A Mata Atlântica resiste, mas precisa de muita ajuda

Bioma mais devastado ao longo da história do país voltou a sofrer com desmatamento em escala expressiva. E efeitos das mudanças climáticas já prejudicam sua riquíssima biodiversidade. Mas iniciativas pioneiras mostram que reflorestamento em larga escala é uma possibilidade real.

A história da ocupação e da exploração da Mata Atlântica é uma espécie de espelho da história do próprio Brasil.  Ainda em 1502 o colonizador português deu início à extração do pau-brasil, num movimento pioneiro para justificar o interesse e a exploração posterior daquela área inicialmente denominada de ilha de Santa Cruz – mas que, já em 1505, seria chamada de Terra do Brasil. Esse empreendimento contou também com a cooperação dos povos indígenas, que ficaram impressionados com a tecnologia dos recém-chegados:  se a derrubada de um pau-brasil com machado de pedra consumia três horas, o mesmo trabalho passou a ser concluído em 15 minutos quando utilizavam os machados de ferro fornecidos pelos europeus.  Estimativas conservadoras indicam que entre 1500 e 1872, quando a Coroa exerceu um monopólio estatal sobre as reservas de pau-brasil, 70 milhões de pés dessa árvore foram retirados.

E foi na área originalmente coberta pela Mata Atlântica, que se estende do Nordeste ao Rio Grande do Sul, que se desenrolaram boa parte das atividades dos principais ciclos econômicos do Brasil ao longo dos últimos cinco séculos, como a cana-de-açúcar, a mineração e o café, além da expansão da pecuária e da agricultura. O resultado é que, na área originalmente ocupada pela Mata Atlântica, erguem-se hoje mais de 3,4 mil municípios brasileiros (de um total de 5,5 mil), nos quais são gerados 80% do PIB nacional e onde residem 72% da população. A construção de toda esta infraestrutura se deu a um custo brutal, do ponto de vista do impacto ambiental. Dos 1,3 milhão de km2 de mata atlântica que se estima que havia no território quando da chegada dos europeus, sobraram hoje pouco mais de 460 mil km2.

Mais recentemente, no último meio século aproximadamente, período em que o mundo passou a encarar de frente o desafio do desenvolvimento sustentável, a organização da sociedade civil com a academia e ainda ao lado de partes importantes do governo começou a mudar o contexto de preservação do ecossistema atlântico. Nas duas primeiras décadas deste século, o desmatamento passou a ser contido.

O mapeamento recente das transformações da Mata Atlântica indica que a cobertura florestal passou de 27,1% em 1985 para 25,8% em 2020. Atualmente, outros 25% são ocupados por pastagens; 16,5% por mosaicos de agricultura e pastagens; 15% pela agricultura; 10,5% por formação savânica e outras paisagens naturais. Após o período em que o desmatamento correu solto, entre 1985 e 1990 principalmente, a cobertura florestal atlântica manteve-se estável nos últimos 30 anos. Mas, nos últimos anos, a agenda ambiental brasileira passou por um sério desmonte, e o rastro de destruição voltou a crescer.

Dados compilados pela ONG SOS Mata Atlântica e pelo projeto Mapbiomas mostram que o desmatamento durante os dez primeiros meses de 2022 chegou a 48.660 ha, ou o equivalente a uma média de 75 campos de futebol por dia. Entre janeiro e outubro, Bahia e Minas Gerais aparecem como as unidades da federação que mais desmataram a Mata Atlântica, com totais que alcançavam, respectivamente, 15.814 e 14.389 hectares. O Piauí vem em terceiro lugar, com 6.232. Nos três estados, a grande maioria das derrubadas foi causada pela agricultura: 73,2% na Bahia, 93,4% em Minas Gerais e 64,5% no Piauí. Essa também é a realidade em todo o bioma, onde 86,4% da área foi derrubada com a mesma motivação.

E para além da perda de cobertura vegetal, há muitos outros motivos para lamentar tamanha devastação. Numa perspectiva planetária, a Mata Atlântica se destaca por sua elevadíssima biodiversidade, superior à que pode ser observada em todo o continente europeu. Nela, residem mais de 15 mil  espécies de plantas e mais de 1.860 espécies de  mamíferos, aves, répteis e anfíbios. Destas, 567 só são encontradas ali, o que corresponde a 2% de todas as espécies do planeta somente para esses grupos de vertebrados. Mas, mesmo estas espécies que conseguiram escapar do desmatamento agora enfrentam outra ameaça: os efeitos das mudanças climáticas.

O biólogo Célio Haddad, docente do departamento de Biodiversidade do Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Rio Claro, pesquisa há décadas a fauna da mata atlântica e já consegue ver claramente como as condições ambientais estão mudando. “Trabalho com anfíbios, que são animais muito sensíveis às condições climáticas, tais como chuvas, temperatura e o fotoperíodo. Ao longo dos anos, percebi uma forte alteração no regime de chuvas. Tem sido comum o atraso no início da estação chuvosa. Quando, finalmente, acontece que as chuvas vêm em quantidade, muitas vezes já não se observa mais o fotoperíodo mais favorável à reprodução dos anfíbios, porque esses animais precisam de chuvas intensas entre outubro e março para que possam se reproduzir normalmente”, diz o biólogo. “Essas mudanças têm afetado fortemente a reprodução de diferentes espécies endêmicas da Mata Atlântica e, por conseguinte, resultado em declínios populacionais”, diz.

O cenário de desconforto para os sensíveis anfíbios por causa das mudanças climáticas está também sendo potencializado por doenças infecciosas, e os dois fatores estão se combinando em uma espécie de ciclo fatal, segundo Haddad. “Existe uma sinergia entre esses dois fenômenos que potencializa as doenças, acometendo os anfíbios e resultando em declínios populacionais pelo adoecimento e até a morte de indivíduos. Em particular destaco a doença causada pelo fungo Batrachochytrium dendrobatidis, chamada de Bd, que se tornou uma pandemia mundial e está dizimando os anfíbios em diferentes regiões do planeta” explica Haddad. 

Os dados apontados pelo estudo das populações de anfíbios no nível do solo estão em sintonia fina com as informações captadas pelos satélites, divulgadas com frequência pelos cientistas. O próprio Mapbiomas, em setembro de 2022, apresentou um estudo inédito revelador. A pesquisa mostra que um quarto da cobertura florestal da Mata Atlântica está preservada, mas de forma não homogênea, ao longo de todo o bioma. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram imagens de satélite produzidas entre os anos de 1985 e de 2020 que monitoraram os 465.711 km2 remanescentes do bioma que são encontrados em 17 estados (a área contínua estende-se por apenas 15 estados). 

“Grosso modo, ainda estamos desmatando um terço daquilo que vem se regenerando de forma natural. O ideal seria que essa vegetação permanecesse em pé “, afirma Luís Fernando Guedes Pinto, diretor-executivo da SOS Mata Atlântica. Para o especialista também existe uma discrepância importante em se tratando de mata atlântica que precisa ser considerada. Enquanto a floresta está mais preservada em estados como São Paulo, mesmo que de forma desigual, o bioma continua experimentando redução na sua extensão na Bahia, em Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná, por exemplo. “O nosso primeiro grande desafio é promover o desmatamento zero na Mata Atlântica. Já deveríamos ter atingido essa meta faz tempo”, diz Guedes Pinto.

Essa péssima prática de destruir a floresta antes mesmo que ela tenha se regenerado de forma plena, que infelizmente é recorrente, em combinação com as mudanças nos padrões climáticos, aumenta a fragilidade do bioma, diz Haddad. “Diferentemente da Amazônia, a Mata Atlântica passou a enfrentar as mudanças climáticas num momento em que já havia sofrido muito com o intenso desmatamento. Portanto, na Mata Atlântica há mais fatores de degradação que se potencializam. Além de reduzirmos o uso de combustíveis fósseis e de qualquer agente artificial que gere efeito estufa, precisamos, de fato, reconstituir a Mata Atlântica por meio de reflorestamento verdadeiro, com plantas da floresta. Afinal, plantar eucalipto e pinus não é reflorestamento e sim plantação. Muito do que foi desmatado foi feito de forma ilegal e quem desmatou ilegalmente tem que ser processado e ser obrigado a reconstituir a floresta ilegalmente suprimida”, defende Haddad. Guedes Pinto, da SOS Mata Atlântica, também concorda que o caminho é espalhar os processos de restauração, hoje feitos ainda de forma local, para a maior parte do bioma. 

A regeneração em grande escala é possível

“O Brasil tem todo o potencial para se tornar um grande polo mundial da ciência da restauração”, afirma Ricardo César, pesquisador da ONG IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas). “A depender da abordagem que for feita, existe uma história nessa área que vem desde os anos 1930. Os viveiros de mudas e sementes estão estruturados e, além disso, são várias as redes que estão voltadas para o fomento da restauração das matas”, explica o especialista. De acordo com César, é sempre bom lembrar que, quer se trate da restauração incentivada pelo homem ou mesmo o processo de restauração natural, nunca se consegue obter novamente a mesma estrutura botânica e zoológica da floresta original. “Pelos menos, desde que começou a fazer este tipo de estudo, isso nunca foi observado.”

O engenheiro florestal Laury Cullen, também da IPÊ, uma das grandes referências brasileiras quando o assunto é restauração florestal, avalia que a questão do mercado carbono, que vem obrigando muitos agentes do setor privado a entrar na área da restauração florestal, deve dar o impulso necessário para que a recuperação de grandes áreas hoje impactadas na Mata Atlântica ganhe escala. “Nós temos áreas e também conhecimento para escalar esses projetos. Além de uma legislação eficiente. Mas claro que tudo deve ocorrer com base na ética, na regulação, na validação e na certificação dos processos”, explica o engenheiro florestal que há 26 anos se mudou para a região do Pontal do Paranapanema para começar um trabalho de recuperação da paisagem. 

Desde que começou, o projeto Mapa dos Sonhos, de Cullen, orientou a restauração de 2.000 hectares de floresta e o plantio de quatro milhões de árvores, e gerou 2 milhões de dólares para a economia local. Em contraste com outras regiões onde o desmatamento persiste, essa expansão da renovação agora também está ajudando o mundo a combater as mudanças climáticas, armazenando 800.000 toneladas de carbono todos os anos. 

As atividades do projeto são desenvolvidas pela comunidade local, como representantes de comunidades sem-terra instaladas no interior de São Paulo. “O mercado de carbono veio para dar conta do passivo ambiental que temos, na agenda dos mecanismos de compensação que foram criados. Além disso, é importante citar que a restauração de 800 a 1.000 hectares, por exemplo, gera por volta de 200 empregos para as comunidades. É cinco vezes o gerado pela indústria”, afirma Cullen. Esses resultados, explica o pesquisador – que com o projeto ganhou o prestigiado Prêmio Rolex de Empreendedorismo em 2004 –, geram um sentimento de orgulho e confiança. “A confiança é o elo que mantém o relacionamento entre nós e a população local. Quando existe confiança, a comunicação flui, é instantânea e torna a vida fácil”, afirma.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Biomas do Jornal Unesp. Nesta série, o Jornal da Unesp mapeia os desafios ambientais presentes nos diferentes biomas do Brasil.

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