Crise de escassez de semicondutores prejudica desde setor automotivo até programas de aceleradores de partículas, e tem disputa econômica entre EUA e China como complicador

Impacto da pandemia sobre cadeias produtivas mundiais evidenciou concentração da manufatura de dispositivos em poucos países , especialmente na Ásia. EUA lançaram programa bilionário para criar novos fábricas em seu território, buscando isolar e enfraquecer economia chinesa.

Dos fabricantes de geladeiras aos construtores de mísseis, passando pelas manufaturas de computadores, celulares, veículos e demais indústrias que utilizam princípios de computação, todas estão sentindo os efeitos da escassez  de semicondutores no mercado global. Essa escassez tem ensejado problemas como aumentos nos preços dos microchips (dos quais os semicondutores são elementos essenciais) e atrasos nas entregas das encomendas por parte dos poucos fabricantes do setor.

Os resultados impressionam especialmente em setores onde o uso de microchips é intenso. No caso da produção de carros, por exemplo, nos quais o número de chips utilizados em diferentes sistemas pode ultrapassar os três mil por veículo, o total de unidades que deixaram de ser produzidas desde 2021 devido à escassez de semicondutores beira os 15 milhões, segundo relatório da Auto Forecast Solutions . E o Brasil, como era de esperar, não passa ao largo desse problema. Estudo da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) conclui que, só no ano de 2022, a falta de semicondutores gerou uma redução de 250 mil unidades na produção brasileira de veículos.

As origens da crise estão na pandemia de covid-19, que abalou boa parte das  cadeias produtivas dos produtos eletrônicos. Mas elementos como a alta concentração da produção de semicondutores numa mesma região do planeta e a disputa por hegemonia política travada entre Estados Unidos e China, e que em 2022 se tornou ainda mais encarniçada, podem fazer com que o retorno à normalidade ainda demore, e  redesenhar a indústria de semicondutores.

Atraso de um ano em projeto para o CERN

Até o Conselho Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), a instituição científica internacional que opera o maior acelerador de partículas do mundo, o Large Hadron Collider (LHC), já se posicionou publicamente sobre o problema. Ocorre que essa crise de semicondutores estourou no mesmo período em que o LHC interrompeu suas atividades para se submeter a um processo de upgrade tecnológico que vai aumentar sua capacidade de operação em dez vezes. Em nota, representantes do CERN reconheceram que seus fornecedores anunciaram redução na capacidade de produção e aumento nos custos de fabricação durante o período de 2022 e 2023. E parceiros do CERN ao redor do mundo já esbarraram nesta nova realidade.

O Centro de Pesquisa e Análise de São Paulo (SPRACE), associado ao Núcleo de Computação Científica da Unesp e que integra a rede mundial de processamento de dados do CERN, tem colaborado no desenvolvimento de componentes e tecnologias para o upgrade do LHC. O pesquisador do SPRACE Luigi Calligaris  é o encarregado da coordenação de projetos financiados pela Fapesp relacionados ao desenvolvimento de hardwares e códigos para um dos detectores do LHC responsáveis por identificar o Bóson de Higgs, o CMS.

Interior do CMS, um dos detectores no LHC

Calligaris relata que um dos projetos prevê a construção de 50 placas para serem testadas agora em 2023.  “A escassez de semicondutores nos anos 2021 e 2022 teve um grave impacto na produção dos componentes eletrônicos utilizados em nossos experimentos”, diz. Ele relata que embora fosse necessário fazer o pagamento no momento da encomenda, não havia previsão de entrega dos componentes. “Em abril passado chequei o prazo previsto para a entrega da encomenda, em abril, era de um ano. Conferi de novo no fim do ano, era um ano de novo. As datas de entrega estavam sendo constantemente arrastadas para a frente”, conta Calligaris. “O resultado foi um atraso de mais de um ano em alguns de nossos projetos”, diz.

Mas, desde o final de 2022, ele diz ter percebido uma clara tendência de melhora na disponibilidade de peças. “Apesar de a crise não estar resolvida, temos a expectativa de que, ao longo do ano de 2023, seremos capazes de obter as peças necessárias para a nossa atividade de prototipagem e montagem de componentes para o LHC”, diz.

Covid coincidiu com explosão no emprego de chips

Professor titular do Instituto de Física Teórica da Unesp e coordenador do SPRACE, o físico Sergio Ferraz Novaes explica como diferentes aspectos da epidemia de covid-19 acabaram tendo impacto nas cadeias globais de suprimentos de semicondutores. “Os lockdowns, principalmente na China, fizeram com que as fábricas deixassem de produzir. Ao mesmo tempo, a demanda global por computadores e seus periféricos aumentou mais de 25% devido à explosão do home office e do ensino a distância”, diz. Para bagunçar ainda mais o cenário, a guerra comercial EUA-China levou ao boicote da aquisição de produtos, por consumidores e companhias ocidentais, de algumas empresas chinesas como a Huawei e SMIC. Isso gerou sobrecarga na produção em outros locais como Coreia, Japão e Taiwan.

Reinaldo Sakis, gerente de pesquisa e consultoria e devices consumer da empresa de consultoria e pesquisa IDC, lembra ainda que o crescimento de uso de chips em larga escala vem exigindo também um novo tipo de planejamento desse segmento. “Antigamente, a criação dos chips era planejada para computadores, celulares e outros dispositivos de tecnologia da informação. Aí, hoje vemos geladeiras tendo algum tipo de inteligência, vemos carros conectados, falamos de IoT (internet das coisas), com várias máquinas conectadas digitalmente… Isso tudo aumentou o consumo desses produtos e exige um total replanejamento da produção”, afirma Sakis.

Taiwan, aliás, possui uma importância para a produção mundial de semicondutores que é desproporcional ao seu reduzido tamanho.  “Apenas uma empresa, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), responde por mais de 50% do mercado global de fundição de wafers (componente feito de material supercondutor usado nos chips) e  produz mais de 90% dos semicondutores mais avançados do mundo”, diz Novaes. “Além disso, dezenas de outras companhias de chipsets, placas e wafers de silício fazem com que Taiwan desempenhe um papel crítico na cadeia global de suprimentos eletrônicos.”

Nancy Pelosi (esq.) em visita a Taiwan, em agosto de 2022.

E por algumas semanas Taiwan esteve no centro do noticiário internacional em 2 e 3 de agosto do ano passado, por ocasião da visita à ilha da então presidente do Congresso norte-americano, Nancy Pelosi. Desde a fundação da República Popular da China e a conclusão da revolução chinesa em 1949, Taiwan se separou e passou a existir como um país em separado, o que só foi possível graças ao elevado apoio político, econômico e militar que recebeu dos EUA. A China, porém, nunca reconheceu esse status de país independente, trata Taiwan como uma província rebelde e  seguidamente tem manifestado seu desejo de reintegrá-la ao território, a força se necessário. Para manifestar seu desagrado com a visita de Pelosi à ilha, funcionários do governo chinês chegaram a sugerir, abertamente, que o avião da deputada norte-americana poderia ser abatido em pleno voo. Ela pagou para ver, e felizmente o pior não aconteceu. Durante semanas, porém, as forças armadas chinesas fizeram exercícios navais e aéreos nas fronteiras de Taiwan, incluindo repetidos sobrevôos sobre seu território, como a sugerir que uma invasão poderia ocorrer a qualquer momento em que o governo da República Popular da China assim o desejasse.

EUA querem superar crise e ao mesmo tempo isolar China

Pois apenas uma semana depois da viagem de Pelosi, em 9 de agosto, o presidente americano, Joe Biden, assinou uma legislação denominada  Chips and Science Act, declaradamente com o objetivo de reduzir os custos, criar empregos, fortalecer as cadeias de suprimentos locais no país, somando-se a outras iniciativas para combater a escassez de semicondutores. Porém, Marcos Cordeiro Pires, professor titular do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp, situa a medida em um contexto mais amplo. Para ele, vivemos um momento histórico em que a globalização econômica está passando por um processo de refreamento, e os princípios de eficiência econômica estão perdendo espaço para as demandas de segurança, inclusive em termos militares, das grandes nações. Neste contexto, a fabricação de microchips se tornou também uma peça central na estratégia comercial do governo dos Estados Unidos contra a China.

 “O Chips and Science Act, que promete investimentos de cerca de US$ 52 bilhões para aumentar a produção de semicondutores fabricados nos EUA, é até este momento uma das peças mais importantes de uma série de políticas industriais para garantir a hegemonia produtiva, militar e tecnológica americana”, afirma Pires. Para o pesquisador, as iniciativas dos Estados Unidos buscam reforçar e administrar o investimento federal em áreas cruciais de pesquisa e desenvolvimento de biotecnologia e biomanufatura, e acelerar o uso prático dos resultados dessas pesquisas.

Grandes investimentos, mas sem solução de curto prazo

O grande impeditivo para o fim dessa escassez de chips é que dificilmente haverá uma solução no curto prazo. “Vemos nos Estados Unidos e mesmo na Europa esses investimentos altíssimos em fábricas de semicondutores, que levam anos para serem construídas. Projetos iniciados em 2021 têm planejamento para começar a produzir em 2024. São necessários bilhões de dólares para desenvolver uma fábrica dessas e cerca de quatro ou cinco anos para entrar em produção. Ou seja, a oferta desses produtos ainda tende a demorar um pouco para se estabilizar”, completa Sakis (veja gráfico abaixo).

Mesmo assim, o mercado sabe que este é um investimento necessário. Relatório da consultoria S&P aponta que 14 fábricas de desenvolvimento de placas de semicondutores de 300mm começaram a ser construídas em 2021 no mundo todo. Em 2022, 10 novas fábricas foram inauguradas e mais 13 estão planejadas para serem inauguradas em 2023. O estudo conclui que a indústria espera 200 fábricas operando na tecnologia de 300mm até 2026.

Brasil tentou se tornar player na área, mas desistiu

Sergio Novaes lembra que, no Brasil, na década de 70, houve um grande “lobby” de alguns físicos que voltavam ao país para que não perdêssemos o momento e nos envolvêssemos na área de semicondutores. “Na época, os professores Cerqueira Leite, José Ellis Ripper Filho e Sérgio Porto, entre outros, deram início às pesquisas da Unicamp e induziram, em certa medida, à criação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebrás (CPqD) e Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) e sua fábrica de circuitos integrados”, conta Novaes. Mais recentemente, em 2008, houve a criação do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), em Porto Alegre. “Porém, depois de fazer alguns circuitos integrados de baixa complexidade, o governo decidiu liquidar a empresa em 2020 e vender os ativos para o setor privado”, lembra Novaes, reforçando que a Índia hoje é a última grande economia a se envolver na área de semicondutores, obtendo um investimento de aproximadamente US$ 20 bilhões da Foxconn. Com isso, o país deverá ter sua primeira fábrica de semicondutores funcionando até 2024.

Foto acima: Deposit Photos.