O anúncio de uma tentativa de invasão em uma escola ocorrida quarta-feira, 26, em Osasco, na Grande São Paulo, por parte de um agressor armado – felizmente frustrada pela ação de funcionários e das forças de segurança – trouxe mais uma vez para o noticiário o fantasma dos ataques violentos a escolas. A ação ocorreu poucas semanas depois que outro agressor chocou o Brasil ao atacar uma creche em Blumenau, SC, e fazer seis crianças de vítimas. Na ocasião, o país ainda lamentava o crime cometido por um estudante de uma escola de ensino médio em São Paulo, que matou a facadas uma professora de 70 anos em fins de março.
Para a psicóloga Luciene Regina Paulino Tognetta, especialista em psicologia escolar e professora da Faculdade de Ciência e Letras da Unesp, câmpus Araraquara, não há dúvidas de que vivemos uma triste escalada desses acontecimentos no Brasil. Há mais de uma década ela estuda o bullying escolar e, à frente do Grupo de Estudos em Educação Moral Unesp/Unicamp, vem observando de perto esta explosão de violência que ronda os pátios escolares. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ela explica que se trata de um fenômeno multicausal, e que a esperança de resolução dessa onda de ataques deve passar pela adoção de medidas de curto, médio e longo prazo.
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De 2021 até agora, tivemos pelo menos seis ataques consumados a escolas no Brasil. Na sua percepção, esse tipo de evento está se tornando mais comum? E se sim, por quê?
Luciene Tognetta: Sim. Segundo pesquisa do nosso grupo, o GPEM (Grupo de Estudos em Educação Moral) de 2002 a 2018, houve oito ataques. De 2019 a 2023 tivemos dezoito ataques. Não é só uma sensação, houve de fato um aumento real de casos de ataques e mortes. E que correspondem a um fenômeno multicausal e que tem sido explicado de uma maneira bastante interessante, como se fosse um iceberg do qual só vemos a ponta.
Quando se explicam as causas desse crescimento tentando justificar o todo pelas partes, chega-se a uma interpretação bastante equivocada. Ou seja, quando se tenta atribuir os ataques ao aumento do bullying, ou indicando que se trata de um problema de saúde mental, ou apontando sua relação com o aumento de circulação das armas, ou um problema ligado à internet… Isso é tomar as partes pelo todo. Trata-se de um fenômeno mundial, mas no Brasil tem ocorrido uma escalada e as pesquisas já revelam que sua origem é multicausal. E, por essa razão, é preciso olhá-lo por todos esses ângulos. Não se deve apenas ao aumento no bullying ou nos transtornos mentais em crianças e jovens. Não é só um problema relacionado ao acesso a armas por cidadãos comuns, ou por conta de uma legislação para a internet que é débil, e também não é só um problema da escola.
Os ataques no Brasil seguem algum tipo de padrão? E se há, esse padrão tem semelhanças com os ataques que ocorrem lá fora?
Luciene Tognetta: Sim, eles seguem um padrão, que é parecido com os ataques vistos em outros países. São executados principalmente por homens, embora algumas pesquisas indiquem participação feminina nos grupos que planejam os ataques e que lideram esses ataques nos antigos chats que hoje migraram para redes abertas, como Telegram, TikTok, Twitter. Os encontros desses grupos ,desses adolescentes, que antes aconteciam na Deep Web, hoje acontecem às claras. Ou seja, nossos filhos, adolescentes e crianças estão cada vez mais expostos a eles.
Inclusive, porque o aliciamento dos adolescentes ocorre nos games jogados coletivamente. Então o problema não é o jogo, mas sim o fato de que os adolescentes têm sido aliciados nos chats desses games. Esses aliciadores conhecem a dinâmica do comportamento adolescente. Eles sabem o quanto os jovens se sentem excluídos, e os levam para esses grupos em que o valor é a violência. Há lá uma idolatria àqueles que já protagonizaram episódios de violência no mundo.
Então, nesse padrão que também acontece no Brasil, o perfil é de meninos e homens, na faixa entre 17 e 25 anos, brancos, não são pobres e têm acesso irrestrito à internet. Este é o padrão.
No ataque em Santa Catarina, vimos uma pessoa adulta atacando uma pré-escola. Quer dizer, não havia qualquer ligação pessoal entre o autor do ataque e a escola. Essa ocorrência também segue algum padrão?
Luciene Tognetta: Sim, também segue um padrão: foi na escola. Por que atacar uma escola? Por que não um ponto de ônibus, ou um shopping, ou um show, ou um jogo num estádio de futebol? A resposta pode ser ‘porque nesses lugares tem um monte de policial, detector de metal’, ou ‘porque no ponto de ônibus ele podia matar e sair correndo’. Mas quem faz um ataque desses não está interessado em sair. É como se fosse um kamikaze: não se importa com a necessidade de sair ou de ser pego pela câmera. Aliás, se a câmera pegá-lo, ótimo, porque alguém vai comemorar.
Ele até procura a escola pela sua fragilidade. Mas não é isso. Isso explica porque, mesmo em escolas cívico-militares, tivemos casos de violência. Se seguirmos o modelo das escolas americanas, colocando detectores de metais, policiais em frente ao prédio, não ha garantia de que os ataques irão cessar. Há pesquisas mostrando que as escolas mais policiadas são as mais atacadas, em comparação com outras em que não há policiais.
A escola tem uma representatividade de ser vista como espaço de acolhida, como espaço de pertencimento. Essa palavra pertencimento é a chave para explicar quais são as políticas públicas que se deve adotar, no médio e no longo prazo, para a transformação da escola, para que não haja mais ataques como os que foram vistos em Suzano e Realengo. Não podemos nos esquecer deles.
A senhora acha que eles foram esquecidos?
Luciene Tognetta: O que foi feito em São Paulo, em termos de políticas públicas para combater os ataques, depois do ataque na cidade de Suzano? Apenas uma apostila com um plano de convivência. Isso é cruel demais com a escola. Não precisamos de uma apostila, mas sim de espaços em que as pessoas possam construir um plano de convivência juntas. Precisamos de um diagnóstico da realidade. Mas o que o governo do estado de São Paulo fez com o diagnóstico do clima escolar que nós fizemos? Nada. Então, o que representou [ o ataque em] Suzano para São Paulo? Nada.
Um rapaz de vinte e cinco anos decide atacar uma escola porque ela é um espaço de bem-estar e representa aquilo que falta na sua vida, ou que faltou, quer ele tenha consciência disso ou não. Claro que nem todo menino que não se sente pertencente à escola, ou que sofreu bullying, vai se tornar um agressor violento e sanguinário. E nem toda pessoa que ataca o faz somente porque se sentiu assim. Mas a ausência do sentimento de pertencimento é um dos elementos mais importantes para levar alguém ao sofrimento emocional ou a se sentir excluído, solitário, indesejado, com pouco valor, desrespeitado e portanto tentar se sentir valorizado por outros grupos, nos quais possa executar feitos que sejam admiráveis. E esses agressores encontram essa possibilidade de valorização nesses grupos misóginos e extremistas.
Mas, após os ataques à Escola Estadual Thomázia Montoro em abril, o governador Tarcísio anunciou ter optado por não instalar detectores de metais e pela contratação de até mil vigilantes desarmados, após ter ouvido as demandas de professores e diretores das escolas.
Luciene Tognetta: Porque existe uma sensação de insegurança, de desproteção, que é real e vemos a necessidade de agir. É necessário diminuir essa sensação de insegurança dessa comunidade educativa, dos professores e dos pais. Acabei de falar agora com uma diretora de escola particular que não tem ronda policial e que estava desesperada, dizendo que os pais estão ameaçando a escola se ela não contratar um segurança. Eu disse que a primeira coisa a fazer é acolher os pais. Eles estão inseguros e se sentindo desprotegidos e têm razão, porque essa sensação é real. Esses agressores são pessoas que, de fato, têm uma sociopatia,
não valorizam a própria vida. Como disse, é como se fossem kamikazes. A vida deles tem pouco valor e, portanto, as dos outros têm menos ainda. Aliás, o agressor do ataque em Blumenau tinha a pretensão de matar muito mais, mas ele não contava que alguma professora ia pular no pescoço dele. Ele se assustou com o heroísmo de algumas professoras porque, para ele, a escola é lugar de pessoas frágeis, débeis.
Neste momento, por necessidades de curto prazo, é preciso minimizar essa sensação de desproteção. E é por isso que a ronda escolar é necessária. é necessário colocar seguranças na porta da escola, pedir para que a polícia esteja presente na hora da entrada e saída. Isso diminui essa sensação, por parte dos educadores e dos pais, e também inibe a ação desses criminosos. Mas, a médio e a longo prazo, isso não é suficiente, porque essas medidas não dão conta de todas as causas de um fenômeno multicausal, como eu disse lá no começo.
O que falta?
Luciene Tognetta: Não é só com o policiamento que isso vai se resolver. Seguindo o modelo do Iceberg, o que não está sendo abordado, por exemplo, é a leniência da legislação, que até semana passada impedia a criminalização de perfis que fazem discursos de ódio no TikTok, por exemplo. A longo prazo, precisamos de regulamentação da internet, de medidas contra esses discursos de ódio.
Outra medida de longo prazo é oferecer ferramentas para que os professores saibam como ajudar os pais a se aproximarem dos filhos e estabelecerem relações de confiança, a discutirem sobre o que admiram e o que devem ou não admirar que vai determinar o que “curtem”e o que “não curtem”na Internet ao invés de achar que temos o controle sobre os filhos na internet… É necessário oferecer formação aos professores para que eles ensinem seus alunos a conviver em harmonia, sem que seja preciso usar uma faca para resolver cada problema.
A senhora está apontando insuficiências da escola. Mas, em um certo sentido, isso não é botar uma carga maior na instituição que é a vítima dos ataques?
Luciene Tognetta: Mas não disse que essas devem ser as únicas medidas a serem adotadas. Como mencionei, no longo prazo, o ataque que ocorreu em Suzano não gerou efeitos. E aquele acontecimento deveria ter levado a uma mudança estrutural na política educacional. É disso que estamos falando, de uma política que gere transformação do interior da escola. Porque é na escola onde acontece a facada dada por um menino.
Em uma reportagem, a professora que ajudou a conter e tirou a faca da mão do estudante [autor do ataque à escola Thomázia Montoro] disse que não reconheceu o garoto. Disse que era um menino quieto, que nunca falava nada. Mas aí eu pergunto: quando é que esse menino teve a oportunidade de participar de alguma assembleia para poder falar sobre as regras da escola? Quando é que esse menino teve algum protagonismo, que, como já está mais do que comprovado pela literatura, traz a oportunidade de fazer com que os alunos participem e possam desenvolver, por exemplo, empatia pelos colegas? Quando é que a escola fez isso? Porque esses professores não sabiam nem da existência desses alunos.
O menino de Suzano, as professoras nem se lembravam dele. Por quê? Porque ele era um aluno sentado, que nunca deu trabalho. Aluno que não dá trabalho, a gente nem olha pra ele, nem lembra dele. Eu me coloco no lugar de professora aqui. Sim, nós pulamos esse aluno porque não temos tempo para trabalhar com um tema legítimo da escola que são as questões de convivência. Isso pode fazer os alunos participarem, permite que possam falar sobre o que pensam e sentem. Ao contrário, o professor se concentra em cobrir o conteúdo previsto pelo programa.
Mas isso não seria transferir para as escolas uma tarefa das famílias? No sentido de que essa sensação de valorização pessoal é algo a ser construído também no âmbito do relacionamento íntimo. Muitas vezes, os professores têm mais de 30 alunos em sala de aula, e alguns casos, alunos atípicos também, para ensinar e dar atenção…
Luciene Tognetta: Existem programas de formação de professores voltados justamente para pensar quais são os problemas de convivência que os alunos enfrentam na escola, e como lidar com eles. Existem também formações para ensinar a lidar com os comportamentos dos alunos. Mas, muitas vezes, essas formações não chegam até os professores.
O que eu digo é que é preciso investir. E investimentos não acontecem de um dia para o outro. Isso exige um plano de três, de quatro anos, para que se possa oferecer essas formações a todos os professores, e proporcionar também formação contínua para eles. Nem na graduação os professores recebem alguma formação que ensine o que fazer em casos de bullying. E, quando eles já estão atuando na escola, oferecer apenas uma palestra que fale sobre bullying não dá conta de resolver.
É preciso que os professores pensem sobre essa temática, que eles tenham tempo para discutir sobre os problemas que eles têm na escola, que possam estudar sobre isso. Enquanto não houver uma política estruturada pra pensar esses problemas conjuntamente, vamos continuar sem resoluções. E não é algo vindo de cima pra baixo; tem que vir precisamente de uma política organizada, na qual exista espaço para que as escolas possam discutir os problemas com os professores, que são os que estão lá no chão da escola.
Imagem acima: Mulheres em frente à escola estadual Thomázia Montoro, em São Paulo, após o ataque em 27 de março que vitimou uma professora. Crédito: EBC.