Dados compilados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e divulgados pelo jornal Folha de São Paulo esta semana estimam em quase R$ 900 milhões o total de recursos que não foram repassados para as candidaturas de cotas nas eleições de 2022, tal como estabelecido pela lei eleitoral. Desse total, R$ 741 milhões deferiam ter sido destinados a candidatos pretos e pardos, e R$ 139 milhões a mulheres. Só dois partidos, UP e PSTU, repassaram de forma adequada aos candidatos pretos e pardos. O Partido Novo não usou verbas públicas. Os partidos que mais deixaram de fazer os repasses adequados foram o PSDB (repassou apenas 39% dos recursos devidos a candidatos pretos e pardos) e o PT (57%).
Para escapar de uma condenação que os obrigue a restituir ao estado os valores não devidamente aplicados, um grupo de 13 partidos e federações partidárias, que inclui os maiores partidos de situação e oposição, PT e PL, está apoiando um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que os isenta de punição por não efetuaram os repasses. A PEC 9/2023 foi apresentada em março, e o texto é claro ao excluir a possibilidade de restituição de recursos, multas ou outra penalização. A peça legislativa está sendo chamada de PEC da Anistia. Em 16 de maio, ela foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
A aprovação, porém, recebeu críticas por parte inclusive de mandatários do governo federal. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou publicamente que a medida seria um “retrocesso inadmissível”. O Ministério das Mulheres divulgou nota oficial dizendo que “a ausência de recursos destinados às mulheres” e “a desresponsabilização dos partidos” constituem violência de gênero. A medida agora deverá ser avaliada por uma comissão, e na etapa seguinte será levada a plenário.
A cientista política Maria Teresa Miceli Kerbauy, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, explica que mesmo com a provisão de recursos estabelecida por lei, os partidos brasileiros, de maneira geral, têm resistido a efetivamente apoiar candidaturas femininas. E isso é reflexo de um ambiente em geral ainda bastante refratário às mulheres. “Basta ver como são poucas as mulheres secretárias ou presidentes de partidos”, diz. Ela, no entanto, duvida que haja apoio, junto à sociedade, para que as agremiações possam driblar essas obrigações sem se exporem ao desgaste político. “Michelle Bolsonaro fez um discurso dizendo que era a favor da retirada da cota de 30% das candidaturas para mulheres. No mesmo dia, foi obrigada a se desdizer”, pondera.
Como a senhora analisa esta iniciativa, bancada por partidos de diferentes pontos do espectro político, de propor uma PEC para anistiá-los por irregularidades cometidas no financiamento de campanha de candidaturas de grupos minoritários, como mulheres e negros?
Essa iniciativa é uma resposta à fiscalização do Tribunal Superior Eleitoral, que verificou que uma grande parte dos candidatos e dos partidos do ano passado não cumpriram a legislação, não cumpriram a proposta do TSE [de cotas para mulheres]. O volume de recursos para o Fundo Eleitoral, como um todo, foi muito grande. Então, se a punição continuar em vigor, os partidos não terão condições de devolver o dinheiro. Afinal, já gastaram os recursos. Na verdade, a questão é essa: os partidos usaram esses recursos para outros fins que não o financiamento das candidaturas de cotas de mulheres e de pretos e pardos.
A incapacidade seguidamente demonstrada pelos partidos em atender esta determinação não pode implicar que talvez o sistema político não possa cumprir essa determinação, pelo menos não neste momento?
Eles podem cumprir. Só que não querem. A legislação estabelece que 30% do Fundo Eleitoral seja gasto com candidaturas de mulheres. Porém, muitas mulheres foram indicadas apenas como candidatas laranjas, só para justificar a distribuição dos recursos. A legislação está correta. Ela visa impulsionar a maior participação feminina e deve assegurar que as mulheres disponham de condições financeiras para participar de uma eleição. Uma eleição para um cargo federal, por exemplo, é algo muito caro.
Há outros países que adotam esse modelo de estabelecer cotas para candidaturas femininas?
Sim. México e Argentina, por exemplo, já estabeleceram que a composição do Congresso deve incluir 50% de mulheres e 50% de homens.
A. ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que a “PEC da Anistia é um retrocesso inadmissível”. No entanto, os deputados do PT têm apoiado essa iniciativa. O próprio governo critica uma iniciativa do partido do governo. Como a senhora enxerga isso politicamente?
Eu não sei quem são os deputados que estão apoiando esta iniciativa, mas ela não está ligada ao governo. É o partido, não o governo, que está envolvido.
A eventual aprovação dessa PEC pode abrir uma brecha para relativizar a importância da obrigatoriedade das cotas nas candidaturas?
Além de anistiar os partidos, a PEC estabelece que os valores que tiverem sobrado dos recursos destinados às cotas e que não foram aplicados podem ser aproveitados nas próximas eleições. Outra mudança é que, embora se mantenha a determinação de que 30% do fundo eleitoral seja investido nas candidaturas de mulheres, não há mais a obrigação de que 30% das candidaturas sejam de mulheres. Ou seja, o percentual a ser investido continua 30%, mesmo que o número de candidaturas femininas seja maior do que 30%. Isso não fortalece o lançamento de um número maior de candidaturas de mulheres. Tanto que, mesmo com todos os recursos que já foram aprovados, o número de candidaturas aumentou muito pouco nas eleições de 2022.
Temos algumas pistas do porquê?
A literatura de representação feminina aponta várias questões. Por exemplo, o partido pode cumprir a cota de candidaturas, mas não dá a elas o apoio financeiro necessário. Para isso foi estabelecido que o fundo partidário deve proporcionar esse apoio. Também pode acontecer que os partidos não apoiem as atividades políticas, os acordos. Nesse caso, as candidaturas das mulheres são lançadas apenas para cumprir as cotas.
Outra coisa é o fato de que é difícil encontrar mulheres na composição administrativa do partido, nos diretórios, em todos os cargos. As mulheres dificilmente escalam na estrutura administrativa dos partidos. Quase não há mulheres ocupando uma secretaria ou a presidência de um partido. Hoje, só o PT e o Podemos têm mulheres na presidência, se não me engano. Então, todos esses fatores contribuem para que as mulheres tenham não só menos condições financeiras, mas também menos condições políticas para lançarem uma candidatura com força capaz de se eleger. Mesmo com as novas regras.
O Brasil continua com o debate sobre qual o melhor modelo de financiamento de campanha. Temos esse modelo de financiamento público, mas cada eleição majoritária se debate se é a melhor maneira de se gastar o dinheiro público.
Desde 2013, quando foi suspenso o financiamento privado, a cada eleição se faz ou se tenta emplacar uma mudança sobre esse tema na legislação eleitoral. Eu acredito que o modelo funciona bem, se houver punição para os políticos e os partidos. Por exemplo, se os partidos tiverem que devolver os recursos que não aplicaram nas candidaturas, vão sentir no bolso. Talvez já na próxima eleição, em 2024, eles possam produzir uma mudança no sistema de financiamento. Se não forem obrigados a devolver esses recursos, as coisas vão continuar iguais. E aí não importa que exista legislação.
A senhora acredita que a PEC venha a ser aprovada?
Acredito que não. Há muita gente contrária ao projeto se mobilizando. E o Congresso é sempre sensível ao seu eleitorado. É preciso levar em conta que o eleitorado feminino hoje é maior que o masculino. Então, vai depender do eleitorado de cada deputado e partido. Mas, por exemplo, o PL colocou a Michelle Bolsonaro como presidente do PL Mulher. Ela fez um discurso dizendo que era a favor da retirada da cota de 30% das candidaturas para mulheres. No mesmo dia, ela foi obrigada a se desdizer, a afirmar que é, na verdade, a favor das cotas, sim. Para que o PL e a Michelle se vissem obrigados a fazer isso é sinal de que essa fala teve uma repercussão muito ruim. Acredito que os partidos que se declararem favoráveis à PEC vão enfrentar uma repercussão muito negativa. Isso inclusive vai contra o que é sustentado por órgãos internacionais, como a ONU, que defendem a construção dessa igualdade entre homens e mulheres.