Fabio Mazzitelli, Nathan Sampaio
Um estudo de campo realizado por pesquisadores da Unesp em áreas de Mata Atlântica no interior do estado de São Paulo revelou um tipo de relação ecológica até então inédita no Brasil: voos rasantes de uma espécie de morcegos que visitam planta parasita de raíz, Scybalium fungiforme, conhecida como cogumelo-de-caboclo ou esponja-de-raiz. O mutualismo entre o morcego-beija-flor (Glossophaga soricina) e a planta ocorre por meio de uma facilitação realizada por gambás e aves e foi descrito pelos cientistas no artigo “Opossums and birds facilitate the unexpected bat visitation to the ground-flowering Scybalium fungiforme”, publicado na revista Ecology, um dos principais periódicos da área.
O relato descreve as relações ecológicas registradas em vídeo pelo biólogo Felipe W. Amorim, professor do Instituto de Biociências do câmpus de Botucatu (IBB) e primeiro autor do artigo. Junto com a sua equipe de estudantes e colaboradores, o docente tem estudado a planta Scybalium fungiforme há alguns anos. Os flagrantes mostram a visita, classificada pelos cientistas como “inesperada”, dos morcegos à planta, cujo conjunto de flores (inflorescências) brota bem próximo do solo. Após a remoção das brácteas (folhas modificadas) de cor vermelha e semelhantes a escamas, as minúsculas flores terminam ficando expostas junto com o abundante néctar. É neste momento, sem as brácteas, que surge o morcego beija-flor, que costuma adejar (bater as asas velozmente, pairando no ar feito beija-flor) em frente às flores para se alimentar do néctar açucarado secretado pela inflorescência..
O “inesperado” desta relação de tipo mutualística entre os quirópteros (única ordem de mamíferos voadores) e a Scybalium fungiforme está caracterizado por dois fatores. Primeiro, porque tanto os voos rasantes quando os pousos nas flores que foram observados (e que mostraram que os mamíferos voadores podem permanecer por quase um minuto lambendo o néctar e o pólen rente ao chão) deixam os morcegos expostos a predadores. O segundo motivo é o fato de que se trata do primeiro registro deste tipo de comportamento feito fora da Oceania.
Os vídeos analisados pelos pesquisadores, e publicados em sua página no YouTube,mostram em detalhes o pouso e o comportamento do morcego em cima da planta, algo incomum. “Eles (morcegos) correm um risco enorme de serem predados por outros animais, inclusive pelo gambá”, diz Amorim, que tem particular interesse em biologia evolutiva e mutualismos, especialmente mutualismos entre plantas e polinizadores.
O artigo publicado na Ecology se detém ainda na descrição do processo de facilitação ecológica, algo também incomum entre polinizadores que compartilham a mesma planta, como se observa no caso do cogumelo-de-caboclo. Esse conceito descreve um tipo de relação indireta, nome dado às interações em que duas espécies não interagem entre si, e os efeitos de uma sobre a outra se dão por meio de interações com uma terceira espécie. Essa interação resulta em benefícios para pelo menos uma das espécies. No caso do cogumelo-de-caboclo, a remoção das brácteas pelo gambá e/ou pelo tiê-preto, ave que também visita a planta, abre caminho para que outros animais também possam consumir o néctar e o pólen, incluindo o morcego-beija-flor.
A polinização consiste na transferência dos grãos de pólen (estrutura que carrega as células reprodutivas masculinas da planta) para a superfície estigma, que é a estrutura reprodutiva feminina da planta. A polinização resulta na fecundação dos óvulos da planta, dando ensejo à formação das sementes e frutos. Os principais agentes polinizadores são os insetos, principalmente as abelhas. O cogumelo-de-caboclo é uma planta parasita de raízes de outras espécies e seu habitat são, principalmente, a Mata Atlântica e a formação florestal do Cerrado, o Cerradão. O morcego-beija-flor, também chamado “beija-flor-da-noite”, é bastante comum no Brasil, tanto na zona rural quanto nas áreas urbanas.
As novas observações, ao evidenciarem o papel dos morcegos de agentes polinizadores de uma planta que produz flores no nível do solo, contribuem também para desfazer alguns mitos que ainda os envolvem, diz Wilson Uieda, professor aposentado do Instituto de Biociências do câmpus de Botucatu e um dos principais estudiosos de morcegos no país. Uieda é um dos autores do novo artigo.
“O papel ecológico dos morcegos é mais benéfico do que se imagina”, afirma Uieda. “Neste caso específico (da Scybalium fungiforme), uma vez que o morcego é capaz de visitar várias flores, ele pode realizar a reprodução cruzada (desta espécie naquele ambiente) e, consequentemente, contribuir para a diversidade genética”, diz.
Pesquisa confirma suposição levantada 30 anos antes
O cogumelo-de-caboclo é uma planta pouco conhecida e desde 2019 tem sido objeto de estudo da equipe do Laboratório de Ecologia da Polinização e Interações (LEPI), coordenado pelo professor Amorim no IBB-Unesp. Desde aquela época, o pesquisador tem orientado bolsistas de iniciação científica, assim como estudantes de pós-graduação, para a condução das investigações sobre as particularidades da planta, utilizando gravações em vídeo, análises da planta e experimentações durante as inúmeras visitas ao campo para a realização da pesquisa.
“Tudo teve início com a ida dos estudantes do curso de ciências biológicas a uma viagem de campo da disciplina Projetos Integrados em Ecologia, por mim ministrada na graduação, para testar a hipótese de que essa planta poderia ser polinizada por mamíferos não voadores. Logo no primeiro dia de trabalho, ao analisarem os vídeos, os alunos já observaram roedores e um gambá visitando a planta”, lembra. Estas primeiras observações ocorreram ao longo de apenas uma semana, durante a viagem didática da disciplina, e o resultado foi publicado em fevereiro de 2020 também na revista Ecology. Essa observação comprovava uma predição feita por Patrícia Morellato, pesquisadora do câmpus de Rio Claro da Unesp, quase 30 anos antes do achado de Amorim e seus estudantes.
O artigo de 2020, além de comprovar a polinização por mamíferos não-voadores (no caso, o gambá), também levantou a hipótese de que os gambás removeriam as brácteas para acessar o néctar. Amorim e sua equipe continuaram a pesquisa a fim de testar essa hipótese. As filmagens, feitas por meio de câmeras noturnas, e os estudos de campo comprovaram mais esta suposição. Além de mostrarem que a retirada das brácteas era feita tanto por gambás quanto por aves como o tiê-preto, os flagrantes evidenciaram que outros animais visitavam a planta em busca do seu néctar. Entre eles, o marsupial cuíca-graciosa (Gracilinanus microtarsus), diversas espécies de roedores, aves, esquilos, quatis e até mesmo iraras (animal onívoro da família dos mustelídeos), além do próprio morcego-beija-flor.
Paralelo ecológico único
As observações envolvendo o morcego-beija-flor foram as que mais surpreenderam os pesquisadores. “Geralmente os morcegos nectarívoros visitam plantas mais altas, como trepadeiras e árvores, e plantas mais baixas cujas flores ficam expostas”, diz Amorim. “Nós estávamos estudando uma espécie que fica no chão da floresta, entremeada por cipós e plantas baixas. Ou seja, nada levava a crer que havia a possibilidade de que qualquer espécie de morcego desceria para visitar essas flores.”
Segundo Amorim, à exceção do morcego-beija-flor, há apenas uma espécie de morcego que também visita uma flor no solo para se alimentar de néctar. Um relato anterior descreveu a relação do quiróptero Mystacina tuberculata, uma espécie endêmica da Nova Zelândia, atuando como polinizador da popularmente conhecida rosa-de-madeira (Dactylanthus taylorii), planta parasita de raiz parente de Sybalium fungiforme. “A Nova Zelândia é uma ilha na Oceania e, devido ao seu isolamento geográfico muito antigo, existem vários animais com adaptações específicas para aquela região em que não há mamíferos terrestres predadores. Além desta espécie de morcego, algumas espécies de aves, como o kakapo, kiwi e takahe, também evoluíram hábitos terrícolas e perderam a capacidade do voo”, diz o professor do IBB.
A pesquisa inicial do grupo liderado por Amorim começou na Serra do Japi, em 2019. As observações dos morcegos ocorreram em Botucatu, na Fazenda Experimental Edgardia e na Escola de Meio Ambiente (EMA), e na Serra do Japi, região circunscrita aos municípios de Jundiaí, Pirapora do Bom Jesus, Cajamar e Cabreúva. “Já tínhamos conhecimento desse morcego (Mystacina tuberculata), predominantemente terrícola, visitando e polinizando a rosa-de-madeira na Nova Zelândia. Mas não imaginávamos que algo similar pudesse ocorrer aqui no Brasil ou em qualquer outro habitat fora das ilhas que formam a Nova Zelândia. Ao contrário da Nova Zelândia, as florestas brasileiras estão repletas de predadores no solo e não oferecem um local seguro para morcegos que se aventurem a pousar no chão para tomar néctar. Além de inusitado, este é um paralelo ecológico único.”
Imagem acima e ao longo do texto: Divulgação / Laboratório de Ecologia da Polinização e Interações (LEPI)