Proposta de moeda comum para transações bilaterais com a Argentina ainda é incipiente, mas sinaliza retomada da agenda de integração regional do novo governo

Especialistas apontam que medida poderia reduzir dependência do dólar, uma questão sensível para o atual momento da economia argentina, além de indicar o papel central que Mercosul terá na política externa brasileira

Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou a agenda internacional do novo governo com uma viagem à Argentina, onde se encontrou com o presidente Alberto Fernández e participou da cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Entre os temas que integraram a pauta com o presidente argentino estava a proposta de criação de uma moeda comum entre os dois países, remetendo à experiência de moeda única da zona do Euro.

Especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp, entretanto, afirmam que a proposta ainda é incipiente, não deve ser colocada em prática no curto prazo e tampouco prevê a adoção de uma moeda única pelos países, nos moldes do Euro, moeda oficial adotada pela maioria dos países-membro da União Europeia. Ainda assim, a iniciativa sinaliza o retorno do tema da integração regional às prioridades da política externa brasileira.

Professor do Departamento de Economia do câmpus de Araraquara da Unesp, Cláudio Paiva avalia que houve uma certa confusão sobre o conteúdo da proposta, muito em virtude de declarações do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, que afirmou ao jornal Financial Times, especializado na cobertura de negócios e temas econômicos, a ideia de se adotar uma moeda comum, cujo nome seria “sur”.

“Quando se fala em moeda é preciso cumprir uma série de requisitos, como a criação de uma reserva de valores, por exemplo. A proposta que está na mesa não tem nada disso. Ela não é uma união monetária de fato, e os países não vão abandonar o peso argentino ou o real”, esclarece o economista. Segundo Paiva, a proposta se aproxima mais da adoção de uma unidade de conta, a ser usada exclusivamente para as transações comerciais e financeiras entre os dois países.

Neste sentido, o mecanismo poderia substituir o uso do dólar nas transações bilaterais, o que, para o professor, poderia ser benéfico principalmente para a Argentina, que vive um momento de escassez e restrições à moeda norte-americana, prioritariamente usada em transações internacionais. “Embora ambos os países tenham mostrado expectativas positivas, o assunto precisa ser estudado com calma, e não será algo concreto para o curto prazo”, adianta. 

Para o professor, mesmo não sendo uma moeda única, a medida exigiria, por exemplo, alinhamentos na política monetária e no controle da inflação, sob o risco de gerar um desequilíbrios consideráveis nos custos de produção e, portanto, na competitividade entre os países. Se no Brasil, a inflação registrada em 2022 alcançou 5,79%, na Argentina o índice superou os 90%.

Apesar de não contemplar uma moeda única, o economista entende que a ideia poderia dinamizar ainda mais as relações comerciais entre os dois países. Isso é importante porque a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás de China e Estados Unidos. Entretanto, na pauta de exportação para o vizinho sul-americano predominam produtos industrializados, portanto de maior capacidade para geração de empregos. Já nas exportações para os mercados chineses e norte-americanos predominam produtos agrícolas e commodities, de menor valor agregado. 

Segundo dados disponíveis no site do MInistério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, o Brasil exportou mais de US$ 15 bilhões em produtos para a Argentina, um aumento próximo de 30% em relação ao ano de 2021, e que gerou um superávit de US$ 2 bilhões na relação comercial com o país, aproximadamente. Destes, cerca de 90% dos produtos se enquadram na categoria Indústria de Transformação.

Para o professor de Relações Internacionais Matheus Pereira, há um pano de fundo geopolítico na proposta de criação do “sur”, que sinaliza a recomposição das relações do Brasil com a Argentina, que ficou muito debilitada nos últimos anos, e a recuperação do vigor da integração regional, principalmente via Mercosul. 

Pereira lembra que, embora os especialistas apontem com frequência que o bloco econômico sul-americano esteja em crise, o Mercosul segue presente na agenda regional, ainda que com maior ou menor destaque, conforme a conjuntura. “Isso porque o Mercosul é um bloco que, bem ou mal, consegue dar espaço e resposta a interesses importantes de seus países membros, que são os interesses do setor industrial”, destaca o professor. “E nesse momento, esse é setor que está profundamente debilitado nos países que formam o bloco”.

Docente na PUC-SP e com uma trajetória acadêmica voltada para questões de política externa e economia política envolvendo a Argentina, Pereira concorda que os vizinhos sul-americanos são os maiores entusiastas da proposta de uma unidade que substitua o dólar, uma vez ela ajudaria a reduzir a pressão sobre as suas reservas internacionais. Ainda assim, o caminho da proposta deve ser longo. “O acordo político para se chegar nessa medida é muito complexo porque qualquer iniciativa passa necessariamente por um esforço de harmonização macroeconômica. Ainda que esse esforço seja muito menor que aquele feito pela Europa na adoção do Euro, não é uma conversa fácil”, avalia. 

Foto acima: presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião com o presidente da Argentina, Alberto Fernández. Agência Brasil.