Para evitar tragédias como a que devastou o litoral norte é mais importante investir em planejamento urbano e políticas públicas do que em sirenes

Especialista em sociologia dos desastres, Victor Marchezini mapeou as fragilidades do sistema de Defesa Civil por todo país e defende abordagem preventiva através de iniciativas como controle da ocupação do espaço urbano e envolvimento das comunidades locais na preparação contra desastres.

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Em comparação a outros países que, por fatores geográficos, enfrentam com alguma regularidade fenômenos como grandes terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, o Brasil parece ocupar uma situação privilegiada no que tange aos desastres ambientais. Mesmo assim, quando o país se vê forçado a lidar com sua própria cota de eventos climáticos extremos, tais como secas e chuvas intensas, enfrenta dificuldades que inevitavelmente resultam em destruição e vítimas. Para o sociólogo Victor Marchezini, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) em São José dos Campos, embora a ocorrência desses fenômenos intensos tenha se repetido nos últimos anos, as cidades brasileiras de modo geral ainda estão despreparadas para enfrentá-los.

Victor Marchezini é docente no Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais, que é fruto de parceria entre o Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp em São José dos Campos e o Cemaden, e especialista no campo da chamada sociologia dos desastres. Graças ao conhecimento que acumulou por meio de pesquisas e observações, ele defende que o caminho para afastar de vez as cenas de morte e destruição que têm se repetido quase anualmente em nosso país passa por aperfeiçoar a capacidade de planejamento para gestão de risco e a adoção de medidas em áreas como planejamento urbano, soluções habitacionais e proteção ambiental.

Segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2011, do IBGE, somente 6,2% dos municípios brasileiros têm planos para lidar com a redução de riscos de desastres. No momento da pesquisa, cerca de 10% dos municípios informaram que estavam elaborando o documento. Porém, não há informações atualizadas informando quantas cidades contam efetivamente com planos já estabelecidos. Já uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), pelo Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e com o Cemaden, coordenada por Marchezini, evidenciou a precariedade das Defesas Civis, órgãos responsáveis por mapear e identificar as áreas de risco de inundações, deslizamentos e secas, e também por prevenir e socorrer populações vítimas de desastres.

Na pesquisa, publicada em 2022, foram levantadas informações de 1.993 órgãos municipais de Defesa Civil. Os resultados mostraram que, em 59% dos casos levantados, o efetivo limita-se a uma ou duas pessoas. “Imagine contar com apenas uma ou duas pessoas responsáveis por avisar e preparar uma população inteira para o risco de inundação ou deslizamento”, diz Marchezini. A pesquisa também mostrou que 78% dos órgãos não têm orçamento próprio, o que impede, por exemplo, o planejamento de ações de prevenção ou a execução de melhorias estruturais nos municípios. “O Brasil não tem investimento para prevenção de desastres, sempre são liberados recursos extraordinários após os acontecimentos. Então, se não há orçamento, como você vai ter uma política pública de prevenção?”, questiona.

Desastres podem ser evitados

Desastres como o temporal que atingiu a região do litoral norte paulista, entre os dias 18 e 19 de fevereiro deste ano, já estão se tornando tristemente recorrentes. Marchezini relembra das chuvas, em fevereiro de 2022, que deixaram 233 mortos em Petrópolis (RJ), e acontecimentos semelhantes em anos anteriores que devastaram  Angra dos Reis (RJ), o estado de Pernambuco, Franco da Rocha (SP), São Luiz do Paraitinga (SP), Itajaí (SC)… A lista só tem crescido. É essencial que as autoridades e pesquisadores se debrucem sobre esses eventos para saber identificar onde estão as responsabilidades pela magnitude das tragédias. “Nós tendemos a culpabilizar a chuva, um fenômeno natural, como se ela tivesse a racionalidade de causar mortes. Mas assim deixamos de pensar de quem é a responsabilidade por essas mortes, seja dos governos municipais, estaduais e federal, das empresas, dos loteadores ou de outras entidades”, diz.

Dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres apontam que, entre 2013 e o início de 2023, foram realizados 28.033 registros decretando situação de emergência e estado de calamidade pública. Apesar do alto número, Marchezini ressalta que nenhum desastre pode ser considerado “natural”. As tempestades, estiagens ou secas, tomadas de maneira isolada, não são um desastre. Para que ele se verifique, é necessária a combinação de dois fatores: um fenômeno natural e, também, a ocupação humana do território onde ele se realiza. Para evitar novas catástrofes, a resposta é direta: investir em políticas públicas e em planejamento urbano adequado.

Já está claro que o modo como se dá a expansão urbana numa dada localidade será um elemento determinante para mitigar ou potencializar os efeitos de um eventual evento extremo. Se menos pessoas naquela população desfrutam de acesso à moradia, maiores são as chances de que venha a acontecer a ocupação de zonas de risco, como áreas de morro, suscetíveis a deslizamentos, ou áreas alagadiças, com perigo de inundações. “É necessário controlar o processo de ocupação do espaço urbano. Muitas vezes, isso vai mexer em interesses fundiários”, destaca o pesquisador. Ele aponta como exemplo a grande quantidade de imóveis desocupados encontrados hoje em grandes centros urbanos, como a cidade de São Paulo, e que poderiam ser destinados a planos sociais de moradia. “Nos centros das cidades há oferta de moradia em local seguro. Porém, são imóveis desocupados e não há uma política de Estado para estimular sua utilização”, analisa.

Marchezini também ressalta a importância de, após um desastre, planejar de maneira eficiente a reconstrução e recuperação das regiões afetadas. Para isso é necessário  levar em consideração a realidade das pessoas que habitavam aqueles espaços e, inclusive, incorporar esses moradores no esforço de planejamento para a reconstrução. “Durante o processo de reconstrução e recuperação em geral há poucas audiências públicas que envolvam as pessoas afetadas para discutir os rumos dessa etapa”, diz. Essa ausência abre espaço para o surgimento de novos problemas. “Muitas vezes se faz a reconstrução de um conjunto habitacional em uma área que não dispõe de serviços públicos: não tem estrutura de saneamento, escola, posto de saúde, transporte público para as pessoas irem trabalhar. É necessário lançar um olhar específico sobre esse processo. Senão, são recriadas as condições para um novo desastre”, diz.

A comunidade precisa estar envolvida

Atualmente, Marchezini está desenvolvendo seu pós-doutorado no Natural Hazard Center (Centro de Perigos Naturais), na Universidade do Colorado em Boulder, Estados Unidos. Em sua pesquisa, o professor busca maneiras de desenvolver sistemas de alertas que sejam mais compreensíveis para as pessoas e, ao mesmo tempo, que envolvam as comunidades em seu desenvolvimento. O pesquisador destaca que essa é uma iniciativa interdisciplinar, e visa conectar conhecimentos de diversas áreas da ciência, como meteorologia, geologia, sociologia e planejamento urbano, para a promoção de alertas melhores.

“Normalmente, envia-se um alerta por SMS quando alguma emergência vai acontecer. Mas o que o significa a informação de que irá chover 600 mm em uma hora? Será que as pessoas entendem o sentido disso?”, pergunta. Além de alertas com informações mais significativas, e que alcancem uma maior parcela da população, Marchezini também está pesquisando a preparação antecipada que os moradores recebem, ou não recebem,  para saber o que fazer em situações de emergência, e se são convidados a colaborar na elaboração das medidas de contingência.

Para o pesquisador, o envolvimento da comunidade é indispensável para um sistema de alerta adequado, uma vez que são essas pessoas que melhor conhecem a realidade do local. E, no fim das contas, elas serão as principais afetadas em casos de eventos extremos. “Estou desenvolvendo um modo para que diferentes cientistas possam colaborar entre eles com uma missão muito clara: envolver os moradores no sistema de alerta”, explica. Segundo Marchezini, quando a comunidade é envolvida na preparação, ela ganha em capacidade para entender o significado de uma mensagem de alerta, e para agir em situações de emergência.

O papel das sirenes

Nos dias que se seguiram à tragédia que se abateu sobre o litoral norte de São Paulo, o governador do estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos) reconheceu que o sistema de alerta por SMS, usado para avisar a população quanto ao risco de acidentes devido à chuva, não funcionou a contento, e que isso contribuiu para as mortes. Segundo a Defesa Civil de São Paulo, 14 alertas foram enviados por mensagens de texto a 34 mil telefones cadastrados. Tarcísio se comprometeu a instalar um sistema de sirenes de alerta até o ano que vem. Um sistema nesses moldes já opera desde 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, e foi instalado após a catástrofe que se abateu sobre a cidade naquele ano.  O prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), foi questionado  por jornalistas sobre a ausência de um sistema de sirenes na cidade, que registrou 65 mortos devido aos deslizamentos. “Você acha que sirene salva vidas?”, respondeu.

Para Marchezini, o sistema de alerta por sirene é uma tecnologia útil, mas por si só não soluciona o desafio de mitigação de desastres. Para que um sistema assim funcione de forma efetiva, pondera, é também necessário envolver a comunidade e, principalmente, promover um preparo prévio quanto aos procedimentos a serem adotados uma vez que soe a sirene. Dessa forma, além de ter uma resposta mais efetiva, a população vai entender que esse aviso é uma emergência. E o envolvimento de pessoas próximas daquele contexto no acionamento dos mecanismos de alerta reforça a confiança da comunidade de que o som está efetivamente refletindo uma situação crítica. “Quando o poder de acionar esses sistemas é passado para entidades mais distantes, como o Governo do Estado, corre-se o risco de que o alerta seja ativado com frequência, uma vez que os responsáveis se guiarão por estatísticas e previsões e não pela realidade local. Isso faz com que caia a credibilidade do sistema”, diz o sociólogo.

Um exemplo de como envolver a comunidade em medidas de prevenção de desastres está acontecendo em Santos, no Projeto Monte Serrat. Nele, cientistas de diferentes áreas, entre eles o biólogo João Vicente Coffani Nunes, da Faculdade de Ciências Agrárias do Vale do Ribeira da Unesp, campus de Registro, desenvolvem, junto à comunidade do morro e à Defesa Civil da cidade, medidas de recuperação de áreas degradadas, de maneira a aproveitar os serviços ecossistêmicos para a mitigação de eventos extremos. “Quando aproveitamos os serviços ecossistêmicos a nosso favor, nós conseguimos diminuir o impacto de eventos extremos e da mudança climática. Consequentemente, diminuímos o risco climático, que está relacionado à vulnerabilidade socioambiental de uma comunidade”, comentou Coffani Nunes, em entrevista ao Jornal da Unesp.

Um sistema nacional para gestão de riscos

Devido à necessidade de desenvolver projetos de mitigação a nível local, Marchezini destaca que os municípios deveriam ser responsáveis por elaborar os planos municipais de redução de riscos de desastres, porém com o auxílio dos governos estaduais e do governo federal. O professor sugere que o ideal seria desenvolver um sistema único de gestão de riscos, no qual programas federais e estaduais amparassem, por meio de recursos técnicos e financeiros, o planejamento dos municípios. “Da mesma forma que nós temos um Sistema Único de Saúde (SUS), nós deveríamos ter um sistema único para a parte de gestão de riscos”, comenta.

Segundo o professor, o apoio do governo federal nesse campo ainda é escasso, “faltam programas federais que ajudem os estados e os municípios para saber como se preparar melhor para gerir seus riscos no local”, aponta. Marchezini ainda dá exemplos de outros países da América Latina, como Colômbia e Chile, que, há alguns anos, têm investido em pensar uma gestão dos riscos de desastre, de forma a prevenir sua ocorrência. Não apenas em formas de lidar com a situação após o desastre. “Essa é uma visão prospectiva, e não corretiva. São políticas voltadas para evitar que o risco do desastre se amplifique nas áreas urbanas, tendo um maior controle sobre o solo urbano e sobre as políticas habitacionais”, diz.

Imagem acima: equipe de resgate trabalhando em São Sebastião, SP, sete dias após a tragédia. Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil