A Unesp abriga, desde 2015, o primeiro e único Programa de Pós-Graduação em Animais Selvagens do Brasil. De perfil multidisciplinar, o programa vem colaborando na formação de pesquisadores, docentes e profissionais oriundos de diferentes áreas com foco comum na preservação animal. Embora a pós-graduação já tenha quase oito anos de existência, o atendimento aos animais selvagens no câmpus de Botucatu é realizado desde o início dos anos 90 e pode ser considerado a semente do programa.
Em 1993 foi criado oficialmente o Serviço de Atendimento de Animais Silvestres na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), que desde o seu início atuou na recuperação e preservação das diversas espécies animais selvagens. Estes animais, em sua maioria, eram encaminhados por zoológicos e criadouros conservacionistas particulares que necessitavam algum atendimento às espécies em cativeiro, ou pelo IBAMA e Polícia Ambiental, em geral por decorrência de ações de combate ao tráfico de animais ou resgate de animais acidentados.
Ao longo dos anos, a demanda pelos atendimentos aumentou e o serviço foi estruturado até que, em 2005, foi criado oficialmente o Centro de Medicina e Pesquisa de Animais Selvagens (CEMPAS). Mais recentemente, em 2021, o Centro passou por uma reforma que ampliou seu espaço, alcançando uma área de mais de 7 mil metros quadrados, sendo 3 mil de área construída. A estrutura inclui recintos para animais de pequeno e grande porte, área de preparo da alimentação, centro cirúrgico, ambulatórios, bloco de internação e outros espaços voltados ao cuidado direto dos animais. Pesquisadores e estudantes contam ainda com espaços dedicados às atividades acadêmicas, como sala de professores, salas para estudantes e auditório para eventos, apresentação de trabalhos, dissertações e teses.
Atual vice-coordenadora do programa e chefe de Serviço do CEMPAS, a professora Sheila Rahal destaca o protagonismo do professor Carlos Roberto Teixeira na idealização e construção do que hoje é uma estrutura acadêmica e científica orientada ao trabalho com animais selvagens. “Acho que podemos dizer que o CEMPAS foi o trabalho de uma vida do professor Carlinhos. Era uma estrutura que começou pequena, mas ao longo do tempo foi ganhando corpo”, explica a docente. Hoje aposentado, o professor Carlinhos, como é conhecido pelos colegas, segue colaborando com o programa de pós-graduação e orientando alunos de mestrado e doutorado.
De certa forma, a criação de um programa de pós foi uma consequência natural do trabalho iniciado em 1993 no atendimento aos animais selvagens. Cláudia Valéria Seullner Brandão, atual coordenadora do programa, explica que o aprimoramento e a estruturação do atendimento aos animais selvagens que chegavam ao câmpus estimulou a elaboração de projetos de pesquisa por parte dos alunos de pós-graduação e, consequentemente, a publicação de artigos científicos envolvendo diferentes abordagens sobre esses animais. Com essa produção científica já em andamento, lembra a docente, foi proposto, em 2014, a criação de um programa de pós-graduação que abordasse especificamente os animais selvagens, tanto sob um ponto de vista clínico e cirúrgico, quanto a respeito de sua relação com a saúde e com o meio-ambiente.
“Na criação do programa, nós buscamos montar um corpo docente multidisciplinar, que de certa forma também se reflete no perfil dos alunos que recebemos, que é bastante diversificado. Temos estudantes com formação em Biologia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Odontologia, Direito, Física Médica, entre outros”, explica a coordenadora. “Além disso, por ser o único programa em Animais Selvagens no país, recebemos muitos alunos de fora do estado de São Paulo, e até mesmo de fora do Brasil”. Atualmente, o programa atua em duas linhas de pesquisa principais: Cirurgia, Anatomia e Diagnóstico por Imagem e Clínica, Conservação e Preservação.
Apesar de jovem, o programa já apresenta resultados no que diz respeito à formação de recursos humanos qualificados. Em 2021, um egresso do programa, André Antonio Cutolo, recebeu o prêmio “Unesp que dá certo”, criado pela Universidade para reconhecer trajetórias profissionais de destaque de pós-graduandos. Dentro do programa, Cutolo desenvolveu pesquisas sobre presença da leptospirose em animais selvagens, doença causada por bactérias e que pode infectar seres humanos e animais domésticos. Hoje o ex-aluno lidera o setor de pesquisa e desenvolvimento para produtos farmacêuticos veterinários da América do Sul na multinacional Boehringer Ingelheim, empresa alemã com mais de cem anos de existência e líder no mercado farmacêutico.
CEMPAS é fonte para projetos de pesquisa dos alunos
Além de ter sido a estrutura que estimulou a criação da pós em Animais Selvagens, o CEMPAS está intimamente ligado ao programa. Além de abrigar dezenas de animais trazidos por instituições parceiras, o espaço também cumpre um importante papel de atender à comunidade no entorno do câmpus de Botucatu e mesmo de municípios vizinhos da região. Dessa forma, o Centro se torna uma fonte essencial de material biológico para projetos de pesquisa desenvolvidos pelos alunos do Programa e para iniciativas de extensão, além de contribuir para a geração de conhecimento sobre a preservação das espécies locais.
No dia a dia, circulam pelo Centro alunos de mestrado, doutorado e os residentes, que ao lado dos servidores técnicos se revezam nas tarefas de manejo alimentar dos animais, na limpeza de gaiolas e baias, e no atendimento aos tutores de pets não-convencionais e do setor de fauna silvestre. “A residência do CEMPAS é a mais concorrida de todas as áreas do campus de Botucatu porque é a que tem menos vagas: apenas duas por ano”, explica Ricardo Shoiti Ishikawa, que acaba de terminar seu período de residência e hoje cursa o mestrado no programa. “Quando eu prestei eram duas vagas para 80 candidatos. Já em 2022 foram mais de 100 candidatos para duas vagas”.
Dentro do CEMPAS muitas vezes a impressão que se tem é que estamos entrando em um zoológico, em virtude do número e da diversidade de animais selvagens. Diferentemente de um zoológico, entretanto, os bichos estão ali apenas temporariamente enquanto recebem algum tipo de tratamento, realizam quarentena ou aguardam pelo momento de serem reintroduzidos à natureza ou encaminhados para criadouros, dependendo do caso. Em 2021, o Centro atendeu 1.115 animais, em sua maioria aves e mamíferos, que receberam atendimentos laboratoriais, e em casos mais graves foram submetidos a cirurgias, ou apenas passaram por triagem, sem a necessidade de algum procedimento mais sério.
Centro recebe animais de todo o estado de São Paulo
A origem dos animais que costumam chegar ao Centro são variadas. Muitos deles foram vítimas de acidentes rodoviários quando tentam atravessar alguma estrada e são atropelados pelos veículos. É o caso de um tamanduá-bandeira adulto [foto] que há três anos ocupa uma área externa do CEMPAS, um período bastante longo que não é comum no Centro. Batizado de Paul, ele foi encaminhado com um quadro grave de fratura em uma das patas e passou por cirurgia para a colocação de placas e parafusos que facilitassem sua recuperação. Alguns meses atrás, a placa foi retirada e o raio-x revelou que o osso está recuperado. Todo o processo contou com o apoio da ONG Instituto de Defesa da Fauna, e a expectativa é que nos próximos meses ele conclua o processo de reabilitação e seja reintroduzido ao ambiente selvagem.
O caso do tamanduá-bandeira é parecido ao de um macaco-bugio [foto] que chegou há cerca de dois meses ao CEMPAS. O primata foi levado ao Centro por funcionários da prefeitura do município de Tatuí, que o encontraram próximo à rodovia. O animal havia sido atropelado e apresentava um quadro de fratura bilateral do ílio, que exigiu procedimento cirúrgico e instalação de placas. A intervenção foi feita por uma professora especialista em cirurgia de pequenos animais. No centro, os procedimentos cirúrgicos, bem como a realização de exames de imagem, radiografias e o processo de recuperação, são sempre acompanhados de perto pelos alunos do programa.
Para desenvolver essas atividades, a grande maioria dos custos são financiados pela própria Unesp, mas o Centro tem estabelecidas parcerias com uma série de instituições, como as empresas concessionárias das rodovias do entorno de Botucatu, ONGs de preservação animal, IBAMA e a Polícia Ambiental. É bastante comum que espécies apreendidas em ações contra o tráfico de animais sejam levadas ao Centro para triagem. A polícia também costuma colaborar em eventos de treinamento e capacitação, além de orientar e apoiar o processo de soltura dos animais que, recuperados, apresentam condições de serem devolvidos à vida livre. Em outubro de 2021, por exemplo, a equipe foi chamada para fazer a avaliação física de uma onça-parda que invadiu um haras na região de Botucatu. Apesar de alguns ferimentos no rosto, o animal foi liberado para soltura, que ocorreu ainda no mesmo dia, com apoio da polícia ambiental.
Bruno Magorbo está na polícia militar há 20 anos, sendo dez como policial ambiental, e por diversas vezes durante sua atuação trabalhou ao lado dos profissionais do CEMPAS. “Eu também havia colaborado em projetos de educação ambiental com o professor Carlinhos e essa rotina acabou despertando uma atração pelo dia a dia do Centro e pelo seu trabalho com animais selvagens”, afirma Magorbo, que viu no programa de Pós-Graduação em Animais Selvagens uma oportunidade de se aprofundar no tema.
Em seu projeto de mestrado, sob a orientação do professor Carlinhos, Magorbo analisou os dados de apreensão de três espécies de aves durante a pandemia de Covid-19, o Canário da Terra (Sicalis flaveola brasiliensis), o Curió (Sporophila angolensis) e o Azulão (Cyanoloxia brissonii). As espécies têm em comum o fato de serem bastante procuradas por traficantes de animais pela beleza de seu canto.
O levantamento apontou a prevalência entre as pessoas que cometeram este tipo de delito de um perfil masculino, entre 35 e 55 anos. Os dados também mostraram um aumento considerável no número de apreensões por parte da Polícia Ambiental nos primeiros semestres da pandemia. Uma das hipóteses para este aumento seria a crise e falta de trabalho decorrente da Covid-19, com o tráfico das aves sendo uma opção para obtenção de renda dessas pessoas.
Neste ano, Magorbo acaba de ingressar no doutorado e tem planos de seguir no ambiente acadêmico e fazer um sanduíche no exterior. “Estando no mestrado e desenvolvendo as atividades do programa, acho que consegui incentivar os alunos de graduação a ver a polícia com outros olhos e também fazer a polícia ver a comunidade da Unesp com outros olhos”, afirma.
Pesquisa investiga a reintrodução de papagaios à vida livre
O tráfico de animais é um elemento presente também no projeto de pesquisa de Laís Lopes. Formada em Biologia, a doutoranda trabalha desde a iniciação científica com o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva). Essa é uma espécie problemática, explica Laís, porque apesar de não estar em risco de extinção, o papagaio é um dos animais que mais chegam aos centros de triagem e instituições como o CEMPAS. O montante é tão grande que, segundo a pesquisadora, praticamente não existem mais mantenedores com vagas para abrigar a espécie, atualmente. A capacidade de “imitar” a voz humana é um atrativo que torna a ave muito procurada por traficantes de animais. Além disso, um papagaio em cativeiro pode viver até cerca de 70 anos, o que estimula a entrega voluntária por parte dos donos, que muitas vezes herdaram a ave e não querem mais cuidar dela.
Sua pesquisa promove nestes animais de cativeiro o conceito de enriquecimento ambiental, que visa trazer para dentro do recinto em que a ave está abrigada maior complexidade e elementos comuns à vida livre. “Dessa forma, tentamos proporcionar ferramentas para que o animal possa reproduzir comportamentos típicos da espécie. Por exemplo, disponibilizar uma árvore onde ele possa fazer o ninho ou deixar um fruto inteiro no cacho para que ele identifique, manipule, arranque e se alimente”, explica a pesquisadora, que dispõe de grandes espaços de cativeiro ao invés de gaiolas. O objetivo desse “treinamento” é tornar a ave, que muitas vezes viveu toda a vida presa numa gaiola, apta para sobreviver no ambiente selvagem, e então libertá-la. A expectativa é que nesta fase do doutorado realize a liberação dos primeiros papagaios à vida livre, para em seguida monitorar a sua adaptação à vida livre.
Com anos dedicados à seu projeto de pesquisa, Laís celebra a contribuição que o Programa de Pós-Graduação em Animais Selvagens trouxe ao trabalho inovador de reintrodução dos papagaios à natureza. “Ter um programa com um corpo docente formado por vários perfis de profissional traz um diferencial enorme. Aqui pude, por exemplo, conversar com um zootecnista especialista em alimentação de selvagens que me ajudou na forma de adaptar a alimentação das aves que estão soltas sem perder qualidade nutricional”, cita a pesquisadora. “Ao mesmo tempo, pude aprender com veterinários sobre bem estar e comportamento animal, que foi outra visão importante na minha pesquisa. Essa troca de visões e experiências enriquece muito o trabalho e na minha opinião, faz toda a diferença no programa”.
Além dos alunos e parceiros, o reconhecimento ao programa parece estar presente também na esfera federal. Em sua primeira avaliação junto à CAPES, o programa obteve a nota 4, o que não é comum para programas estreantes. No final de 2022, após novo triênio de avaliação (2017-2020), o conceito subiu para 5. A nota máxima concedida pela agência é 7.
Foto acima: residente do CEMPAS e aluno do PPG em Animais Selvagens realizam atendimento à onça-parda que invadiu propriedade na região de Botucatu. Arquivo pessoal.