Chegada de datacenter a aldeia xavante no MT vai ajudar a garantir preservação da cultura e soberania de dados

Parceria com a Unesp traz nova infraestrutura computacional e sistema fotovoltaico que melhora conectividade de moradores da aldeia Wede’rã. Objetivo é assegurar controle sobre acervo de produções audiovisuais, estratégia que o grupo adota desde a década de 80 para registrar e transmitir suas tradições.

Uma iniciativa de pesquisadores da Unesp está levando infraestrutura computacional a uma aldeia do povo xavante, no Mato Grosso, com o objetivo de auxiliá-los a armazenar e gerir o material audiovisual que produzem para registrar e preservar suas tradições e sua cultura. À frente do projeto está o antropólogo Francisco Caminati, que é professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, câmpus de Presidente Prudente.  No mês de setembro, Caminati esteve na aldeia Wede’rã, no estado do Mato Grosso, com uma equipe de professores e alunos da Unesp e com mais colaboradores para a instalação de um datacenter e para ministrar uma oficina para a comunidade indígena, apresentando os recursos e usos do novo equipamento.

O projeto foi viabilizado por  financiamento da Fapesp no âmbito de uma chamada voltada para o desenvolvimento da internet no Brasil. O grupo liderado por Caminati levou à aldeia um datacenter comunitário com servidor de dados, switch, modem e peças de rede. Também foi instalado um sistema fotovoltaico e baterias que, além de fornecer energia para o datacenter, vai alimentar o sistema de internet, reduzindo a intermitência do sinal.

A mediação das oficinas e do processo de aprendizagem e apropriação dos equipamentos foi realizada por alunos e professores da Unesp integrantes do Laboratório de Antropologia do Centro de Museologia, Antropologia e Arqueologia, que é coordenado por Caminati, e contou com a ajuda de parceiros da rede Mocambos, uma iniciativa que surgiu a partir da Casa de Cultura Tainã, em Campinas, e há mais de uma década vem apoiando a conexão de territórios indígenas e quilombolas por meio da tecnologia.

O desafio de preservar as tradições após o contato

A preservação da cultura xavante é atualmente motivo de preocupação na aldeia Wede’rã, uma comunidade de cerca de 117 moradores, sendo 54 crianças, localizada na Terra Indígena Pimentel Barbosa, uma das nove demarcações xavantes no Mato Grosso.

Os xavantes constituem um conjunto de grupos indígenas com população superior a 20 mil indivíduos, divididos em doze territórios, localizados no estado do Mato Grosso. Sua história de aproximação e convivência com a sociedade brasileira remonta à década de 1940, no contexto da política conhecida como “Marcha para o Oeste”, empreendida durante a ditadura do Estado Novo do presidente Getúlio Vargas, que teve como objetivo o povoamento e a integração das regiões Centro-Oeste e Norte com o restante do país.

Localização da Terra Indígena Pimentel Barbosa e de outras TI xavante.

Como consequência dessa política, durante os anos 1940 e 1960 diferentes grupos xavantes ampliaram seu contato com instituições do Estado brasileiro, principalmente com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), estrutura substituída hoje em dia pela Funai (Fundação Nacional do Índio). Neste processo de aproximação entre indígenas e o homem branco teve papel fundamental a figura do cacique Apoena, líder xavante que mediou o contato. Com o passar dos anos, entretanto, o avanço de colonos e da produção agrícola sobre áreas ocupadas pelos xavantes há mais de cem anos despertou conflitos entre as partes. Na tentativa de minimizar os atritos, iniciou-se nos anos 1970 um longo processo de demarcação de terras que resultou na delimitação de nove territórios indígenas descontinuados, localizados ao leste do estado do Mato Grosso.

A aproximação, embora tida como pacífica pelo homem branco, não foi sem custo para os xavantes. Além de atingidos por doenças trazidas pelo novos habitantes, pela fome e por mortes causadas pelos conflitos com os colonos que chegaram à região, os indígenas observaram que as novas relações estavam contribuindo para a descaracterização do seu modo de vida tradicional.

É essa descaraterização do modo de vida tradicional, regido por uma complexa estrutura de rituais que assinala as diferentes etapas da existência de um indivíduo, que preocupa as lideranças da aldeia Wede’rã. Porém, desde os anos 1980, os indígenas têm recorrido à linguagem audiovisual para preservar seus saberes tradicionais, rituais e estilo de vida.

Produção audiovisual própria

Essa aproximação com o audiovisual começou nos anos 1980, quando a aldeia recebeu a visita da antropóloga norte-americana Laura Graham. Graham é autora do livro Performance de Sonhos: Discursos de Imortalidade Xavante, um importante documento etnográfico que registrou uma série de performances ritualísticas da comunidade. Antes de voltar para os Estados Unidos, os indígenas pediram à pesquisadora que deixasse seu gravador, sua máquina fotográfica e sua filmadora na aldeia, para que pudessem produzir seus próprios registros.

A primeira colaboração de Caminati com a aldeia Wede’rã ocorreu em 2010, na organização de uma oficina de produção e edição de vídeos, que teve como produto final uma série de filmes que registraram um ritual de furação de orelhas. “Esse filme retrata cada uma das etapas do ritual e ele não foi legendado nem dublado. Ele foi um primeiro experimento de uma obra produzida para a audiência da própria comunidade”, explica Caminati. A crescente produção que a aldeia vem acumulando desde então tem ajudado a expandir a memória coletiva da comunidade e transmitir a cultura e o conhecimento ancestral às novas gerações, e já conquistou reconhecimento além das fronteiras da Terra Indígena. É o caso do filme “Waté’wa: os jovens Xavante que batem na água”, dirigido por Caimi Waiassé Xavante e Leandro Parinai’a, que foi premiado no Festival de Cinema de Alter do Chão, em 2019.

Contudo, desde que a comunidade de Wede’rã começou a se apropriar dos recursos de vídeo, da internet e demais ferramentas digitais, boa parte dos registros têm sido publicados em plataformas corporativas e redes sociais, como YouTube ou Instagram. Essa prática gera desconforto junto aos líderes em relação a alguns aspectos, como a transferência da posse desse material para empresas multinacionais, a permissão sobre seu uso de forma irrestrita, a integridade do conteúdo e a disponibilidade do acesso a esses registros no futuro, quando a empresa talvez nem exista mais.

Chegada da equipe na aldeia.

“Atualmente, quem controla e usa muito bem esses recursos são os grandes grupos corporativos”, diz o cacique Cipasse, líder da aldeia Wede’rã. “Nós temos que quebrar esse sistema e usar bem essas ferramentas para colocar as nossas demandas. Essas ferramentas são poderosas. Assim como elas podem te levantar, elas podem te colocar no chão.  Agora, quem vai se apropriar, manusear e conhecer esses equipamentos somos nós. É nosso direito”, diz ele. Cipasse é  neto do lendário cacique Apoena, que nos anos 1970 enviou oito meninos da tribo xavante para viver com os brancos, com o objetivo de que entendessem sua língua e cultura e, quando voltassem, pudessem se tornar interlocutores entre os dois mundos. A iniciativa ficou conhecida como “Estratégia Xavante”. Cipassé foi uma dessas crianças.

Oficinas atraíram mulheres e crianças

Caminati conta que as oficinas  reuniram um grupo bastante interessado e engajado nas atividades. Parte dos oficineiros era formada por moradores mais jovens, e que em geral dominam a tecnologia com mais facilidade, mas houve também a presença de muitas mulheres, que levaram as crianças. O interesse feminino chama a atenção porque este é um grupo que em sua maioria não faz uso regular de celulares ou computadores na aldeia. Além delas, participaram homens adultos, os quais já são usuários ativos de internet e mídias digitais, alguns deles com habilidades de alto nível em edição audiovisual e de imagens.

A mediação e tradução foi realizada por uma professora e dois professores da escola que funciona na aldeia Wede’rã, e por um estudante indígena da comunidade que acabou de iniciar sua graduação na UFSCar, no curso de Linguística. Todo o processo foi acompanhado e discutido de forma conjunta na aldeia. Ao fim de cada dia de atividade, por exemplo, os participantes se juntavam ao Warã, nome do encontro periódico que reúne os conselheiros da aldeia. Liderados pelo cacique Cissapé e pelo vice-cacique Leandro Parinai’á, participantes, mediadores e as lideranças da aldeia avaliavam conjuntamente as oficinas e a presença dos parceiros de fora, que eram ouvidos sobre o andamento das atividades. A reunião também servia para elaborar o  planejamento do dia seguinte.

Oficinas também atraíram interesse de mulheres e crianças

Uma vez estabelecida a infraestrutura, existe a intenção de ampliar esse acervo e incluir, por exemplo, artigos científicos, laudos antropológicos ou trabalhos de campo produzidos na e sobre a aldeia Wede’rã. Em novembro, a equipe retorna ao Mato Grosso para a segunda parte deste processo, quando levarão um software desenvolvido para gerenciar a “biblioteca xavante”. “O software foi projetado para armazenar, organizar, disponibilizar acesso para este acervo que eles têm colecionado ao longo dos últimos 30 anos, pelo menos”, explica Caminati.

Soberania indígena de dados

A preocupação com os usos, o acesso e a integridade dos conteúdos publicados sobre os xavantes, explica Caminati, se enquadra em uma questão que vem sendo chamada pelos antropólogos de soberania indígena sobre dados. Em um momento em que a sociedade questiona a responsabilidade das big techs sobre a segurança dos dados de usuários e a produção digital publicada nas plataformas, povos tradicionais em diversas partes do mundo demandam maior soberania sobre os conteúdos publicados a respeito de si, alegando, entre outros pontos, estarem desfavorecidos na relação de poder estabelecida com essas grandes corporações.

“Trata-se de uma preocupação com o modo como a produção cultural dos povos indígenas passa para o digital e para a internet. Esses povos não têm a sua própria estrutura computacional e precisam usar a estrutura de terceiros, e perdem soberania sobre esse material”, diz Caminati. Ele diz que este debate já é muito presente entre comunidades tradicionais do Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Para alguns teóricos, o controle sobre os dados de comunidades tradicionais ocorre desde o período pré-colonial, mas esta recente dependência das plataformas multinacionais representaria uma forma renovada de colonialismo. “Por mais que hoje os indígenas tenham os seus territórios demarcados, a informação gerada a partir destes territórios e da sua cultura ainda é apropriada de uma maneira muito fácil.”

Instalação do equipamento do datacenter na aldeia

Nessa caminhada em direção a uma maior autonomia tecnológica, o projeto também optou por desenvolver toda a interface para gestão da informação a partir do software livre, um conceito que permite ao usuário liberdade para acessar e modificar o código fonte conforme a necessidade do projeto. Para desenvolver os softwares, o projeto contou com o apoio técnico da Rede Mocambos, uma rede de comunicação que envolve territórios indígenas e quilombolas do Brasil e que criou um sistema de gestão de acervos chamado Baobáxia. O sistema criado pela Rede tem como particularidade ter sido projetado para operar em comunidades remotas com nenhuma ou pouca Internet, além de não demandar alta performance do hardware, o que dispensa a necessidade de atualização recorrente da infraestrutura computacional.

“Na Rede, a gente sempre discutiu a apropriação tecnológica e o enfrentamento ao padrão hegemônico de tecnologias proprietárias, em que só um detém o conhecimento e não compartilha com ninguém”, questiona Mestre TC, fundador e articuladorda Rede Mocambos, que usa o software livre desde os anos 2000. Além do apoio técnico, a Rede Mocambos, por meio do software Baobáxia, também irá abrigar a futura “biblioteca” xavante, espelhando o seu conteúdo em seus servidores e, dessa forma, oferecendo uma opção de backup. Outra cópia ficará abrigada no Laboratório de Antropologia do Centro de Museologia, Antropologia e Arqueologia da Unesp no câmpus de Presidente Prudente. Segundo o professor, a tripla redundância e a sincronização periódica oferecerão segurança ao conteúdo xavante.

Com a chegada da energia elétrica e a disponibilidade da internet via satélite, os indígenas da aldeia Wede’rã, estão cada vez mais conectados. Assim como ocorre no restante da sociedade, os jovens se destacam como o grupo mais engajado nas novas tecnologias. Para a jornalista Mara Sinhosewawe Xavante, uma jovem liderança na comunidade, a chegada das novas tecnologias tem o potencial de ser algo revolucionário para a aldeia Wede’rã. “Antes eram sempre os outros que contavam a nossa história. Agora, acho que estamos em uma posição de sermos protagonistas da nossa própria história e a apropriação dessa tecnologia deve fortalecer as nossas causas”, avalia.

Painéis solares colaboram com a conectividade da aldeia.

Embora tenha uma visão otimista das novas tecnologias, Mara chama a atenção para o impacto que elas podem ter na comunidade e das responsabilidades das lideranças de orientar os mais jovens a não inverterem seus valores. “As mídias vendem uma vida perfeita e em torno do consumismo e do capitalismo e, se não tivermos cuidado, os nossos jovens vão pensar que a riqueza está lá fora e não aqui na comunidade. Devemos estar cientes de que vivemos um processo de evolução, mas não precisamos perder a nossa identidade”, aponta.

Imagem acima: Francisco Caminati durante visita a aldeia. Crédito das imagens: Acervo pessoal.