O fogo pode ser um importante aliado na conservação do Cerrado

Experimento em três unidades de conservação no bioma já mostrou que uso de queimadas como ferramenta de manejo ajudou a impedir ocorrência dos grandes incêndios que devastam flora e fauna.

Quando assistimos aos noticiários e vemos imagens dos incêndios na Amazônia, a primeira coisa que vem às nossas mentes é: nossa, o fogo é muito ruim e tem um grande poder destruidor.

Sim, é verdade. Os grandes incêndios que temos visto acontecer nos últimos três anos realmente trazem grandes problemas. Primeiro, são fruto do desmatamento: a floresta é derrubada e logo depois queimada. E, se ocorrerem em um ano de maior seca, tais incêndios podem entrar mais pela mata e trazer graves consequências aos ecossistemas de florestas tropicais.

Esses grandes incêndios não se limitam apenas à Amazônia, e também são vistos em outros ecossistemas no Brasil. Mas, é preciso apontar as diferenças quanto aos efeitos do fogo em cada um deles. As florestas tropicais não evoluíram na presença do fogo; ele não ocorre de maneira natural nestes ambientes, e é resultado do desmatamento. Ou seja, a floresta tropical não queima se cair um raio, por exemplo. Porém, existem ecossistemas no Brasil, como os savânicos e tropicais, no Cerrado, que evoluíram na presença do fogo, e este constitui um importante fator ecológico para sua manutenção.

Isso quer dizer que os incêndios no Cerrado são intrinsecamente bons e por isso podemos sair colocando fogo? Não. Há uma grande diferença entre os incêndios (que é o nome dado aos episódios de fogo descontrolado), as queimas controladas, as queimas prescritas e as queimas experimentais.

Os incêndios, na maior parte das vezes, são causados pelo homem, principalmente durante a estação seca, e podem queimar grandes áreas, resultando na homogeneização da paisagem. Por outro lado, quando as queimas são feitas de maneira controlada, são utilizadas técnicas para que o fogo atue como uma ferramenta de manejo da terra por produtores.

Para promover a conservação de alguns ecossistemas onde o fogo é natural, queimas prescritas têm sido aplicadas por gestores e brigadistas em áreas protegidas. As queimas experimentais auxiliam na compreensão dos efeitos do fogo na vegetação, fauna e serviços ecossistêmicos, também sendo feitas de maneira controlada.

Portanto, o fogo pode ser uma importante ferramenta de manejo nos chamados ecossistemas inflamáveis, ou seja, aqueles que evoluíram na presença do fogo, nos quais as queimadas exercem um importante papel nos seus funcionamentos. Queimadas prescritas podem ser utilizadas, por exemplo, para controlar a quantidade de material combustível (o material que vai queimar e sustentar o fogo), evitando-se assim a propagação de grandes incêndios.

Queimada já é usada por povos indígenas e comunidades tradicionais

As queimadas controladas são utilizadas há milhares de anos por povos indígenas e comunidades tradicionais para limpeza de área, estímulo de rebrote e frutificação de espécies utilizadas no seu dia a dia. Porém, como o fogo sempre foi visto como um vilão, a política brasileira dentro e fora das unidades de conservação do Cerrado tinha como norma a política do fogo zero: qualquer incêndio era apagado e evitado, e o uso do fogo era proibido. Esta política pode parecer correta. Contudo, em unidades de conservação do Cerrado a política do fogo zero levou a grandes incêndios que são difíceis de combater e que demandam muito dinheiro, principalmente do meio para o final da estação seca.

Alguns desses incêndios queimavam, em poucos dias, áreas com mais de 50 mil hectares, o equivalente a mais de 60 mil campos de futebol. Por exemplo: em 2017, o período de seca no Cerrado no Brasil Central foi mais prolongado. Por causa de incêndios criminosos, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros queimou em outubro, atingindo uma área de mais de 60 mil hectares. Tais incêndios chamaram muito a atenção da mídia, por se tratar de um parque muito visitado. Estes incêndios levaram à queima de áreas de vegetação sensível ao fogo, como matas de galeria dentro do parque, que atualmente necessitam de restauração. Em algumas áreas destas matas de galeria que foram queimadas, parte da camada de matéria orgânica do solo foi destruída, houve grande mortalidade de árvores de mata (que não possuem adaptações ao fogo e, portanto, são sensíveis a ele), e invasão biológica após os incêndios por espécies como o capim-gordura, o que levou então à degradação das matas.

Quando são analisados os mapas com as cicatrizes de queima (das áreas queimadas) de outros anos, pode-se observar que, em 2010, grande parte do parque também queimou por conta de grandes incêndios. Posteriormente, houve um controle dos incêndios, que ocorreram em pequenos setores do parque nos anos seguintes. Isso resultou em acúmulo de material combustível. Em 2017, praticamente toda a área do parque onde ocorreram incêndios foi a mesma onde não se via fogo desde 2010. Isso mostra que essa exclusão do fogo por tantos anos na verdade facilitou que, depois, os incêndios se espalhassem por grandes áreas, devido à presença de muito material combustível acumulado e contínuo.

O combate de incêndios, principalmente durante a estação seca, pode ser muito difícil por diversos motivos. O fogo se espalha mais facilmente pelo fato de o material combustível estar mais seco. A ocorrência de chuvas é mais difícil durante este período e, portanto, o combate tem que ser feito exclusivamente pelos integrantes das brigadas contra incêndio e por voluntários – as brigadas geralmente são contratadas durante este período. O trabalho dos brigadistas nestes casos muitas vezes enfrenta dificuldades adicionais, como a necessidade de atuar em locais com terrenos acidentados e de difícil acesso. Cada brigadista carrega normalmente uma bomba costal (equipamento com água) com 20L, além de abafadores e assopradores, e muitas vezes o combate é feito apenas com esses equipamentos, devido à impossibilidade de levar a tais lugares outros materiais de apoio, como carros-pipas, tratores e outros tipos de automóveis. Portanto, uma boa parte do combate é feito a pé por extensas áreas. Além disso, os combates custam muito dinheiro.

O Projeto Cerrado Jalapão

Em 2014, o manejo integrado do fogo (MIF) foi implementado em três unidades de conservação do Cerrado: Parque Nacional da Chapada das Mesas (160 mil hectares, MA), Parque Estadual do Jalapão (154 mil hectares, TO) e Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins (716 mil hectares, TO). A implementação deste projeto foi uma iniciativa conjunta do governo brasileiro com o governo alemão, através do Projeto Cerrado Jalapão, e se baseou nas experiências de manejo de fogo australianas: a utilização de queimas controladas na forma de mosaico, formando áreas queimadas e não queimadas na paisagem, diminuindo assim a probabilidade de grandes incêndios ocorrerem e queimarem extensas áreas, incluindo áreas de vegetação sensível ao fogo. O MIF envolve não apenas ações de combate, mas de prevenção e planejamento, desde atividades de conscientização ambiental e recuperação de áreas degradadas por incêndios até a seleção de áreas para queimas prescritas. Além disso, dois princípios importantes do MIF são a relevância ecológica do fogo no sistema e o reconhecimento do conhecimento tradicional do uso do fogo na região.

A implementação das queimas prescritas contou com vários desafios. A começar por uma mudança de paradigma por parte de gestores. Até então, a vida de um gestor de unidade de conservação do Cerrado incluía se preparar para os grandes combates que aconteciam durante a estação seca e evitar que as pessoas colocassem fogo perto das unidades, ou mesmo dentro delas. Porém, com a implementação do MIF, além de pensar no fogo como uma ferramenta de manejo, e não somente como algo a ser combatido, os gestores tiveram que conversar com os povos tradicionais e comunidades locais e trabalhar junto com eles para alcançar um melhor planejamento. Isso mudou as relações entre as comunidades locais e os gestores de áreas protegidas, que geralmente estavam perpassadas por conflitos.

Em poucos anos desde que foi implementado o MIF, já se observam grandes mudanças no cotidiano dessas unidades de conservação. O planejamento do MIF é feito no início do ano. As queimas prescritas são realizadas no início da estação seca ou da estação chuvosa, e ocorrem em áreas específicas selecionadas. E embora o monitoramento de incêndios seja feito ao longo de toda a estação seca, os episódios dos grandes combates são menos frequentes. Isso resultou em uma grande mudança no chamado regime de fogo local, o que envolve fatores como o período em que o fogo ocorre, a área que é queimada por cada evento e a frequência com que uma mesma área queima. Observa-se que houve uma alteração na época do fogo, com maior quantidade de queimas ocorrendo no início da estação seca, por conta da aplicação do fogo prescrito. Além disso, as áreas queimadas em um único evento de fogo são menores, ainda que a área total anual queimada sendo parecida. Desta forma, em poucos anos, a adoção do sistema de MIF nestas três unidades de conservação conseguiu reduzir os grandes incêndios.

Atualmente, várias unidades de conservação do Cerrado empregam o manejo de fogo integrado, ou seja, utilizam o fogo como uma ferramenta para controlar o material combustível e formam na paisagem um mosaico que alterna áreas queimadas e não queimadas, facilitando assim o combate. Há muitos desafios pela frente. Recentemente, o CNPq, juntamente com o PREVFogo/IBAMA, lançou uma chamada para projetos de pesquisa com o objetivo de aumentar nosso conhecimento sobre o MIF, não só sobre os aspectos ecológicos, mas também sociais. Esta chamada mostrou a importância de se somar à pesquisa o conhecimento de povos indígenas e tradicionais, e a prática dos brigadistas, para a conservação do Cerrado.

Alessandra Tomaselli Fidelis é professora do Instituto de Biociências de Rio Claro (IB) da Unesp e vice-presidente da International Association for Vegetations Science.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Foto acima: experimento na Reserva Natural Serra do Tombador. Crédito: Alessandra Fidelis.