As aulas sobre escravidão eram motivo de vergonha para Andreia Tenório, 37, quando ela estudava na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) General de Gaulle, no Jardim Ibirapuera, distrito do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo. “Era o meu pior momento na escola”, lembra a ex-aluna.
Naquela época, a história da população negra no Brasil era reduzida ao horror do período escravocrata. Não se falava na escola sobre temas como a história e a cultura afro-brasileira, muito menos sobre as grandes personalidades negras do país, como Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus.
“Eu tinha justamente o que o currículo e a legislação [de hoje] abominam, que é o surgimento das pessoas negras [nos conteúdos didáticos] a partir da escravidão, como pessoas inferiores”, conta Andreia.
Hoje, ela é professora na mesma escola em que estudou. A pedagoga, que é negra, tem orgulho em oferecer uma experiência diferente da que viveu em sala de aula para seus alunos.
Agora os livros infantis levados para as turmas têm protagonistas pretos. Temas como a beleza do cabelo crespo e o combate ao racismo fazem parte do dia a dia da escola.
“Teve uma coisa muito emblemática do ano passado: as meninas começaram a ir de cabelo solto e de black [power] também, de trancinha. Aí elas chegavam de trança e falavam ‘olha, professora, o meu cabelo tá trançado igual você faz’”, conta Andreia.
A mudança na sala de aula, além do esforço da professora, é fruto também de uma importante alteração na legislação brasileira. Há 20 anos, o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira se tornava obrigatório nas escolas com a chegada da Lei 10.639, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu primeiro mandato.
A Agência Mural conversou com quatro professoras da rede pública e um especialista em educação para entender os impactos da lei e os desafios que ainda permanecem nas escolas no combate ao racismo.
Para Andreia, houve avanços importantes nos últimos 20 anos, mas as escolas precisam inserir a pauta racial no projeto político-pedagógico de forma definitiva, planejando ações para todo o ano. “Muitas escolas ainda concentram a questão da temática étnico-racial mais em novembro do que ao longo do ano”, comenta ela.
Educadora da EMEF Joaquim Bento Alves de Lima Neto, no distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo,a historiadora Cibele Lima, 38, avalia que a legislação foi determinante para mudar o olhar das escolas para o tema do racismo.
“[Passamos a] olhar de fato para a contribuição africana e dos descendentes em todas as épocas da história do Brasil. Nas artes, na ciência, na resistência, dentro das forças armadas, dentro de instituições de governo”, explica.
Ainda assim, afirma Cibele, é preciso investir mais na formação continuada dos professores já que muitos, partindo da própria experiência, não tiveram contato com o tema durante a graduação.
A professora, que ensina história para estudantes do ensino fundamental II, cita que mudou a abordagem de suas aulas sobre escravidão depois de fazer uma disciplina sobre educação étnico-racial no mestrado.
“Precisei entrar no mestrado, passar por toda uma disciplina de educação étnico-racial – e eu já tinha seis anos de rede [municipal de ensino] – para entender que essa abordagem talvez não fosse a melhor”, diz Cibele.
“Hoje, por exemplo, trabalho muito com personalidades negras brasileiras, mulheres negras escritoras, cientistas”, conta. Além disso, ela defende que os avanços do tema na vida escolar precisam ser acompanhados de uma maior discussão sobre o racismo estrutural na sociedade.
Enquanto a gente estiver numa sociedade que reproduz o racismo de forma tão natural, que não enxerga e não reflete, isso vai estar dentro da escola também porque a escola é um reflexo, é uma micro sociedade
Cibele Lima, historiadora
Moradora e professora da cidade de Itapevi, na Grande São Paulo, Caroline Vaz, 30, conta que casos de racismo ainda acontecem entre alunos, mesmo com o tema aparecendo mais nas aulas.
“Muitas vezes um aluno vira para o outro e chama de ‘macaco’ como se fosse um bom dia”, relata a educadora da E.E. (Escola Estadual) Paulo de Abreu. Ela relata que já precisou agir diante de comentários racistas de estudantes e explicar que as ofensas são consideradas crime.
No dia a dia das aulas, Carol afirma que busca trabalhar a autoestima dos alunos negros e debater a pauta étnico-racil para além dos conteúdos que aparecem no currículo escolar, como aparthaid e escravidão.
Ela também critica o maior destaque dado por professores para a história da Europa nas aulas.
“A história da África é tão essencial quanto [a do continente europeu]”
Caroline Vaz, professora
A geógrafa Rose Bernardo, que é professora de ensino médio na E.E. Professor Clóvis de Silva Alves, em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, também defende que o currículo escolar dê ainda mais espaço aos conteúdos sobre outros continentes, para além do europeu.
“O aluno, às vezes, até confunde: acredita que a África é um país, que é tudo uma coisa só. Ele [o currículo escolar] poderia ser um pouco mais abrangente nesse sentido de tornar a África tão comum para o aluno quanto a Europa”, comenta.
“Se você fizer uma pesquisa entre os alunos, sobre qual país que eles gostariam de conhecer fora, eles quase nunca citam um país da África ou que está aqui próximo a nós, da América do Sul”, afirma Rose.
A professora lembra que o continente africano tem um dos biomas mais fascinantes do mundo, a savana, além de ser um local importante para as discussões sobre alimentação no planeta.
Fiscalização
Uma das principais queixas de especialista em educação e de membros do movimento negro sobre os 20 anos da lei é a falta de fiscalização sobre o cumprimento da medida por secretarias municipais e estaduais de educação.
O tema é visto como importante inclusive para combater a diferença de aprendizagem entre alunos brancos e negros. Uma pesquisa com dados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) de 2019 mostrou que há uma diferença expressiva no percentual de aprendizado de estudantes brancos e pretos.
Feita pelo Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional) a pedido da Fundação Lemann, a pesquisa avaliou alunos do 5º e 9º ano, nas disciplinas de língua portuguesa e matemática.
Os resultados mostraram que as diferenças de aprendizagem aparecem mesmo quando os estudantes pertencem ao mesmo grupo socioeconômico.
Billy Malachias, consultor da área de educação do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), explica que a Lei 10.639 é uma conquista do ativismo negro e movimentou a sociedade nas discussões sobre o racismo nos últimos anos, mas que o cumprimento dela não tem sido homogêneo em todo o país.
Por isso, segundo ele, é preciso haver um monitoramento do que vem sendo feito nas cidades, vinculando o repasse de verbas aos municípios a indicadores de redução de desigualdade na educação.
“A mudança dos indicadores de desigualdade de aprendizagem entre alunos negros e brancos só vai ocorrer efetivamente se as diretrizes curriculares estiverem sendo implementadas”
Billy Malachias, consultor de educação
“A gente consegue ter a percepção da melhora da qualidade da educação e a diminuição da desigualdade entre os grupos negros e brancos? Isso é um indicativo de que o município está agindo corretamente e que pode acessar mais recursos”, diz Billy.
O professor explica que as escolas precisam investir em educar os alunos para uma sociedade diversa e que falar na pauta étnico-racial é educar para essa convivência.
Billy sugere um novo olhar para tudo o que a África tem para ensinar. “São os africanos que introduziram aqui técnicas de mineração, técnicas agrícolas. E isso não aparece de uma forma dinâmica, associado aos processos constitutivos do Brasil.”.
“A escola tem muito a aprender com a África”, finaliza.
Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.
Imagens acima: Léu Britto