Celebrado pela primeira vez, Dia dos Povos Indígenas visa fortalecer direitos e identidades das diferentes etnias que compartilham o Brasil

Nova denominação substitui o antigo dia do índio. Ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a vetar mudança, mas foi derrotado no Congresso. O antropólogo Paulo Santili diz que nome é mais adequado para identificar a imensa diversidade dessa população, que alcança mais de 300 grupos e 270 línguas nativas, e que abre caminho para superação de estereótipos formados por visão colonial. “Este é um termo que foi escolhido pelos próprios indígenas, não imposto a eles”, afirma.

Nesta terça-feira, 19 de abril, o Brasil celebra oficialmente, e pela primeira vez, o Dia dos Povos Indígenas. A lei nº 14.402, publicada em 8 de julho de 2022, estabelece a nova denominação e revoga o decreto de 1943 que instituiu o Dia do Índio. A data é dedicada a celebrar a cultura e herança indígena em todo o continente desde o 1º Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em 1940.

De autoria da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), o Projeto de Lei foi aprovado em 4 de maio, mas o então presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou a mudança. Entretanto, no dia 5 de julho, em sessão conjunta do Congresso Nacional, os parlamentares derrubaram o veto do ex-presidente. No Senado foram 69 votos a favor da derrubada, sem votos contrários. Na Câmara, 414 deputados rejeitaram o veto contra 39, mais 2 abstenções. Joenia Wapichana, a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no Brasil e primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, se tornaria depois a primeira indígena a presidir a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nomeada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro de 2023.

O Projeto de Lei recebeu relatório favorável do senador Fabiano Contarato (PT-ES). Segundo Contarato, o termo “povos indígenas” é preferido pelos povos originários, que veem a designação “índio” como preconceituosa. Ainda de acordo com o relator, o termo “indígena”, que significa “originário” ou “nativo de um local específico”, é uma forma mais precisa pela qual devemos nos referir aos diversos povos que, desde antes da colonização, vivem nas terras que hoje formam o Brasil.

Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), durante discurso no Plenário, afirmou que foi muito significativa a mudança oficial de nome, do tradicional Dia do Índio, para Dia dos Povos Indígenas. Segundo Lira, a mudança foi relevante “porque traduz o reconhecimento pela sociedade da enorme quantidade de etnias, línguas e culturas únicas dos povos indígenas do país”. Segundo o presidente da Câmara, a diversidade contribui para a riqueza do patrimônio cultural da nação e deve ser cada vez mais valorizada, respeitada e protegida.

Paulo José Brando Santilli, antropólogo e professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, explica que a celebração do “Dia dos Povos Indígenas” denota diversidade e pluralidade; o objetivo de adotar uma designação mais compreensiva está em reconhecer os direitos desses grupos em fortalecer suas identidades, línguas e religiões, e a afirmarem plenamente suas  formas de vida.


“O que muda neste ano de Dia do Índio para o Dia dos Povos Indígenas? O que sobressai à primeira vista com a vigência da nova lei é a mudança do singular para o plural. O termo ‘povos indígenas’ vem denotar o sentido de pluralidade. Uma designação mais compreensiva a fim de abarcar a existência de mais de 300 povos indígenas falantes de mais de 270 idiomas atualmente no Brasil. Esta acepção pluralista dos povos indígenas induz à celebração oficial da data, ao deslocar a alusão anterior mutiladora, que se restringia a indivíduos, e passar a designar coletividades. Isso é mais condizente com sua presença, atuação e relevância em toda a vida do país”, diz Santilli.

O antropólogo lembra que cada um destes povos apresenta suas particularidades nos mais diversos aspectos, seja cultura, linguagem, organização, gestão ou interação ambiental. Logo, tal acepção coletiva é mais adequada para a compreensão e o reconhecimento dos direitos dos povos originários. “É condição para alcançarmos um convívio menos violento e mais profícuo entre os diversos segmentos que constituem a sociedade brasileira, livrando-se de estereótipos pejorativos, forjados pelo colonialismo. Por fim, e não menos importante, povos indígenas é uma autodesignação, isto é, como os próprios indígenas se designam perante a sociedade brasileira e não uma designação atribuída por outros. Portanto, é uma designação tanto mais idônea quanto legítima. E tal mudança na legislação é bastante significativa, preciosa e certamente positiva”, destaca.

Na visão do professor da Unesp, a mudança contribui para consolidar e favorecer as ações em defesa dos direitos indígenas existentes, a começar pela adequação da legislação ordinária anterior aos direitos indígenas inscritos na constituição de 1988. “A designação coletiva e plural vem consolidar tanto os direitos indígenas constitucionais como os direitos territoriais. Por exemplo, o direito ao usufruto exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas, que é, por definição, um direito coletivo dos povos e não meramente individual ou privado. Também é o caso dos direitos à educação e à saúde diferenciados, para que não se afronte as concepção e práticas próprias. Por exemplo, a terra indígena Araribá, situada no município de Avaí, é uma terra indígena reconhecida oficialmente de usufruto exclusivo dos povos Guarani e Terena. Portanto, direito coletivo reconhecido destes povos e não de indivíduos.”

Reconhecido por sua carreira como pesquisador e colaborador na luta pelos direitos dos povos indígenas, Paulo Santilli acrescenta que a mudança na categorização da data comemorativa pode prestar-se a inspirar e motivar a identificação, o reconhecimento, a pertinência e a filiação, por parte de indivíduos e de grupos, tanto às etnias anteriores a colonização, como também a outras etnias indígenas constituídas posteriormente. “A mudança na legislação ocorrida no ano passado não altera ou agrega sujeitos históricos detentores de direitos. Conforme consta na justificativa da autora do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional no ano passado, a deputada Joênia Wapichana a lei trata de atualizar para uma nomenclatura mais respeitosa e mais identificada com as comunidades indígenas nesta celebração oficial já consagrada.”

Já em relação às formas de visões sobre os povos indígenas e as novas celebrações, o docente diz que será um avanço passarmos das imagens estereotipadas, veiculadas nos filmes de TV, no cinema e dos livros didáticos, para as imagens reais. “Acho que a data devia ser uma celebração da vida e contra a morte. Ou mesmo, como deverá acontecer de fato, do próprio protagonismo dos povos indígenas, que deverão realizar mais uma edição do Acampamento Terra Livre em Brasília até o final deste mês. Lá, milhares de indígenas vão trazer a público, na capital do nosso país, a reafirmação dos seus direitos nas questões mais importantes, como o direito à terra, à educação e à saúde diferenciados. E, sobretudo, os protestos contra a devastação da natureza em seus modos próprios, com suas vozes próprias, alertando todo o país para a situação de extinção maciça das espécies vivas e de emergência climática ameaça a vida de todos nós neste mesmo mundo.”

Ouça abaixo a íntegra da entrevista com Paulo Santili.

Imagem acima: indígenas no Acampamento Terra Livre, em Brasília, em 2019. Crédito: Agência Brasil/José Cruz.