“Delírios Por Coisas Reais: Uma Introdução sobre Belchior”. Este é o título do trabalho de doutorado de Thiago Vieira, pesquisador e membro do Grupo de Estudos Culturais da Unesp em Franca, sob a orientação do professor José Adriano Fenerick.
Reconhecido como um dos grandes nomes da MPB, Belchior gravou em 1976 aquele que foi possivelmente seu álbum de maior sucesso, “Alucinação”. Na época, críticos como Nelson Motta e Renato Moraes saudaram as novidades apresentadas pelo disco e pelo repertório, que carregavam inovações sonoras e poéticas. Era possível identificar até influências do movimento concretista sobre as letras do artista cearense, além da inevitável comparação de seu trabalho com o de Bob Dylan.
Mas houve críticas ruins também. Sérgio Cabral, por exemplo, enxergava no espírito anarquista e contraditório das canções de Belchior algo já ultrapassado, requentado. Para o jornalista, a visão de mundo impressa nas canções estava apenas travestida de novidade, e não passava de uma rememoração do Maio de 1968 e dos movimentos de contracultura. Em plena segunda metade da década de 1970, ele achava que essa perspectiva já estava envelhecida
Partindo desse ponto de análise, Vieira, que já tem graduação e mestrado pela Unesp, optou por se debruçar sobre alguns trabalhos de Belchior e buscar entender a relação do artista com a contracultura e o papel do músico dentro do universo da música feita no país, em especial nos anos 1970.
“É certo que havia um arrefecimento dos valores da contracultura. Mas “Alucinação”, em sua disposição de canções, parece notar o mesmo que Sérgio Cabral. O trabalho tentava ao menos dar começo meio e fim ao estado de coisas que afetava a sociedade brasileira e propunha saídas”, diz o pesquisador. Vieira destaca o caráter denso do álbum: suas canções apresentam a estagnação da juventude diante dos entraves políticos brasileiros. Isso lhe permite analisar, de forma contundente, os conflitos geracionais, e também aborda “temas ligados à sociologia urbana quando discute, por exemplo, o flagelo do migrante em centros urbanos”, diz.
Vieira analisou todos os álbuns que Belchior gravou na década de 1970. “Esses temas e características são interpretados por Belchior durante seu período de maior ascensão no mercado musical brasileiro, que por questões comerciais se estabeleceu fundamentalmente na segunda metade da década de 1970.”
Para emplacar suas narrativas, Belchior se apropriou de um estilo de artista engajado que se diferenciava daquele tradicionalmente associado aos Festivais de Música Popular na década de 1960. Isto não quer dizer que ele refutasse aquele estilo; pelo contrário, assimilou alguns elementos que se tornaram parte do sujeito híbrido que construiu artisticamente.
Esse sujeito se recusava a se deixar rotular por sua origem, nem se queria demasiadamente cosmopolita. E, diferentemente do que a crítica enxergava à época, não era um correlato tupiniquim/cearense de Bob Dylan. Belchior estava impregnado de tempo histórico, como qualquer cidadão comum está, mas suas experiências e sua sagacidade para ler o mundo lhe permitiram dar voz a suas aflições diante da questão social, da paralisia no enfrentamento da Ditadura Civil-Militar e abriram espaço para que falasse sobre o Brasil de um outro lugar social.
De acordo com a pesquisa, embora não dispusesse de um cabedal tão primoroso de palavras e rimas, Belchior foi dando singularidade às suas canções também usando recursos como sua voz anasalada e o canto que forçava tônicas em certas sílabas. Ele também dialogava com a literatura nacional e estrangeira do século 20, e lutou fortemente para fugir dos rótulos, sobretudo daqueles que insistiam demasiadamente em reduzi-lo a sua região e ao seu estado natal.
Se no tempo e no espaço, a obra de Belchior adquiriu contornos passíveis de serem estudados, o doutorando propõe que interpretar Belchior por chaves que prezam pela construção de identidades não é uma alternativa. Nem, tampouco, reduzi-lo às engrenagens do mercado musical. O caminho para compreendê-lo reside em suas canções e em tudo que delas deriva – tematizações, harmonias, estilística e arranjos Além, é claro, do material jornalístico produzido a partir de suas canções. Entre estes, até os que parecem não ir muito além da elucubração se revelaram precisos para que o autor exprimisse a forma como enxergava as vicissitudes de seu tempo.
“Pesquisei essas questões com muita atenção. Não é tarefa fácil pensar o lugar de onde fala o autor, pois trata-se de alguém com formação difusa e pouco panfletário. Na verdade, eu entendi que Belchior não foi uma expressão da contracultura. Ele estava vivendo um momento e sendo afetado por uma série de experiências do final do anos 1960 e início dos 1970. Estava se construindo artisticamente como alguém que ainda lida como uma canção critica, herdada da década anterior, e as aberturas proporcionadas pelo tropicalismo para que lidasse com suas experimentações, sonoridades e temas. Entendi que, se existe contracultura em sua obra, ela está no plano de fundo”, diz.
Para Vieira, se há algo duradouro na trajetória de Belchior é esse lugar de se fazer canção. Essa postura permitiu que ele acontece como fenômeno na segunda metade dos anos 1970, gerando desconforto por sua acidez em refutar o desbunde, por vezes não desfrutando do reconhecido da crítica ou mesmo dos seus pares. Belchior não era benquisto por quem historicamente fez defesas do nacional popular e nem encontrou alguém semelhante nas fileiras que deram continuidade ao tropicalismo.
O pesquisador diz que há quem conteste a existência de alguma originalidade expressiva na obra do cantor. A historiografia tende a enxergar a MPB como um amálgama das tendências musicais dos anos 1960, cujo surgimento se deu por meio dos festivais de música popular e que, por sua incontestável qualidade, ganhou espaço e relevância na indústria musical. Nessa perspectiva, Belchior não seria nada além de mais um típico artista de MPB. “No entanto, sustentar esta opinião seria aprisionar demais a capacidade do alcance de determinado artista, subtraindo-o às caracterizações inerentes de uma sigla, de modo que a MPB serve muito mais a identificação das canções no nível de seu relacionamento com o mercado musical do que efetivamente para o estudo da sua obra”, diz Vieira.
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Imagem acima: reprodução/Governo do estado do Ceará.