. Esta variedade de veículo combina um motor a combustão interna movido a etanol ou a gasolina com um sistema elétrico. Atualmente, algumas montadoras com plantas no país já planejam usar o sistema híbrido na fabricação de seus veículos.

Para Sofia, trabalhos como o seu podem ajudar a embasar o desenho de políticas públicas tendo como referência as características brasileiras, como as grandes dimensões continentais, a alta dependência do transporte rodoviário tanto para cargas quanto para a mobilidade das pessoas, a capacidade e o conhecimento acumulado no uso de biocombustíveis. “No setor de transportes, o Brasil não precisa seguir as tendências globais, mas sim aproveitar suas vantagens estratégicas e viabilizar um transporte de qualidade e com baixa emissão usando aquilo que mais lhe favorece”, aponta a pesquisadora.

Imagem acima: corte mostra motor elétrico de um carro híbrido Toyota Auris no Salão Internacional de Automóveis em 22 de setembro de 2015 em Frankfurt Main, Alemanha. Foto de Philipus.