“A música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição”. A frase eternizada pelo filósofo grego Aristóteles representa o sentimento intrínseco de um amante da música e pode servir de inspiração para um artista ou mesmo para acalentar o nosso cotidiano. Nesse sentido é fácil notarmos aqueles que realmente mantêm essa essência durante sua trajetória. Entre esses está o músico, percussionista, compositor e arranjador, João Parahyba.
Natural de São Paulo, João Carlos Gomes, cresceu na região do Vale do Paraíba (interior de SP) de onde herdou o nome artístico e desde cedo se interessou pela música, em especial pela percussão.
“Nasci numa família tradicional de São Paulo e cresci num complexo de fábrica de têxtil e fazendas do meu avô que era proprietário de uma das principais fábricas de cobertor do país e do mundo, famosa pelo bonequinho (risos). Tudo isso dentro de uma colônia italiana, inclusive fui adotado por duas “nonas” (avós) da Toscana que vieram com os maridos para trabalhar nas fábricas e ali todo mundo gostava de música. Então, eu tinha a música regional do Vale do Paraíba como moda de viola, congada, cateretê, folia de reis, e convivia também com a música italiana e a música industrial da cidade”, relembra.
Entretanto, o despertar para percussão surgiu quando começou assistir apresentações da Banda Marcial dos Fuzileiros Navais, a qual tinha um glamour naquela época e utilizavam instrumentos percussivos. “Os caras vinham com uns bumbos e faziam uns malabarismos com os bumbos e caixas que me deixavam doido. Até hoje eu tenho a pele de um bumbinho que o maestro e marechal me deu autografado numa dessas apresentações. A partir daí, ainda menino, comecei a batucar tudo e só pensava nisso. Aí eu comecei a prestar atenção no toque das congadas, nos pauzinhos do cateretês e ficava com a cabeça fervendo. Quando vim pra SP comecei a estudar bateria com os professores Rubinho e Chumbinho, e apesar da invasão do jazz norte-americano do período que a gente tinha que estudar, minha formação foi mais ligada à cultura brasileira como maracatu, congado, xaxado, baião. Isso fez com que eu entrasse para um viés de músico percussionista mais brasileiro, ou seja, a bateria veio antes para que eu pudesse desconstruir de certa forma para criar meu jeito de tocar”.
Do estudo para o profissionalismo foi um caminhar natural, e ainda jovem começou a tocar no lendário bar Jogral na capital paulista. “Comecei tocando lá na época do colegial de forma despretensiosa. Depois fui intimado a tocar diariamente. Em 1968, decidi ir trabalhar lá em definitivo. Meu pai reprovou minha escolha de ir trabalhar, pois era época da ditadura e o AI-5 pegava pesado. Passei esse período lá. Eu me apaixonei pelo Jogral era um ambiente anti-ditadura repleto de jornalistas, filósofos, professores, músicos e aquilo pulsava de cultura, música e política”.
Nesse período, após ter a oportunidade e privilégio de tocar com nomes como Cartola, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e Paulo Vanzolini no bar Jogral, ao lado de Fritz Escovão e Nereu Gargalo, João criou o Trio Mocotó. Lendário grupo pioneiro do estilo que se tornou conhecido como samba rock. Pelo fato de serem músicos fixos na casa, o trio teve a oportunidade de acompanhar grandes nomes da música nacional e internacional que passavam por lá. Nesse caminhar, pela necessidade de se apresentar num espaço físico pequeno, desconstruiu a bateria e criou um estilo irreverente e inovador de tocar percussão, mantendo um som de qualidade, encorpado e com destaque para sua “Timba”. A ideia pioneira gerou a “Timbateria”, cujo conceito vista um “kit de percussão” que ficou conhecido como “percuteria”. Seu estilo de tocar se tornou uma atração à parte para o público.
Dentre essas canjas, uma em especial começou a se tornar frequente, com Jorge Ben no violão. Fritz na cuíca, Nereu no pandeiro e Joãozinho com sua mistura de timba e bateria. A batida que nasceu desse encontro, se transformou em marca registrada e levou Jorge Ben e o trio definitivamente ao estrelato. E foi essa batida que deu origem ao samba-rock. No próprio Jogral, Jorge e o trio assinaram com a Philips para a gravação de seu novo disco. O trio acompanhou Jorge em praticamente todas as faixas incluindo ‘Que Pena’, ‘Domingas’, ‘Take it Easy my Brother Charles’ e ‘País Tropical’. “Nessa época o Jorge vinha a São Paulo para se apresentar em programas de televisão da Record do Tremendão (Erasmo Carlos), Roberto Carlos e Wilson Simonal e nos convidou para gravar um disco. Juntou a fome com a vontade de comer. Foi um samba pra frente, uma atitude mais forte, diferente do samba tradicional”
Segundo Parahyba, o nome “oficializou” no Festival Internacional da Canção, no RJ, em 1969, quando o diretor do evento perguntou ao Jorge que precisava anunciar ele o trio que por hora não tinha nome e Jorge disse: Mocotó!. Nessa época a moda havia, literalmente, descoberto a perna feminina, subindo as saias acima dos joelhos. Enquanto a minissaia escandalizava em seu sucesso, o joelho e as pernas femininas ganharam um apelido: mocotó. Como o trio estava sempre brincando com a gíria nova e comentando as belas moças de “mocotós” expostos que frequentavam o Jogral, começaram a ser chamados de Trio Mocotó.
“Esse festival também ficou marcado por uma outra questão. Nós subimos ao palco ao lado de Jorge e defendemos “Charles, Anjo 45” debaixo das vaias de um Maracanãzinho lotado. O próprio Jorge já havia composto a música “Eu Também Quero Mocotó”, em relação à essa história que foi defendida no mesmo festival por Erlon Chaves e a Banda Veneno com Jorge e o Trio Mocotó como convidados”.
No início dos anos 70, o Trio Mocotó rodou o mundo ao lado de Jorge Ben Jor e começou a acompanhar e gravar com nomes como Vinicius e Toquinho. Para citar apenas alguns dos grandes sucessos, o grupo trabalhou em gravações clássicas como “País Tropical”, “Regra Três”, “Samba de Orly” “A Tonga da Mironga do Kabuletê”. Tocou e gravou também com Ivan Lins, Sivuca, Gal Costa e muitos outros.
Em 1974, com o Trio Mocotó, gravou um álbum raro com o trompetista americano Dizzy Gillespie, chamado “Dizzy Gillespie no Brasil com Trio Mocotó” , que também era frequentador do bar Jogral.
Posteriormente, por ser um músico inquieto e sempre antenado a novas sonoridades, João Parahyba buscou nas décadas seguintes trilhar seu caminho artístico tendo contato com inúmeros artistas, estilos e gêneros musicais e culturais de diferentes regiões do Brasil e do mundo.
Já nos anos 1990, por exemplo, graças a sua versatilidade, foi um dos primeiros músicos de sua geração a se interessar pelos sequencers midi e baterias eletrônicas, culminando em projetos ao lado do produtor sérvio Mitar Subotic (Suba), como seu disco de percussão reprocessada “Futuro Primitivo” e “Tanto Tempo” de Bebel Gilberto. Tocou e gravou com Ivan Lins, Sivuca, Gal Costa e muitos outros. Contribuiu com artistas de diferentes estilos e gerações. Em 2020, foi convidado por Marcelo D2 para gravar as faixas “A Verdade Não Rima” e “As Sementes”, do disco “Assim Tocam Meus Tambores’.
Aos 73 anos, João Parahyba é um dos nomes mais importantes da percussão brasileira, se tornou uma referência do universo da música instrumental nacional e internacional, aliando composições atuais a clássicos do samba jazz, misturando sonoridades de diferentes épocas a conceitos contemporâneos e segue em plena atividade. “Música pra mim não é instrumento. É som. É frequência. E frequência atinge você, muda seu estado e sua saúde. Não é racional. Você racionaliza para colocar esse som para fora. Por isso que a música é um elemento da alma”.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp:
Imagem acima: João Parahyba durante apresentação (Crédito: Arquivo pessoal)