Pesquisador da Unesp colabora em iniciativa para catalogar todas as espécies fósseis brasileiras

Base de dados integra o Catálogo da Vida e vai contribuir para a compreensão e a preservação da biodiversidade do país.

O Brasil já é conhecido mundialmente pela grande biodiversidade que abriga, em especial nos biomas da Amazônia e da mata atlântica. Agora, uma nova iniciativa vai permitir lançar um olhar também para a imensa variedade de seres vivos que viveram por aqui também ao longo das eras geológicas, por meio da catalogação dos fósseis encontrados em nosso país. A criação do primeiro catálogo do gênero está sendo coordenada  pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e conta entre seus colaboradores com o paleontólogo Renato Pirani Ghilardi, professor da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru.

A iniciativa é um desdobramento mais recente do projeto Catálogo da Vida no Brasil, que é conduzido pelo JBRJ desde 2008. Ao longo deste tempo, foi possível atestar a existência no país de cerca de 125 mil espécies de animais e 50 mil espécies de plantas, entre nativas e cultivadas. Com a consolidação destes catálogos, surgiu há três anos a proposta de ampliar o escopo do levantamento para incluir, também, espécies de microrganismos e fósseis. À época, Ghilardi era presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), e foi convidado a integrar o projeto dos fósseis. “Comecei a atuar no início, avaliando as possibilidades, e desde então temos trabalhado em conjunto”, diz Ghilardi, que atualmente é vice-presidente da SBP.

 Cerca de 20 paleontólogos colaboram no projeto, que está em estágio inicial. O grupo tem trabalhado na programação da base de dados que vai armazenar as informações sobre os fósseis que serão, futuramente, catalogados. A expectativa, diz o docente, é que daqui a um ano o catálogo esteja em funcionamento e o número de profissionais na equipe seja multiplicado. “Temos um prazo de quatro anos conferido pela FAPERJ, a agência financiadora. O que pretendemos é que, após este período, a base de dados tenha sido desenvolvida e esteja disponível e visível para a comunidade, com os primeiros fósseis sendo registrados. A alimentação será um trabalho para toda a vida”, diz.

Entre as informações a serem registradas na base de dados estarão o nome da espécie, a idade do fóssil, o local onde foi descoberto e a condição, e uma descrição de qual segmento da anatomia do animal ou vegetal  ele preserva. A catalogação ficará exclusivamente a cargo de profissionais de paleontologia – uma classe que inclui pelo menos 400 profissionais no país hoje, segundo dados da SBP. Ou seja, pessoas que eventualmente possuam coleções particulares de fósseis não poderão registrar suas peças. Na verdade, tais coleções são irregulares, explica Ghilardi.”A Constituição estabelece que os fósseis são um patrimônio que pertence ao Estado brasileiro. Se alguém armazena fósseis em casa, ou por acaso encontra um, o ideal é que entre em contato com algum centro de pesquisa ou órgão público para que o material possa ser armazenado e preservado da melhor forma”, diz.  

A preservação do patrimônio fóssil no Brasil é um tema problemático. Sabe-se que há um forte mercado paralelo operando, em boa parte atendendo à demanda de compradores do exterior. Recentemente, um museu de história natural da Alemanha repatriou ao nosso país o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, que havia sido contrabandeado anos atrás. “O catálogo não irá solucionar o problema do contrabando mas pode servir como uma espécie de freio”, diz o paleontólogo. Ele também destaca a importância da coleta de dados para aperfeiçoar a preservação do patrimônio fossilífero nacional. “Assim como acontece no caso das espécies vivas, a catalogação vai nos permitir ter uma ideia da diversidade que possuímos, e elaborar políticas públicas para a preservação e que evitem que esses materiais sejam contrabandeados ou destruídos.” Essa diversidade encontrada no Brasil, aliás, é bem maior do que imagina o senso comum, que em geral associa o termo fóssil a uns poucos grupos de animais, como os próprios dinossauros. “Há regiões do Brasil que são conhecidas mundialmente pela sua capacidade de preservar organismos, não apenas dinossauros, mas pterossauros, insetos, vegetais…Aliás, a maior parte do contrabando que ocorre por aqui envolve insetos fossilizados, não dinossauros”, explica.  

Um catálogo para a vida no Brasil

O catálogo de fósseis vai integrar o Catálogo da Vida, que será composto por quatro bases de dados com informações sobre a biodiversidade brasileira. O projeto teve início em 2008, com o desenvolvimento do Catálogo da Flora e Funga do Brasil, que, na época, era chamado de Lista de Espécies da Flora do Brasil. O objetivo inicial era atingir uma meta internacional da Estratégia Global para Conservação de Plantas (GSPC), um dos compromissos assumidos pelo Brasil e por outros países signatários da Convenção da Diversidade Biológica (CDB).

Mais tarde, em 2015, a experiência e as técnicas utilizadas na criação do primeiro catálogo foram base para a construção do Catálogo Taxonômico da Fauna do Brasil (CTFB). “O Ministério da Ciência e Tecnologia e o Ministério do Meio Ambiente acharam que era um bom caminho a ser seguido utilizar a estratégia que a Flora e Funga já tinha utilizado com sistemas online, com taxonomistas validando as informações das espécies”, explica Rafaela Campostrini Forzza, pesquisadora e coordenadora de Coleções Biológicas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

O objetivo é que, em três anos, as bases de dados tanto dos dois catálogos em funcionamento quanto dos projetos para fósseis e microrganismos sejam acessadas por meio de uma interface única, mas continuem operando de forma independente, já que as informações necessárias para a descrição de cada grupo de organismos são distintas.

Forzza diz que já existem bancos de dados internacionais de fósseis, microrganismos, flora e fauna, como o Catalogue of Life. No entanto, a relevância da criação de um catálogo brasileiro está na autonomia. “Hoje, para flora e funga (nome dado ao conjunto dos seres vivos do reino fungi) , todos os sistemas do governo utilizam o nosso banco de dados como dicionário para qualquer iniciativa. Temos a expectativa de que ocorra o mesmo com os outros três, o da fauna, que já está bem adiantado, o de microrganismos e o de fósseis. Queremos autonomia, independência e que a nossa comunidade científica de taxonomistas seja responsável por nomear a biodiversidade no país”, diz.

 A pesquisadora diz que o período de 15 anos de trabalho só fez ressaltar o potencial criativo da comunidade de cientistas engajada no projeto. Atualmente, os catálogos da flora e funga e da fauna funcionam em um sistema criado por profissionais do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) e recebem a cooperação de quase 1.600 sistematas, taxonomistas e cientistas. “Temos uma comunidade qualificada de cientistas colaboradores. Quando ela atua unida, através de um sistema robusto, podemos gerar muitas informações de boa qualidade que podem vir a embasar políticas públicas”, diz . “Este é nosso principal objetivo: atingir os gestores que fazem políticas públicas levando dados de boa qualidade para que as melhores decisões sejam tomadas para conservar as espécies.”

Renato Pirani Ghilardi aponta também o potencial científico da iniciativa da catalogação dos fósseis. “Para os pesquisadores, servirá como uma base científica, por meio da qual será possível, por exemplo, realizar comparações e estabelecer relações entre os animais, vegetais e outros organismos. Se hoje o Brasil é conhecido por sua biodiversidade, queremos estudar os processos evolutivos ambientais que ocorreram em nosso passado que contribuíram para ela. Por exemplo, o estado de são Paulo passou por alterações ambientais como a presença de geleiras, mares e até desertos. Em cada uma destas etapas houve organismos adaptados a estes ambientes, e um catálogo permite visualizar esses processos”, diz.

Imagem acima: foto de um fóssil de gastrópode coletado na Antártida pelo professor Renato Ghilardi em 2022. Crédito: Isabela Calanca.