Desdobramentos da guerra na Ucrânia podem resultar na eclosão de novos conflitos, diz especialista em relações internacionais da Unesp

Crescem temores da comunidade internacional com continuidade da conflagração, que caminha para completar um ano. Para Héctor Saint-Pierre, embate de russos contra ucranianos é parte de disputa maior entre dois blocos de nações por hegemonia, e outros enfrentamentos podem estourar no médio prazo. Para o Brasil, manter postura de neutralidade em um tal cenário não será fácil.

Em 24 de janeiro passado, o chamado “relógio do juízo final” – uma ferramenta desenvolvida por cientistas ativistas para estimular a conscientização sobre o risco de ameaças globais que podem levar ao fim da espécie humana  –  atingiu sua configuração mais preocupante desde que foi criado em 1947: seu ponteiro passou a marcar 90 segundos para meia-noite, sendo meia-noite a marca para a extinção total. Em um boletim que acompanhou o anúncio da atualização do Relógio o grupo Union of Concerned Scientists assinalou que a causa por trás deste poderoso sinal de alerta é o temor de que a guerra em andamento entre Rússia e Ucrânia, que em fevereiro irá completar um ano, possa escalar e resultar no emprego, mais cedo ou mais tarde, de armamentos biológicos e até nucleares. 

Para Héctor Saint-Pierre, pesquisador da área de relações internacionais e professor da Faculdade de Ciêncis Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, a guerra da Ucrânia assinala um ponto de inflexão nas relações internacionais. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele explica que o conflito evoluiu para a chamada guerra de atrito, abordagem estratégica que privilegia o desgaste dos recursos humanos e militares do inimigo, com o intuito de enfraquecê-lo. “Tanto a Rússia quanto a OTAN estão levando a guerra em banho-maria”, diz. “Mas se engana quem pensa que a Rússia está enfraquecida ou à beira da derrota. A parte mais sofisticada de seus aviões e tanques nem foi usada ainda no campo de batalha”, diz.

De que forma a guerra na Ucrânia, que em fevereiro irá completar um ano sem perspectiva de resolução de curto prazo, está mudando o panorama das relações internacionais?

Héctor Saint-Pierre: Essa guerra mudou tudo. Se no começo falávamos da guerra da Ucrânia, hoje se pode falar em termos de guerra na Ucrânia, porque a Ucrânia se transformou em uma frente, uma parte de uma guerra muito mais ampla. Eu diria até mesmo uma guerra mundial. Hoje existe um compromisso da OTAN, particularmente impulsionada pelos Estados Unidos, com o intento de manter um sistema internacional unilateral, que é regido por regras, e que se opõe a uma proposição de mundo multilateral, defendida por [o presidente da Rússia] Putin, [ o líder da China] Xi Jingping e por outros países emergentes, como a Índia. É  um confronto entre o Ocidente e o resto do mundo.

O Ocidente está em clara decadência desde a crise financeira de 2008 e enfrenta o avanço da China  no cenário internacional. OS EUA se propuseram a provocar uma guerra nas fronteiras russas para fomentar a separação da Rússia com a China e evitar a consolidação deste bloco. Este sempre foi o objetivo estratégico dos Estados Unidos desde a primeira visita de [Richard] Nixon. A visita de Nixon a Mao Tse-Tung foi justamente para evitar que os dois gigantes, China e a Rússia, se unissem. A Rússia vem  se recuperando depois do fim da guerra fria. Porém, o Ocidente foi avançando em direção às fronteiras russas até o golpe da Praça Maidan, na Ucrânia [ em 2014] e a posterior mudança de regime. A isso se seguiram a proibição da língua russa em território ucraniano e o início de uma guerra civil contra a região de Dombas. Até que veio a guerra na Ucrânia.

Quando essa guerra teve início, parecia que poderia chegar a uma conclusão rapidamente. A Rússia, inicialmente, parecia ter condições de solucionar o conflito logo. Mas a ideia era voltar aos termos estabelecidos pelo tratado de Minski [assinado em 2014]. E no ano passado a  própria [ex-primeira-ministra alemã]  Ângela Merkel declarou que na verdade o tratado de Minsk deveria servir apenas como uma desculpa para dar à Ucrânia tempo para que se armasse.

E ao longo desse ano fomentou-se  uma cultura de desconfiança com relação à Rússia, e com relação à China. Porém, tanto a China quanto a Rússia têm cumprido sempre seus compromissos internacionais. A China nunca fez uma guerra fora do seu próprio território por exemplo. Tudo ao contrário do que tem feito Ocidente. Basta lembrar por exemplo a invasão  do Iraque, conduzida  pelos Estados Unidos em 2003, que ocorreu  contra a opinião da ONU, e que foi um golpe muito duro na Organização das Nações Unidas.


Ataque de mísseis em Kiev em junho de 2022.  Foto de uwstas

O que está no jogo neste momento é um confronto entre duas propostas de relações internacionais. Uma proposta é a de um mundo organizado de forma unilateral, que se orienta por regras, e que nada mais é que a manutenção do status quo norte-americano. A isso se opõe a emergência de novos polos de poder e de comércio, que inclui fundamentalmente China, Rússia, Índia e países dia América do Sul e da  África. Este bloco defende uma ordem internacional que seja regida por leis.

A diferença entre uma ordem internacional que se baseie em regras ou leis é que as regras são impostas, isto é, são determinadas  pelo lado vencedor de um conflito. Já as leis são anteriores ao conflito. Além dessa perspectiva que favorece as leis, estes países também buscam o multilateralismo, além de uma democratização da Organização das Nações Unidas, e do Conselho da Segurança da ONU. É uma ideia de comunidade internacional de interações conhecidas como win win, na qual todos os países possam ganhar, e não um cálculo  de soma zero onde se um ganha o outro perde.

E como você vê o atual momento da guerra?

Héctor Saint-Pierre: Os EUA e o Ocidente se propuseram a uma guerra de desgaste contra a Rússia. Imaginavam que essa estratégia, somada às sanções econômicas e financeiras, levaria ao esgotamento do país. Pensavam que as ações de movimentos sociais russos poderiam contribuir para derrubar o regime, algo que os Estados Unidos já lograram em vários lugares do mundo, inclusive na América Latina.

Mas todas essas medidas se mostraram um tiro no pé. Quem terminou se desgastando foi a Europa.  O que estamos vendo são movimentos sociais em toda a Europa de protesto, primeiro pela carestia, o custo de vida, justamente pela falta de gás e de petróleo. Particularmente de gás, pois o gás não é usado simplesmente para aquecer os lares europeus: ele fornece parte da energia para a indústria européia, e sem ele se encarece tudo na Europa. E a OTAN está com níveis de estoque de armamento muito baixos. Segundo uma consultoria que assessora o exército americano, será difícil repor rapidamente os estoques de alguns armamentos, em particular de alguns tipos de lançadores mísseis. É como se o país estivesse em guerra.

E muitos autores falando de uma guerra híbrida em andamento, devido à mistura de elementos econômicos, financeiros, sanções econômicas, trabalho pela imprensa… Hoje, um campo de combate é o ambiente comunicacional, da informática. Nele, os Estados Unidos e o Ocidente estão em vantagem com relação à Rússia, e essa vantagem serve como um elemento, digamos, modulador da percepção europeia, e do mundo em geral, com relação à guerra.

Muitos pensam que  a Rússia está perdendo a guerra, que seus estoques de armamento estão chegando ao fim e ela está aniquilada. Porém, o fato é que a Rússia ainda não colocou na mesa aquilo que tem de melhor em termos  tanto de veículos blindados quanto de aviação. Talvez os russos estejam imaginando a possibilidade de  desdobramentos futuros deste conflito. Desdobramentos que não se deem na forma de uma guerra travada por proxy, como se diz, que são os conflitos em que ocorre uma espécie de “terceirização”. Neste exemplo de guerra por proxy, a guerra da Ucrânia, a Europa estaria usando Ucrânia com o objetivo de desgastar a Rússia.

Destruição e queima de veículos militares russos em Borodyanka, Ucrânia, em abril de 2022. Foto de DmytryiOzhhikhiin

Esta semana o presidente Lula se negou a atender um pedido do primeiro-ministro da Alemanha para que o Brasil fornecesse munição para blindados ucranianos. De que forma estes quase doze meses de guerra afetaram a posição do Brasil no cenário internacional?

Héctor Saint-Pierre: Os Estados Unidos e o Ocidente estão buscando evitar que países adotem posições de neutralidade ou de não alinhamento pragmático em relação ao conflito na Ucrânia. Um dos aspectos pelos quais os EUA percebem que estão perdendo sua hegemonia internacional tem a ver com a penetração da China no continente americano. Recentemente uma representante do comando sul do exército dos EUA esteve por aqui, dando um giro pelo continente sul-americano. Ela declarou que a América do Sul é uma fonte importante de recursos estratégicos. No nosso caso pode-se mencionar o pré-sal, mas outro exemplo é o dos campos de lítio da Bolívia. O lítio é a chave para a nova geração de energia que movimenta os carros elétricos, e isso não pode cair nas mãos dos chineses.

A preocupação dos EUA é assegurar que a América do Sul não fique neutra nessa guerra, a fim de isolar China, Rússia e os demais países que as apoiam. Essa solicitação de fornecimento de munição aos tanques da Ucrânia era uma forma de colocar em evidência o posicionamento do Brasil em relação ao conflito. O Brasil tem adotado um posicionamento de neutralidade, que é de fato o posicionamento mais conveniente. Até porque, neste momento, nem os EUA, ou a União Europeia ou a própria ONU têm condições de conduzir negociações sobre esse conflito, porque se comprometeram com uma das partes envolvidas e uma negociação não pode ser mediada por alguém que está comprometido com o conflito. É preciso alguém como o Vaticano, ou algum outro país que não esteja comprometido para iniciar negociações.

Então, ao longo deste ano, o Brasil tem se preservado como um possível negociador, aliás, como sempre se preservou,. Por isso o Brasil se recusou a entregar o armamento para a Polônia, como parte de uma operação triangular que beneficiaria os tanques da Ucrânia, porque se comprometeria com esse conflito.

Quais podem ser os possíveis desdobramentos da guerra na ucrânia que você menciona?

Héctor Saint-Pierre: Neste momento está se desenhando para o futuro uma guerra para a divisão do mundo. Isso vai criar pressões cada vez maiores sobre os países que agora procuram adotar uma neutralidade estratégica, um não alinhamento pragmático que lhes permite se posicionarem na arena internacional de acordo com os interesses nacionais ou regionais. Ele permite que um país se mantenha bem com os dois lados e aproveite esse momento para favorecer empresas nacionais, por exemplo .Não será fácil sustentar esse posicionamento orientado por interesses nacionais em um mundo que está em conflito. E neste momento, se aliar seja com a Rússia, a China ou os Estados Unidos significa se comprometer com um futuro que ainda não está muito claro no horizonte histórico global.

Como você disse, no início do conflito, esperava-se que uma vitória clara da Rússia seria alcançada em pouco tempo. Praticamente ninguém apontou a possibilidade de que a guerra poderia se estender por um ano. Será correto afirmar que a Rússia sai deste primeiro ano de batalha menor do que quando entrou?

Héctor Saint-Pierre: Não é uma guerra da Ucrânia contra a Rússia, e sim uma guerra do Ocidente e da OTAN contra a Rússia. O armamento que a Ucrânia possuía no começo já acabou faz muito tempo, as tropas que lutaram no início já foram eliminadas.  Agora está ocorrendo  outro tipo de conflito, uma guerra de desgaste. E, como estava dizendo, a Rússia ainda não colocou todo o seu arsenal no campo de batalha.  A Rússia está levando o conflito agora em banho-maria, justamente porque neste momento os estoques europeus estão sentindo o desgaste. Vários países da Europa já elevaram seus gastos com o orçamento de defesa para 2% e isso está provocando uma comoção social. Uma vez que sejam gastos os atuais estoques militares,  já muitos países se mostram reticentes em continuar enviando equipamento, porque temem que isso coloque em risco a segurança dos seus próprios países. E por que esse temor? Porque é possível que ocorra um desdobramento desta guerra, como estou dizendo.

Projeto do porta-aviões chinês Fujian. Crédito: Weibo.

Vários militares de alta patente norte-americanos, inclusive um general que se pronunciou estes dias, estão dizendo que daqui a dois anos vai haver conflito com a China pelo estreito de Taiwan. Que a China irá aproveitar a mudança de governo nos EUA daqui a dois anos, ou pelo menos o período eleitoral, para tentar ocupar Taiwan, e que os EUA devem se preparar para esta frente de batalha no futuro. Isso já fala de um desdobramento de frente. A guerra está se complicando. E a China está construindo submarinos nucleares e porta-aviões a toque de caixa.

E recentemente houve o episódio dos ataques com drones ao Irã e a discussão se por trás deles estaria ou não Israel. Israel e Irã são duas potências regionais do Oriente Médio que disputam a hegemonia nessa região, e isso pode, novamente, resultar em desdobramentos do conflito para outras partes do mundo. Por isso tenha esta hipótese, de que a Rússia esteja poupando material bélico ao invés de destinar tudo à guerra na Ucrânia. A Ucrânia está gastando, no conflito, material bélico ucraniano, mas também o que ela recebe da Europa e dos EUA. A Rússia também está gastando seu material bélico, mas continua produzindo mais material. E o país tem condições de manter uma indústria de defesa operando em escala suficiente para manter uma guerra. Veja, imaginar que a Rússia perdeu a guerra, ou que está a ponto de perdê-la, é uma loucura, uma cegueira estratégica. É não saber o que está acontecendo.

Imagem acima: Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelenskyy visita cidade de Bucha após a libertação dos ocupantes russos durante a guerra russo-ucraniana. Foto de dmytro.larin.gmail.com