O anúncio da suspensão, por 60 dias, do cronograma de implementação do novo modelo de ensino médio por parte do Ministério da Educação segue suscitando debates e controvérsias. Para Neusa Maria Dal Ri, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências e do Programa de Pós-Graduação em Educação do câmpus da Unesp em Marília, especialista nas temáticas de política educacional, gestão democrática e educação e movimentos sociais, a medida é bem-vinda, e oferece uma oportunidade para rever aspectos do chamado Novo Ensino Médio que seriam problemáticos.
Desde 9 de março, há um processo de consulta pública em andamento para avaliar a proposta do Novo Ensino Médio. Já a portaria anunciando a suspensão temporária foi publicada em 4 de abril no Diário Oficial da União. O ministro da Educação, Camilo Santana, disse que a suspensão vai permitir a conclusão da consulta pública e a incorporação de eventuais alterações ao seu modelo. “Avaliamos que houve erro na condução da execução da reforma. Não houve orientação, não houve formação de professores, nem adaptação para infraestrutura das escolas. Não se faz uma mudança no ensino de uma hora para outra. Faltou diálogo e eu como governador senti isso à época. Agora vamos manter o diálogo”, disse Santana.
A portaria prevê a implementação da reforma em todos os anos do ensino médio até 2024. As avaliações como Saeb e Enem também devem passar por alterações até o ano que vem.
Aprovado em 2017 pelo governo do ex-presidente Michel Temer, o Novo Ensino Médio traz uma série de mudanças para a última etapa da educação básica. Pelo cronograma do MEC, as alterações devem ocorrer de forma escalonada. Entre as principais mudanças está o aumento da carga horária e a possibilidade de os alunos escolherem parte das disciplinas que querem cursar. Aqueles que defendem a reforma do ensino médio, alegam que um dos objetivos do projeto é atrair o estudante do ensino médio, etapa considerada mais desafiadora e com os piores dados de evasão no Brasil. Pais e alunos ainda se perguntam sobre o que, de fato, vai mudar, e se os estudantes, sob o Novo Ensino Médio, continuarão a estudar todos os conteúdos necessários à sua formação.
O ensino médio concentra os piores índices de evasão escolar, e os alunos desta faixa obtêm resultados inferiores no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Em 2019, o indicador avançou 4,2 pontos, mas, ainda assim, apenas dois estados alcançaram as metas previstas. Dados do IBGE de 2019 mostraram que 11,8% dos jovens entre 15 e 17 anos —cerca de 1,1 milhão— estavam fora da escola nessa faixa etária. Entre os 6 e 14 anos, a taxa de presença era de 99,3%.
Neusa Maria Dal Ri apóia a suspensão. “Essa é uma medida pela qual lutamos pesquisadores, entidades representativas nacionais e estaduais de professores, estudantes, e também movimentos sociais”, diz ela. Ela aponta pontos da reforma que considera bastante problemáticos. Um deles é que o processo estaria sendo conduzido “de forma impositiva, ou seja, de cima para baixo. Sem discussão com os sujeitos diretamente relacionados com o nível de ensino. No caso, alunos, professores e pais. Assim, dificilmente poderia haver bons resultados”, diz. Ela destaca que foi preciso aguardar a posse de uma nova administração federal para que o ministério abrisse um diálogo com parte daqueles diretamente interessados nessa reforma, por meio da consulta pública.
A docente elenca problemas na maneira como o projeto foi concebido. “Os maiores influenciadores na elaboração do projeto do Novo Ensino Médio foram as fundações e institutos privados de educação, como a Fundação Lemann, o Instituto Ayrton Senna, o Movimento Todos pela Educação e outros. Os participantes desses institutos não são especialistas em educação. Na verdade, o projeto foi conduzido sem que se levantassem as reais condições da infraestrutura e o número de professores disponíveis nas escolas, para saber se essa implantação poderia ou não ser acontecer”, diz. Ela questiona os objetivos dessas fundações ao interferirem na educação pública. “Parece que querem retirar a gestão escolar das mãos dos professores e dos demais membros dos segmentos das comunidades acadêmicas. Isso poderia afetar a gestão democrática do ensino público, que é apontada tanto na Constituição Federal como na Lei de Diretrizes de Bases.”
Para a docente da Unesp, esse modelo de reforma oferece aos alunos uma formação pouco qualificada e voltada para o mercado de trabalho. “O conceito trabalhado com os alunos nos chamados ‘itinerários formativos’ é o do empreendedorismo, que dissemina entre os estudantes a ideia de que todas as pessoas podem ser empresários de si mesmos, ter sucesso e alcançar os seus sonhos. Porém, ao se observarem atividades desenvolvidas nesses itinerários, eu pude localizar algumas como ‘aprenda a ser um milionário’. Ora, podemos perguntar, quem vai ensinar os alunos a serem milionários? Os professores que estão há anos com a formação precarizada, o salário super-rebaixados e tem que trabalhar em duas, três ou mais escolas por dia para conseguirem sobreviver? Ou ao contrário, vão se convidar efetivos empresários que sejam milionários a cada escola, para discursar para os alunos? Isso está fora da realidade. E outras atividades que observei, por exemplo, visam treinar os alunos para se tornarem mão-de-obra desqualificada e para ingressarem no mercado de trabalho informal, sem nenhum direito trabalhista.”
Dal Ri diz que já estudos sobre os efeitos da adoção da reforma conduzidos no estado de São Paulo, que em 2020 se tornou o primeiro Estado a implantar o currículo do Novo Ensino Médio (2020).
“O projeto propõe a oferta de 10 itinerários nas áreas básicas para que os alunos possam fazer as suas escolhas. De acordo com suas tendências, eles podem optar por uma área, e no interior delas, pelos itinerários. As pesquisas mostram que na grande maioria das escolas do Estado existe a oferta de apenas um ou dois itinerários. Isso decorre da falta de professores em todas as escolas para desenvolverem essas atividades. Houve também um considerável aumento da carga horária. Porém, para que essa elevação da carga horária possa acontecer, e os alunos permaneçam mais tempo nas escolas, é necessário que as escolas tenham infraestrutura: mais salas de aula, materiais, equipamentos, merendas, muito mais profissionais para desenvolver as atividades… Ou seja, tudo aquilo que as escolas não têm.”
A conclusão da professora é que, na prática, não estão sendo ofertadas as alunos as escolhas apresentadas no projeto. “O resultado mais imediato e visível dessa reforma é que ela aumentou a desigualdade escolar que já existe no sistema educacional brasileiro. É por esses motivos, principalmente, que sou pela revogação imediata do Novo Ensino Médio. A sua revogação não significa voltar ao modelo anterior, que também apresentava problemas. Mas sim a possibilidade de se realizar novas reflexões críticas junto com as escolas, junto com os pesquisadores e se elaborar um projeto novo que atenda os interesses e necessidades dos filhos da classe trabalhadora. Que, ao final, são aqueles que de fato frequentam a escola pública.”
Ouça abaixo a íntegra do depoimento de Neusa Maria Dal Ri.
Foto acima: estudantes do ensino médio durante prova do ENEM, em Brasília. Crédito: Gabriel Jabur/Agência Brasil.