Há 90 milhões de anos, a Terra atravessava o período Cretáceo, e vivia-se o ápice do domínio dos dinossauros. Naquela época, o terreno que hoje corresponde ao território da Argentina, por exemplo, era habitado pelo imenso Argentinossauro, que chegava a 35 metros de comprimento. Porém, em uma pequena porção do planeta, parece que a dominação dos dinossauros não era tão efetiva assim. Essa região é hoje conhecida como “grupo Bauru”, e compreende um conjunto de formações geológicas presentes nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso. No território do grupo Bauru, as descobertas de fósseis de dinossauros foram tardias, poucas e esparsas, e revelaram espécies de pequeno porte, sem condições de desempenhar qualquer função mais dominante. Quem se destacava, segundo mostra o registro fóssil, eram as espécies de crocodiliformes.
Como o próprio nome indica, esse grupo apresentava semelhança com os crocodilos atuais, porém, ao contrário de seus descentes de hábitos semi-aquáticos e carnívoros, as espécies de crocodilos ancestrais podiam ser aquáticas, terrestres e, também, semi-aquáticas. A alimentação também era mais diversa: com grupos carnívoros, onívoros e, até mesmo, herbívoros. Em 2012, o paleontólogo Felipe Montefeltro, do Departamento de Biologia e Zootecnia da Faculdade de Engenharia da Unesp, câmpus Ilha Solteira, participou de uma pesquisa que organizou a árvore genealógica dos crocodiliformes, demonstrando que ela continha 184 espécies diferentes.
Em um novo estudo, Montefeltro está adotando uma abordagem inovadora na paleontologia, para entender como podem ter sido as relações entre dinos e crocodiliformes, e jogar mais luz sobre esse problema que intriga os paleontólogos. “Na paleontologia existe uma discussão se, de fato, estamos vendo um ecossistema dominado pelos crocodiliformes ou se isso está relacionado a uma melhor preservação dos fósseis deste grupo do que dos dinossauros”, conta o pesquisador.
Em um artigo recente, intitulado Assessing the palaeobiology of Vespersaurus paranaensis (Theropoda, Noasauridae), Cretaceous, Bauru Basin – Brazil, using Finite Element Analysis, publicado na revista Cretaceous Research, um grupo de estudantes e pesquisadores da Unesp liderados por Montefeltro se debruçou sobre uma pequena espécie de dinossauro, o Vespersaurus paranaensis, visando descobrir os hábitos de alimentação e caça do animal, com a expectativa de começar a montar o quebra-cabeça das interações que ocorriam entre os habitantes do grupo Bauru.
O dinossauro paranaense
Há cerca de quatro anos, em 26 de junho de 2019, era anunciada a descoberta de um novo dinossauro, que viveu há cerca de 90 milhões de anos. Bípede, carnívoro e pequeno, o Vespersaurus paranaensis foi apresentado ao mundo em um estudo publicado por paleontólogos da USP, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), do Museo Argentino de Ciencias Naturales e do Museu de Paleontologia de Cruzeiro do Oeste.
Os fósseis do indivíduo foram encontrados na cidade de Cruzeiro do Oeste, no Paraná. O achado chamou a atenção por se tratar da maior e mais bem-preservada descoberta de um fóssil de terópode (grupo de dinossauros bípedes ao qual pertencem algumas das espécies mais conhecidas, como o Tiranossauro e o Velociraptor) ocorrida no país. O bom estado do material permitiu que os pesquisadores formulassem hipóteses iniciais sobre seu comportamento. Uma das características que mais chamou a atenção dos especialistas foi o formato dos seus pés. Embora dotados de três dedos, praticamente todo o peso do animal concentrava-se no dedo do meio. Este servia como principal fonte de sustentação, e os outros dois raramente encostavam no chão. Estes outros dedos apresentavam garras em forma de lâminas, o que levou os estudiosos a suspeitar que fossem utilizados para caçar, cortar e raspar.
O Vespersaurus faz parte de um grupo de dinossauros chamada noasauridae, com espécimes descobertos na América do Sul, África, Madagascar, Índia, Europa e Austrália. Apesar da ampla difusão, ainda se sabe pouco dos detalhes dos hábitos alimentares e comportamentais desses animais. Isso se deve ao fato de serem espécies com registros fósseis bastante incompletos, o que dificulta as investigações. E o Vespersaurus não foge à regra. Sabe-se que ele era pequeno, chegando a medir 80cm de altura e 1,5m de comprimento, mas, de 2019 para cá, pouco se descobriu sobre a alimentação do animal, e faltam informações detalhadas sobre aspectos como hábitos de caça, as interações com outros animais, o grau de agressividade etc.
Conscientes da importância de encontrar respostas a essas perguntas, e dos benefícios que elas podem trazer para compreender as interações entre dinossauros e crocodiliformes na região do grupo Bauru, Montefeltro e o então estudante de mestrado Gabriel Gonzalez Barbosa aplicaram uma técnica de estudo de objetos, muito comum na engenharia, o Método dos Elementos Finitos (MEF). A intenção do trabalho era buscar demonstrar a possibilidade da existência de uma relação de competição entre dinossauros e crocodiliformes. Caso a existência de tal interação fosse assinalada, ganhava força a hipótese de que os dinossauros constituíssem um elemento secundário nessa região, apesar de sua condição dominante no restante do globo. “Recorremos à técnica do MEF com a intenção de descobrir informações sobre a paleobiologia do Vespersaurus e analisar a espécie no contexto mais amplo dos ecossistemas do Cretáceo”, conta Montefeltro.
Da engenharia para a paleontologia
O Método dos Elementos Finitos é uma técnica computacional que surgiu na década de 1960 em problemas de engenharia civil e aeronáutica. Ela é aplicada para testar o comportamento de objetos em diferentes cenários. A partir da inserção de informações como o tipo de material analisado e a sua resistência, os programas geram simulações do comportamento do objeto em cada cenário. Isso permite comparar diferentes materiais e formatos e determinar quais apresentam uma performance superior num dado conjunto de circunstâncias.
Segundo Montefeltro, a utilização do método na biologia e na paleontologia é mais recente, e ganhou destaque nos últimos dez anos. O paleontólogo comenta que a técnica é muito promissora para o estudo de problemas de ecologia, mas no Brasil ainda é pouco empregada com este propósito. “A escolha da técnica veio pela convergência de vários fatores. A Unesp de Ilha Solteira não dispõe de uma coleção fóssil, por exemplo, então eu não teria modelos que pudesse analisar aqui. Usar o MEF foi uma tentativa de escapar um pouco da dependência dos fósseis”, diz. Ele destaca o fato de que a metodologia permitiu a continuidade das pesquisas mesmo durante a pandemia, pois as análises podem ser conduzidas em qualquer lugar.
Para o estudo que embasou o artigo, os pesquisadores utilizaram tomografias dos dentes do Vespersaurus e das garras. Gabriel Barbosa conta que a pesquisa empregou três softwares diferentes. O primeiro montou as imagens a partir dos recortes das tomografias, o segundo preencheu a simulação do dente e da garra e o terceiro executou as simulações e forneceu dados da performance em diferentes cenários.
Para os dentes, o grupo se baseou em uma publicação de 2018, na qual os cientistas propunham comportamentos que poderiam ser esperados por parte dos animais a partir do formato de seus dentes. Assim como ocorre com a fauna de hoje, as diferentes espécies de dinossauros apresentavam hábitos alimentares diversos, conforme a espécie. Alguns mordiam e soltavam as presas. Outros mordiam e puxavam a carne, enquanto um terceiro grupo mordia e depois fazia uma torção. No artigo, essas distinções foram evidenciadas, relacionando as diferentes maneiras de morder com os comportamentos de predação e as presas de cada espécie.
Partindo dessa referência, os paleontólogos utilizaram os dados disponíveis e aplicaram os cenários na simulação com os dentes do Vespersaurus para descobrir de que maneira poderiam responder a cada situação. Análise semelhante foi empregada para as garras do animal, examinando as possibilidades de espetar a presa, de arranhar e cavar e de puxar. Em todas as análises de cenário, as garras performaram de maneira semelhante; não houve sinal de favorecimento a alguma ação específica. Essa característica levou os pesquisadores a sugerirem que se tratava de um animal “generalista” e não um grande predador.
Além disso, também foi possível descobrir que o dente do Vespersaurus não era adaptado para lidar com presas muito fortes ou que apresentassem muita resistência e, também, não conseguiriam morder materiais resistentes, como os ossos. Essas são características importantes para identificar grandes predadores, categoria em que se encaixavam crocodiliformes ou mesmo outros animais do grupo dos terópodes. Por conta dessas informações, o grupo acredita que o Vespersaurus se alimentava de presas pequenas, carcaças ou mesmo de animais deixados para trás por outros predadores maiores.
O mistério sobre a falta de fósseis de dinossauros na região do grupo Bauru segue em aberto. Pode ser que realmente tenha sido, há milhões de anos, um território peculiar, onde os crocodiliformes reinavam e subjugavam pequenos dinossauros como o Vespersaurus paranaensis. Ou talvez a geologia do local e o comportamento dos crocodiliformes tenham contribuído para uma melhor preservação de seus fósseis. De qualquer maneira, os pesquisadores veem as descobertas sobre o comportamento do pequeno dinossauro como um progresso na compreensão da ecologia local. “A utilização do MEF permitiu descobrir detalhes do comportamento desse animal, que é pouco estudado no mundo inteiro. Graças a essas novas informações, podemos deduzir e aprender mais sobre como era o ambiente e as espécies que viviam no sudeste do Brasil há 90 milhões de anos”, diz Barbosa.
Imagem acima: reconstrução do Vespersaurus paranaensis. Crédito: Rodolfo Nogueira/Jornal da USP