“Os grupos de extrema direita estão perdendo o pudor de usarem a violência”

Estudioso do integralismo e do radicalismo político, cientista social da Unesp situa o bolsonarismo numa tradição autoritária brasileira, e alerta para o risco de iniciativas ainda mais ousadas se não houver uma resposta adequada por parte das instituições do Estado. “O extremismo politico é a degeneração das instituições democráticas”, diz Jefferson Barbosa.

Os deploráveis atos terroristas que destruíram o Palácio do Planalto, o Palácio do STF e o edifício do Congresso Nacional no domingo passado não surpreenderam o cientista social Jefferson Barbosa, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília. Há mais de uma década ele vem investigando os grupos de extrema direita no país, e já estava de olho na movimentação dos grupos na semana anterior ao ataque.  “Era uma tragédia anunciada”, diz. Barbosa é autor de diversos artigos, livros e capítulos sobre o tema, e um dos organizadores da coletânea “Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das democracias”. Nesta entrevista ao Jornal da Unesp, ele analisa o perfil e as causas do crescimento recente da direita radical no Brasil, e o quanto esse conceito serve para descrever o movimento bolsonarista que conseguiu seduzir boa parte do voto conservador brasileiro. “Existe no Brasil historicamente uma presença de movimentos de extrema direita. Não é algo novo. Mas Bolsonaro não é um líder nos moldes de Plínio Salgado ou Mussolini, ele é muito menor do que isso”, analisa. 

*****

Até os ataques terroristas verificados à Praça dos Três poderes domingo passado, muita gente duvidava de que pudesse ocorrer no Brasil alguma coisa semelhante à invasão do Capitólio efetuada dois anos atrás. Você tinha alguma expectativa nesse sentido?

Jefferson Rodrigues Barbosa: Sim, sim. Esse é um elemento óbvio. Não consigo parar de ver os jornais desde domingo e os jornalistas também são consensuais sobre isso: era uma tragédia anunciada. As forças de segurança federal estavam informadas e a mídia já dava cobertura sobre a chegada de dezenas de militantes bolsonaristas, em Brasília, desde sábado. E já havia dois meses que o acampamento em Brasília tinha uma grande mobilização. É muito importante que lembremos que, no dia 12 de dezembro, na diplomação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, houve várias ações de caráter terrorista. A grande mídia deu cobertura. Foram carros, ônibus incendiados, depredações e sinais claros de violência que partiram do próprio QG bolsonarista na cidade de Brasília. Houve descaso por parte das autoridades federais e do Distrito Federal e ninguém foi preso pelos acontecimentos desse dia, mesmo que se observassem explicitamente características de ações terroristas de extrema direita.

Esse não é um fato isolado. Devemos lembrar que, além da ocupação do Capitólio, houve também outras ações violentas da extrema direita estadunidense, como no caso de Charlottesville. Essas manifestações estão explodindo não somente no Brasil.

Há uma espécie de perda de pudor quanto às ações agressivas por parte destes grupos de extrema direita que agem em sintonia. Um dado muito importante é que, durante toda a campanha presidencial, a equipe e os estrategistas de propaganda de Bolsonaro organizaram diversos encontros pelo Brasil chamados “Brasil Profundo”. Ocorreram  em várias cidades, com a participação de personalidades como o próprio ex-presidente e de Eduardo Bolsonaro, e de lideranças de movimentos da extrema direita internacional. Existe uma conexão desses grupos para uma ação orientada. Devemos lembrar, por exemplo, do papel exemplar – no sentido negativo do termo – de Donald Trump com o “The movement”, organização criada por Steve Bannon que tem dado estímulo e direção para uma ação conjunta desses grupos de extrema direita em vários países. Então Eduardo Bolsonaro e a rede bolsonarista não agem de forma isolada, eles estão conectados.

O episódio de domingo obviamente ocorreu com a colaboração das forças policiais do Distrito Federal. Isso nos lembra o golpe de estado na Bolívia há alguns anos, que foi organizado e incentivado inclusive por forças policiais. Os golpistas tiveram apoio da polícia boliviana e de grande parte das forças de segurança. Esse colaboracionismo golpista deve ser investigado pelas forças de segurança. Esse é um grande teste para o governo federal. E, se não ocorrer uma medida de defesa das instituições democráticas, esses grupos de extrema direita tentarão iniciativas mais ousadas.

Quem integra a extrema direita no Brasil hoje?

Jefferson Rodrigues Barbosa: Para trazer essa discussão para critérios acadêmicos e científicos, podemos analisar a questão mesmo sem recorrer a pensadores ligados à luta antifascista, como Gramsci. Se recorremos a Norberto Bobbio, famoso filósofo político italiano, o extremista político é contrário às instituições representativas, à contraposição de ideias e a deliberações de caráter que representam a vontade da maioria. O extremista político tem como recurso último a força e a violência. São marcados por conteúdos de fundamentalismo religioso, político, econômico, numa pauta ultraliberal. Nessa concepção, Bobbio fala que os extremismos políticos representam uma degeneração das instituições democráticas. A extrema direita, hoje, no Brasil, é composta por aqueles que não se restringem aos espaços deliberativos e representativos. São aqueles que entendem que a Constituição e as instituições de poder do Brasil devem ser derrubadas e abolidas. Há um irracionalismo baseado em mitos políticos, como força, defesa da mãe pátria, culto à nação, exclusão de certas classes.

Os militantes bolsonaristas, hoje, se agregam em organizações e movimentos, além do sistema eleitoral, além do Partido Liberal. E o bolsonarismo está além da própria figura de Jair Bolsonaro, que é apenas um títere. Assim como o foi a figura de Plínio Salgado para o Integralismo brasileiro.

 Entre seus apoiadores, estão alguns dos nossos familiares que alimentam um sentimento antipetista com aquela ideia do voto de protesto. Mas parte substantiva desse eleitorado tem simpatias claras com ideias de extremismo político. Dentro do governo Bolsonaro, temos diversos personagens que representam expressões da direita radical no Brasil. Paulo Costa, assessor especial da ex-ministra Damares Alves, é uma forte liderança da Frente Integralista Brasileira.

O pesquisador Marcelo Badaró Mattos, da Universidade Federal Fluminense, enxerga o movimento bolsonarista como basicamente dividido em três grupos: os ultraliberais, os neoconservadores e os intervencionistas militares. O primeiro grupo é o dos amigos do Paulo Guedes, que querem privatizações, uma valorização das pautas econômicas que contemplem o empresariado e não os trabalhadores. Defendem o estado mínimo, arrocho salarial e pauperização para a vida dos trabalhadores.

Já os neoconservadores são os que resgatam temas do conservadorismo clássico, como a defesa da tradição, da ordem, da família, a chamada pauta dos costumes. O movimento neoconservador é muito forte nos Estados Unidos, desde os anos 1970 e 1980. E tem um vínculo muito forte com igrejas, lideranças religiosas e suas pautas moralizantes que alimentam sentimentos antidemocráticos. São avessos a temas igualitários ou à discussão sobre a educação sexual. São homofóbicos, muitas vezes, e contrários a outras culturas religiosas, além da cultura hebraica-cristã.

O terceiro grupo foi o que ganhou a tônica domingo. Os intervencionistas militares são a terceira base do bolsonarismo. Desde a campanha eleitoral, em 2018, a pauta do intervencionismo militar e uma apologia ao período da ditadura militar, como um período aparentemente positivo para a história brasileira, eram colocadas por estas lideranças e por intelectuais da extrema-direita. A isso chamamos de revisionismo histórico. Assim como neonazistas tentam desenvolver uma leitura positiva da história do terceiro Reich, também temos os saudosistas da ditadura no Brasil.

No que a extrema direita brasileira se parece com a extrema direita no mundo e no que se diferencia?

Jefferson Rodrigues Barbosa: É difícil fazer comparações, afinal cada país tem suas peculiaridades históricas, políticas, culturais. Na Europa, por exemplo, há um movimento focado no discurso anti-imigração, que gera ações violentas e perseguições. Mas, tanto no Brasil quanto no cenário internacional, observa-se uma normalização e um crescimento desses grupos. Uma das explicações para isso é justamente a da negação da política, de descontentamento com o sistema político representativo e com a chamada classe política. Muitos cidadãos brasileiros e de outros países são descrentes do sistema eleitoral e das instituições.

Outro elemento comum engloba os indivíduos que defendem ideias antidemocráticas, racistas, ideias contra o estado democrático de direito. Isso se encontra tanto entre os apoiadores e saudosistas do nazismo e do fascismo, que compõem a extrema direita tradicional, mas também os neoconservadores, sobre os quais já falamos. 

Jair Bolsonaro se encaixaria num terceiro grupo, o dos populistas de direita, que também defendem pautas antidemocráticas. Eles se colocam como a antítese da política, os políticos anti-establishment, e fazem uso de palavras demagógicas, como “a nova direita”, ou “a nova política contra a velha política”. Mas, na prática, são políticos profissionais, como é o caso de Jair Bolsonaro, que esteve por mais de 30 anos na vida pública.  Essas pessoas disputam eleições, estão em partidos, têm cargos eletivos, muitas vezes são servidores públicos, mas demagogicamente se dizem antissistema.

Em 2012, a extrema direita no Brasil era algo minoritário, algo até folclórico, curioso. As pessoas me perguntavam se isso ainda existia. Integralistas ou defensores do nazismo pareciam algo muito distante da realidade. Mas eu estava justamente estudando o crescimento dessas organizações. Até que, alguns anos depois, veio o golpe contra a Dilma Rousseff e seguimos em um caminho discutível e ilegítimo. Depois vieram os governos Temer e Bolsonaro.

É correto associar todos os bolsonaristas à categoria de extrema direita?

Jefferson Rodrigues Barbosa: O conceito extrema direita tem muito mais uma funcionalidade de identificação, de que se trata de indivíduos perigosos, violentos, antidemocratas. Mas há uma terminologia muito mais ampla que abarca diversos grupos radicais.  Além da expressão populistas de direita, os pesquisadores tem na expressão direita radical uma terminologia também bastante usada. A direita radical tem um elemento de caráter fascistizante. Quando falamos em fascistização, estamos falando deste impulso à violência, dessa instrumentalização de uma retórica nacionalista chauvinista, de um aparente patriotismo, mas que defende posturas extremamente perigosas. Temos aí uma denominação conceitual útil. Mas devemos ter cuidado para não generalizarmos a expressão, pois o fascismo trata da experiência italiana, dos anos 1920 aos 1940. E não estamos tratando de uma reprodução mimética do fascismo histórico italiano. A terminologia extrema direita é muito mais ampla já que abarca diversos grupos radicais.

O fato de o bolsonarismo usar o mesmo lema do integralismo “Deus, pátria e família” foi escolhido aleatoriamente ou tem uma intenção de continuidade histórica?

 Jefferson Rodrigues Barbosa: Na política nada é aleatório. Jair Bolsonaro é uma figura política histórica no Brasil que, desde os anos oitenta, age como um político de direita radical. Suas pautas como deputado sempre estiveram ligadas a um discurso antiesquerda, à defesa da ditadura militar, da justiça pelas próprias mãos, com porte de armas… Esse saudosismo do período ditatorial militar sempre foi uma marca da sua figura Jair Bolsonaro. Assim, a escolha do lema “Deus, pátria e família” não pode ser pensada como um mero acaso. Uma especulação que faço é que Jair Bolsonaro organizou uma grande frente de alianças entre grupos de centro direita e da direita radical, alguns à margem do sistema político e outros incrustados no sistema político e, com esse lema, ele agrega diversas tendências. A  ideia das pautas ultraliberais, neoconservadoras e intervencionistas militares se agregam dentro desta lógica.

Devemos pensar que existe no Brasil historicamente uma presença de movimentos de extrema direita, não é algo novo. Durante todo o século 20 tivemos grupos, líderes, partidos de extrema-direita. E Bolsonaro representa uma etapa da história da extrema-direita brasileira. Mas Bolsonaro não é um líder fascistizante no  estilo de Mussolini ou Plínio Salgado; ele é muito menor do que isso. Ele é um político oportunista que durante décadas  teve mandatos graças a uma base eleitoral ligada a pautas antidemocráticas. Por uma conjuntura de crise das instituições desfechada pelo impeachment de Dilma e o desgoverno de Temer, encontrou uma oportunidade e uma brecha para se projetar seguindo o exemplo de Trump nos Estados Unidos. É claro que antes  a base eleitoral da direita radical já estava sendo estimulada. Jair Bolsonaro foi astuto enquanto político profissional para criar condições e alianças para se projetar.

O bolsonarismo é muito mais perigoso e maior do que propriamente Bolsonaro. Bolsonaro passará. A experiência e a cultura bolsonarista, no entanto, deixarão raízes que precisam ser combatidas.

As últimas eleições na Itália levaram uma candidata apoiada pela extrema direita ao topo do sistema político do país. E há diversos exemplos de grupos politicamente radicais ganhando espaço nas maiores democracias do mundo, incluindo os EUA e a França. Como você enxerga este processo?

Jefferson Rodrigues Barbosa: É uma pergunta difícil, porque as motivações da projeção de líderes e movimentos de extrema-direita tem também particularidades nacionais, conjunturas históricas locais. Nós temos um elemento que pode ser um elemento agregador do porquê de esses grupos terem crescido tanto.

Concordo com a perspectiva de Domenico Losurdo, um filósofo político italiano, que isso pode ser explicado pelos  efeitos deletérios do capitalismo contemporâneo e das políticas neoliberais. E o que isso tem a ver com a extrema-direita? Um dos temas que pesquisei nos últimos anos foi a chamada Casa Pound, uma organização de extrema-direita na Itália. Eles se dizem fascistas do terceiro milênio. São saudosos do fascismo italiano, mas se colocam como um movimento que busca atualizar a agenda social, ou seja, eles se colocam como um partido defensor de políticas públicas, mas somente para os italianos. Têm uma ideia de uma supremacia nacional italiana: “italianos em primeiro lugar” é o lema do movimento, tal qual era o do Trump, nos Estados Unidos. De certa forma, a direita radical se desenvolve na Itália pela falência das políticas neoliberais, e pelo déficit na qualidade de vida dos trabalhadores europeus. 

É o caso da antiga Frente Nacional francesa que agora se chama renovação nacional. O discurso de Marine Le Pen é bastante semelhante. No caso brasileiro, Jair Bolsonaro joga uma pauta um pouco mais nebulosa e confusa. Sem fazer uma crítica direta ao neoliberalismo e sem ter um discurso anti-imigrante explícito, como na Europa, ele volta a temas muito mais generalizantes: o anticomunismo, a ditadura do Partido dos Trabalhadores, a pauta dos costumes, a questão da discussão sobre o aborto, do Escola Sem Partido, a questão da ideologia de gênero. Então, apesar de existirem semelhanças entre essas grandes expressões da extrema direita no cenário internacional, muitas delas exitosas pelas falências das políticas neoliberais e pelo arrocho econômico que são consequência de políticas de caráter capitalista, temos essa particularidade, no caso brasileiro.

Imagem acima: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil