“Não tem como resolver certas desigualdades sem discutir raça e racismo”

Egresso da Unesp, cofundador da agência Alma Preta fala sobre as diferenças do jornalismo de temática racial na cobertura de notícias e seus efeitos sobre a atuação na mídia tradicional.

Desde 2015, a agência de jornalismo investigativo Alma Preta tem procurado enxergar a vida brasileira por uma lente diferenciada, mais capaz de apontar a influência das temáticas de raça e preconceito no cotidiano de nossa população. Hoje, ela se consolidou como referência no campo da mídia alternativa,  contabilizando uma média de 190 mil acessos por mês e engajando 36 colaboradores na produção do seu conteúdo. À frente do projeto desde seu lançamento estão quatro ex-alunos da Unesp: os jornalistas Pedro Borges, Solon Neto e Vinícius Martins e o designer Vinícius de Araújo.

Na origem da Alma Preta está o turbulento ano de 2013, quando um pequeno protesto contra o aumento do preço do transporte em São Paulo, no mês de junho, em poucos dias evoluiu para uma sequência de grandes manifestações que incendiaram o cenário político do país. As ruas foram tomadas por uma quantidade crescente de pessoas que expressavam todo tipo de descontentamento, até que a pauta se pulverizou e as reivindicações originais ficaram para trás.

Entre aqueles que foram arrebatados pela onda cívica estavam Pedro Borges, Solon Neto, Vinícius Martins e Vinícius de Araújo, então estudantes da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. O quarteto começou a frequentar os inúmeros encontros que os alunos articulavam pelo câmpus para discutir temas como gênero, raça e sexualidade, e pensar em outras possibilidades de representação estudantil para além dos diretórios e centros acadêmicos. O quarteto inicialmente se juntou a um coletivo e posteriormente, inspirados pela mentoria do professor da FAAC, e atual vice-diretor, Juarez Xavier e pela efervescência de ideias que estava no ar, criaram a Alma Preta.

Por ocasião do Dia da Consciência Negra, o Jornal da Unesp conversou com um dos cofundadores do Alma Preta, Vinícius Martins, para debater o papel do jornalismo especializado na temática racial e a contribuição que ela pode dar para o desmonte dos elementos de preconceito que seguem ativos e influentes nas dinâmicas sociais do Brasil, muitas vezes de forma velada.

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A agência Alma Preta se tornou referência em jornalismo especializado na temática racial no Brasil. Como ela surgiu?

Vinícius Martins: Primeiro, fico muito feliz de perceber que nos tornamos uma referência. É importante dizer que esse processo envolveu muitas outras pessoas. Uma menção importante é para Iacy Correia, que é nossa social media e foi a primeira pessoa de fora a integrar o grupo. E Elaine Silva, nossa sócia-diretora, foi fundamental para consolidar essa transição de coletivo para agência, e para nos firmarmos como referência em jornalismo especializado.

 AAlma Preta surgiu do encontro entre mim, nosso editor-chefe Pedro Borges, Solon Neto –  que é jornalista também –  e Vinícius Araújo, designer. Todos fomos formados pela Unesp.  Eu, Pedro e Solon entramos na Unesp em 2011 e Vinícius, dois anos depois. Fizemos a graduação nesse contexto em que várias discussões sobre raça, gênero e sexualidade ganhavam força. A sociedade estava em ebulição, especialmente depois de 2013. Em paralelo, o movimento estudantil estava se organizando para além desses órgãos tradicionais como diretórios e centros acadêmicos. Começaram a surgir coletivos feministas, LGBTs… Eu, Pedro, Solon e  Vinicius nos envolvemos com a criação do coletivo negro Kimpa, nome tirado de uma líder espiritual e profetisa que viveu no Congo.

Na época o número de estudantes negros estava começando a aumentar no câmpus, e percebemos que havia um caldo para essas discussões. Estava todo mundo com a cabeça “fervendo”. E, falando por mim, foi muito importante ter esse espaço para eu me entender racialmente, entender o país. Foi nesse momento que o Pedro nos convidou para criar um blog. Conforme fazíamos as primeiras reuniões, tivemos ideias para reportagens, entrevistas e já fomos atrás de viabilizar um site. Nessas discussões entre nós quatro surgiu a agência Alma Preta.

Tivemos uma ajuda muito importante do professor Juarez Xavier, que hoje é vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design [câmpus de Bauru]. Ele foi um mestre, mesmo nesse processo anterior, de criação do Kimpa, uma influência positiva para que a gente pudesse ir se entendendo e entendendo algumas questões sobre racismo e raça no mundo e no Brasil. Ele foi nosso mentor.

Como você enxerga o significado da data de 20 de novembro?

Vinícius Martins: O 20 de novembro se torna importante à medida que hoje estamos com essa discussão consolidada no Brasil. O que quero dizer é que não tem mais volta, as pessoas precisam lidar com a discussão sobre raça e racismo. Alguns avanços dependem disso, não tem como resolver certas desigualdades sem discutir esses temas, da raça e do racismo.

Não tem mais volta, as pessoas precisam lidar com a discussão sobre raça e racismo. Alguns avanços dependem disso, não tem como resolver certas desigualdades sem discutir esses temas.

Claro que se trata de uma discussão que não cabe só nesta data, ela deve estar presente no cotidiano. Mas retomar isso agora, pela perspectiva do jornalismo, é importante. Porque a gente ainda tem um jornalismo que é majoritariamente branco e isso se reflete imediatamente na cobertura da imprensa. Assim como o fato de termos na política e no Congresso um monte de gente branca, na maioria homens, impacta a economia da população brasileira. Quando você coloca uma lupa nesses dados, percebe que a população negra é a mais prejudicada, a população preta e pobre. E a indígena também.

Nós colocamos lupas em casos de racismo cotidiano e racismo recreativo. Como o caso de Beto Freitas [João Alberto Silveira Freitas], que morreu espancado por seguranças em um Carrefour, no Rio Grande do Sul. Essa morte, assim como tantas outras, é só a ponta do iceberg. As investigações apontam para desdobramentos na estrutura social do país.

Existe um processo evidente de reação a essa discussão sobre o racismo, que é a ascensão da extrema direita e do fascismo. A gente costuma fazer uma discussão sobre raça e identidade olhando para negros, indígenas, ou mulheres, LGBTs, e nos esquecemos de que os homens brancos também são um grupo com identidade, um grupo constituído.

O jornalismo da Alma Preta contribui nesse sentido, de manter visíveis essas discussões, sejam envolvendo questões estruturais ou mais específicas.

O que você achou do tema da redação do Enem, deste ano: “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”?

Vinícius Martins: Esse é um dos grandes temas a serem discutidos pela sociedade brasileira. Ao fazer essa discussão sobre raça e racismo no país, nunca podemos nos esquecer da dimensão estrutural e histórica. Existe uma dimensão de reparação que é muito importante. Essas comunidades tradicionais, sejam quilombolas ou indígenas, são um dos principais atores políticos do nosso contexto atual. Merecem reparação histórica sim, em termos de terra, de preservação de cultura, de infraestrutura, de possibilidades.

O governo do [Jair] Bolsonaro foi um dos que menos conferiu titulação de quilombos. Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, não visitou nenhum quilombo e nem recebeu lideranças quilombolas. Para além disso, Camargo conduziu um processo de obscurecimento, de apagar certas figuras históricas que foram muito importantes para a população negra e para a própria história do país. Acredito que a redação acerta muito em sugerir essa reflexão, porque existe uma necessidade de discutir a importância dessas comunidades tradicionais que no dia a dia são atacadas. Não só de forma estrutural pelo governo, mas, em algumas regiões, são ameaçadas por populações locais, e estão sujeitas à grilagem e  à invasão.

Ter estudado na Unesp contribuiu em alguma medida para que você buscasse esta linha de atividade jornalística?

Vinícius Martins: Mesmo que eu não seguisse atuando como jornalista, acredito que a faculdade de jornalismo me formou como cidadão, antes de mais nada. Ela me ajudou a formar  pensamento crítico. Embora a extrema direita acuse a universidade pública de ser um “antro de esquerdistas”, na minha opinião é o contrário. Há uma diversidade de opiniões muito grande. O que a faculdade me proporcionou foi, de fato, a capacidade de desenvolver pensamento crítico, capacidade reflexiva, sobre mim mesmo e a coletividade.

Na época em que estudamos havia uma extensão acadêmica muito forte. Todos aqueles projetos ajudavam a ter uma atuação prática, a falar com pessoas, a se mover pela cidade, a sair do lugar-comum. Eu fui bolsista do Observatório de Educação e Direitos Humanos, que era tocado pelo professor Clodoaldo Meneguello Cardoso (professor de filosofia, do Departamento de Ciências Humanas, do câmpus de Bauru). Foi uma experiência fundamental para que eu olhasse para o mundo por outras perspectivas.

Há uma característica muito legal da Unesp, que é a de receber pessoas de vários lugares, vindas de realidades diferentes. Isso cria uma diversidade interessante de experiências; aprendi muito também com os meus colegas.

No que a cobertura de vocês se diferencia do trabalho que é feito pela mídia tradicional brasileira?

Vinícius Martins: A principal diferença é que a gente propõe coberturas e perspectivas interseccionais, isto é, tentamos nos aproximar de pessoas, populações, grupos que historicamente não são ouvidos de forma devida na imprensa tradicional. A maior parte das nossas fontes são pessoas negras ou indígenas. Obviamente, falamos também com pessoas brancas. Tentamos equilibrar todas essas perspectivas para conseguir ter uma visão mais completa dos problemas com os quais estamos lidando.

Um exemplo foi a época da reforma da previdência. A cobertura dos principais jornais do país mostrou só um lado, só um recorte. Eram ouvidos grupos muito específicos, a fim de colocar aquela pauta. Isso já é uma ofensa ao princípio jornalístico de buscar a diversidade de fontes, e de apresentar fontes que são conflitantes. A Alma Preta surge com esse propósito de visibilizar essas pessoas que não são consultadas pelos veículos tradicionais.

Tem também o fato de que a nossa equipe é composta majoritariamente por jornalistas negros. Na nossa visão isso faz uma diferença, no sentido de que, a partir disso, podemos diversificar as perspectivas e projetar um olhar crítico sobre o modo como as coberturas hegemônicas discutem determinados assuntos.

Desde a universidade, sempre tive inúmeras críticas à imprensa tradicional. Trabalhei nela e reforcei muitas dessas críticas. Tem muita gente boa no chão de fábrica, bons repórteres, editores. Mas sinto que o centro de comando desses jornais, que é composto em sua maioria por homens brancos, acaba adotando uma visão excludente na forma de abordar alguns temas. A mídia tradicional se acostumou a escrever para uma classe média, burguesa, uma elite econômica brasileira, e se esqueceu de olhar para os problemas que afetam a maioria da população brasileira. É por isso que acontece de eles publicarem um artigo como o do Antonio Risério

Você está se referindo ao artigo do antropólogo Antônio Risério que foi publicado este ano pelo jornal Folha de São Paulo e que gerou forte reação, incluindo um abaixo-assinado com mais de 200 assinaturas de jornalistas da Folha em repúdio ao texto, e a direção respondeu com a criação de um embargo sobre todos os textos envolvendo temática racial, que passaram a ser monitorados diretamente pela secretaria de redação. E tudo isso ocorreu apesar de o jornal possuir, desde 2019, uma editoria de diversidade. Que análise você faz do episódio?

Vinícius Martins: Não dá para relativizar processos históricos. E pior, trata-se de um artigo opinativo de um colunista em que o título foi publicado como se fosse uma notícia. Não tem nenhum aviso mais claro de que se tratava de conteúdo de opinião. Fica parecendo que aquilo é uma verdade consolidada sobre o racismo, sendo que é a opinião de um sujeito inexpressivo, e que já tem histórico de tentar relativizar um processo histórico muito complexo como a escravidão.

No artigo, ele faz isso a partir de uma desonestidade intelectual primária, que é colocando a lupa em casos muito específicos. Se existem casos de duas ou três mulheres que conseguiram pagar suas cartas de alforria significa então que todos os demais escravizados no país eram preguiçosos? Os argumentos dele abrem margem para um tipo de questionamento que é difícil de engolir. Tem a questão da liberdade de expressão também. Quais são os limites? E isso vai para além da Folha.

Não dá pra ter margem para relativizar processos históricos que são consolidados, porque senão a gente começa a discutir ficção. E, por exemplo, o Risério conta histórias que acredito serem verdadeiras, mas se forem comparadas numericamente com o que foi a escravidão, com o número de gente que morreu, que foi trazida de forma ilegal de seu país natal, das pessoas que foram mortas aqui… [essas histórias] levam a um relativismo que nos impede de resolver os problemas materiais da nossa sociedade. O jornal não poderia permitir isso. Ou, pelo menos, poderia ter sido colocado no próprio artigo um aviso dizendo que não se tratava da opinião da Folha. Se a instituição não se posiciona, usa a desculpa de que o jornalismo é imparcial. O que já é uma contradição na base, porque todo mundo que estuda jornalismo sabe que o código de ética é bem claro em apontar que os jornalistas têm que atuar em prol dos direitos humanos.

Tanto a instituição quanto os profissionais não podem achar que essa isenção deve ser seguida religiosamente. Até porque, na real, isso é uma maquiagem. Fala-se em ouvir os dois lados, mas sempre se acaba ouvindo um lado, bem determinado, que é um lado mais liberal. Fatos como esse mostram que há uma necessidade do jornalismo de se posicionar a favor de certos temas, para que uma sociedade como a nossa seja capaz de avançar.

Para mim isso não é opinar, e sim ciência pura. Ser antirracista é ciência pura. Os dados históricos são claros. Tem documentos, tem pesquisas extensas, os dados são categóricos em dizer que isso é um problema, que isso foi construído. Os grandes jornais frequentemente têm flertado com algo muito perigoso e que ficou muito evidente agora com todo esse contexto de fake news.

Veículos como Alma Preta  –  porque a gente não está sozinho, são veículos que discutem raça, gênero, os indígenas também têm se organizado nesse sentido – têm como papel  melhorar a qualidade do jornalismo que é praticado no país. Senão, a gente vai ver muito mais episódios como os dos últimos quatro anos, da democracia sendo constantemente questionada, dos poderes autoritários crescendo.

Desde 2019, pretos e pardos já são maioria nas universidades. Como as cotas auxiliam nesse processo de mitigar o racismo?

Vinícius Martins: É sempre importante dizer que as cotas fazem parte de uma política reparatória e que é temporária. Um indicador importante de que evoluímos seria poder abrir mão da política de cotas, mas isso só vai ser possível se tivermos indicadores sólidos que mostrem que a população negra no país melhorou. Fico muito feliz de saber e de ver que, de fato, existe já uma equidade entre negros e brancos dentro do ensino superior numericamente falando. Isso impacta as discussões, a ciência que é produzida.

No caso das universidades públicas, tem a ver com os problemas que essa universidade vai resolver, para onde ela vai olhar, pesquisar e como vai contribuir. E é essa a importância fundamental da universidade pública que é produzir ciência de qualidade que possa ser usada pelo interesse público.

As cotas têm uma contribuição muito grande nesse sentido, o que por si só já é algo que contribui para que tenhamos outras medidas para resolver ou atenuar o racismo no Brasil. Isso passa por haver uma base de políticas públicas que beneficiem e reparem historicamente os processos que as populações negra e indígena viveram no país. Não faz sentido ter uma política de cotas, e ter um teto de gastos, por exemplo, como o que a gente tem hoje, limitando os investimentos na saúde e educação, que são áreas básicas. Não adianta nada termos cotas e as crianças estudarem em escolas com péssima infraestrutura, ou com professores mal remunerados.

A existência de medidas para avançar em relação ao racismo estrutural no país significa ter renda para financiar saúde, educação, moradia… O básico de que uma pessoa necessita para viver com dignidade. Além disso, haver cotas para vagas em empresas, para carreiras públicas, para que a sociedade possa entender que é importante existir a representação física do corpo negro nesses espaços. A política de cotas cria a cultura e referenciais positivos para uma população que não teve nem o direito de experimentar certos espaços. Sozinha, a política de cotas não vai resolver. Depende de um conjunto de políticas públicas estruturais para que possa haver bons resultados no futuro.

As cotas podem ser uma boa influência na formulação dessas políticas, no direcionamento dessas políticas, nos temas que devem ser abordados, porque as pessoas que estão entrando na universidade estão alargando o espectro da pesquisa brasileira.

Como você avalia o modo como o executivo federal lidou com a temática racial desde 2019, e quais são os desafios para a próxima gestão?

Vinícius Martins: Os desafios são imensos para essa próxima gestão. O primeiro é reverter os retrocessos desse último governo, o que inclui resolver a fome no país que assola majoritariamente a população negra. O que acho positivo em relação ao futuro governo Lula é que ele chamou muita gente diferente para compor a equipe de transição. Aparentemente, muita gente vai ter espaço. Mas elas precisam dispor de recursos e de autonomia para ter possibilidade de construir políticas sólidas e implementá-las. Não adianta nada haver um ministério da igualdade racial ou das mulheres e não fornecer recurso.

Vejo como positivo que o futuro governo Lula está começando uma conversa com os movimentos negros e de mulheres. Mas é importante que a gente esteja muito atento para como esse governo vai conseguir viabilizar de fato aquilo que faz o mundo capitalista funcionar, que é dinheiro. São precisos recursos para implementar essas políticas públicas e isso vai ser um desafio. O desafio principal é esse: garantir que os grupos dos movimentos sociais sejam representados e tenham recursos. O fato do Lula encampar para si a pauta da fome já é muito importante. Acredito que se ele conseguir avançar nisso já seria louvável, dada a dificuldade dos nossos tempos.

Imagem acima: Vinícius de Araújo/Alma Preta