Entre os dias 19 e 22 de setembro, o Instituto Confúcio na Unesp, o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, o programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp de Marília vão coordenar o V Encontro da Rede Brasileira de Estudos da China (RB China). É a primeira vez que os grupos da Unesp ficam responsáveis por organizar um encontro da RB China, que está ativa desde 2017 e congrega mais de 350 participantes, entre professores, pesquisadores e estudantes da área de relações internacionais, além de jornalistas, empresários, artistas e outros profissionais.
Os Institutos Confúcio são um órgão do governo chinês que atua em parceria com universidades e tem como objetivo promover o ensino da língua e cultura chinesas e aprofundar as relações culturais com outros países. O Instituto Confúcio da Unesp é um dos fundadores da Rede Brasileira de Estudos da China, e é dirigido desde 2008 por Luis Antônio Paulino, docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, do câmpus de Marília.
A proximidade do docente com a área remonta ao começo dos anos 2000, quando atuou primeiro no Ministério da Fazenda e depois, na secretaria de coordenação política da Presidência da república. Era o início de um momento de maior proximidade nas relações com o país do oriente, que hoje tornou-se nosso maior parceiro comercial. Ao longo desse período, ele vem refinando suas observações sobre as diferenças e semelhanças entre as duas nações. “Tendemos a ver a China como uma espécie de antípoda [do Brasil], como se não tivéssemos nada em comum, mas não é verdade”, diz. “O Brasil enquanto projeto civilizacional não tem nada a ver com Estados Unidos ou Europa. Somos uma coisa muito particular que tem origem exatamente neste encontro entre a Europa, a África, a Ásia e nossa população indígena”, analisa.
Em entrevista ao Jornal da Unesp, o docente analisa os desafios que a China tem enfrentado na arena internacional e o quadro das relações entre os dois países.
Como a China enxerga o quadro atual das relações internacionais?
Luis Antônio: Os chineses veem o quadro com muita preocupação. Nos últimos cinco anos, o presidente Xi Jinping vem insistindo que o mundo passa por mudanças que nos colocam frente a novos desafios e que precisam ser levados a sério pelo conjunto da humanidade. Se não forem enfrentados adequadamente, o resultado pode ser a reversão de muitos avanços que ocorreram nas últimas décadas em várias áreas. Desde segurança alimentar, combate à fome, saúde pública, meio ambiente ou desenvolvimento sustentável. É preciso uma ação coletiva e coordenada de todos os países para enfrentar esses desafios como mudanças climáticas, ocorrência de pandemias, o retorno dessas práticas protecionistas no comércio internacional…
Há tempos o presidente vem insistindo no conceito de comunidade com um futuro compartilhado pela humanidade. Recentemente, ele propôs uma iniciativa de desenvolvimento global com o objetivo de promover a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a fim de, de alguma maneira, responder a esses desafios que a humanidade enfrenta na etapa atual. Ele coloca a questão do desenvolvimento como a chave para alcançar os demais objetivos.
Colocar o desenvolvimento como pré-condição para atingir outros objetivos me parece bem interessante, mas o mundo está caminhando na direção oposta à que propõem os chineses. Ao invés de construir essa comunidade com um futuro compartilhado pela humanidade, o que se vê são os Estados Unidos tentando ressuscitar aquelas velhas rivalidades da Guerra Fria sob uma nova roupagem, para tentar isolar quem não reza pela sua cartilha. Nesse sentido, o presidente Biden tem promovido uma narrativa de que o maior desafio do nosso tempo é a competição com autocracias, como a China e a Rússia. Segundo ele, esses países buscam expandir sua influência no mundo e justificar políticas e práticas ‑ as quais o presidente considera repressivas ‑ como uma forma mais eficiente de enfrentar os desafios de hoje.
A ironia disso tudo é que, desde os anos 1980, os Estados Unidos estiveram em pelo menos 15 guerras no exterior por escolha deles: Afeganistão, Iraque, Síria etc. Já a China não participou de nenhuma. A Rússia, de uma. Na minha maneira de ver, ocorre uma manipulação de fatos: tenta-se vender para os ocidentais o medo exagerado da China e da Rússia. A mesma coisa que aconteceu durante o governo de George W Bush, vendendo a ameaça do fundamentalismo islâmico. Mas sem mencionar que foram a CIA, a Arábia Saudita e outros países que financiaram os jihadistas para lutar nessas guerras. No centro de tudo está a tentativa dos Estados Unidos de permanecer a potência hegemônica do mundo, aumentar suas alianças militares pra conter China e a Rússia.
A economia da China vem se recuperando lentamente nesse cenário pós-covid. Em 2021, ela teve um crescimento expressivo, mas desacelerou em 2022. Quais as causas desse cenário e como as autoridades chinesas estão enfrentando esse desafio?
Luis Antônio : O que está impactando negativamente a economia chinesa, em primeiro lugar, é o próprio baixo crescimento econômico mundial. A China está tentando se reorientar no sentido de um modelo de crescimento de dupla circulação, onde o mercado interno precisa ter um peso cada vez maior no PIB. Justamente para não depender tanto de exportação.
Mas o fato é que, hoje, a China é o maior exportador mundial de manufaturas e isso corresponde a uma parcela importante do seu PIB. À medida que a economia mundial entra em processo de baixo crescimento isso naturalmente a afeta. O segundo ponto, está nos novos focos de covid. Sobretudo nesses grandes centros de produção, como Xangai. A China adota essa política de covid zero, colocando as pessoas em primeiro lugar. Não adianta abrir tudo se isso provocar milhares de mortes, como ocorreu nos Estados Unidos e no Brasil. Então, mesmo sacrificando um pouco o crescimento, eles têm sido rigorosos nessa questão.
Há também um terceiro fator que é o setor imobiliário. Assim como em qualquer lugar do mundo, ele representa uma parcela importante da formação bruta de capital fixo na parte de investimento na economia chinesa. Muita gente estava comprando vários imóveis para especular, e isso jogava os preços dos imóveis nas alturas. Então, o governo colocou um freio para desinflar a bolha, e isso se tornou um componente de menor crescimento.
Diferentemente do passado, onde a resposta foi incentivar o investimento público em infraestrutura, hoje, eles têm recorrido a instrumentos mais clássicos de política macroeconômica através do Banco Central Chinês, como a questão dos juros e da oferta monetária.
Com a Guerra na Ucrânia, muitos especialistas têm levantado a possibilidade de que poderia haver um episódio parecido envolvendo China e Taiwan. Como o senhor vê essa questão?
Luis Antônio : O único ponto em comum entre o que ocorre hoje na Ucrânia e o aumento dessas tensões em Taiwan, na minha forma de ver, é que a mão dos Estados Unidos está por trás dos dois episódios.
No caso da Ucrânia, a história real do conflito começa lá em 1991, no fim da Guerra Fria. Houve uma promessa por parte sobretudo dos Estados Unidos, mas pelo Ocidente,de maneira geral, ao então presidente Gorbachev, de que a OTAN não se expandiria para o leste. Mas em 1999, a OTAN incorporou três países da Europa central, e em 2004, mais sete. Em 2008, se comprometeu a incluir a Ucrânia e a Geórgia e, este ano, convidou quatro países asiáticos, Japão, Coréia, Nova Zelândia e Austrália. Mas a mídia ocidental não menciona o papel dos Estados Unidos nisso tudo, nem na derrubada do presidente pró-Rússia da Ucrânia; não fala nas vastas remessas de armamento que os enviaram para a Ucrânia durante os governos Trump e Biden, nem a recusa a negociar com Putin o alargamento da OTAN até a Ucrânia.
No caso de Taiwan, a história se repete. Os Estados Unidos vem dando sinais inequívocos de apoio à independência de Taiwan. O que está em jogo nisso, tanto no caso da Ucrânia quanto de Taiwan, é que no centro de tudo isso está a tentativa dos Estados Unidos de permanecer como potência hegemônica no mundo.
A China não tem a menor intenção de começar uma guerra, mas tampouco vai abrir mão de seu território. Então se os Estados Unidos continuarem a fazer provocações, a ponto de Taiwan declarar formalmente a independência, nesse caso uma guerra seria inevitável.
A China é o destino de 27,6% das exportações brasileiras. Mas exportamos basicamente commodities, petróleo e minérios. Há possibilidade de que as relações econômicas se ampliem e se desenvolvam no futuro próximo? Quais as expectativas do governo chinês, em relação ao governo brasileiro, para aumentar as trocas entre os países?
Luis Antônio: Há um espaço grande para expansão, porque nossa pauta é bem limitada. Por outro lado, é preciso considerar que o comércio internacional se dá com base nas vantagens comparativas. Vendemos commodities para a China, porque produzimos com excelência. A China é um grande importador não só de recursos naturais, mas também de produtos manufaturados de alta tecnologia. Tanto que, nessa guerra comercial com os Estados Unidos, uma das questões centrais está em deixar de exportar chips de alta tecnologia para os chineses.
Além de ser nosso maior mercado de exportações, a China é também o país de onde mais importamos. Por isso, é nosso principal parceiro comercial desde 2009. E nesse intercâmbio, o saldo é sempre favorável ao Brasil. O saldo mais recente foi de 40 bilhões de dólares a favor do Brasil, o que foi essencial pra equilibrar nossas contas externas.
Há uma complementaridade entre as duas economias: a China demanda carne, soja, matéria-prima, produtos que o Brasil produz com competitividade. E importamos bens industriais, equipamentos de telecomunicação, adubos, fertilizantes e outros insumos. Agora, é uma situação curiosa. Porque os dois lados estão felizes, mas não estão totalmente satisfeitos. Nós estamos felizes por exportarmos muito para a China, por obtermos um grande saldo comercial. Mas queremos vender produtos industrializados. E os chineses, mesmo felizes por serem o principal exportador para o Brasil, gostariam de vender mais. Com o intuito de reduzir esse déficit e alcançar uma presença maior na nossa economia, como no setor bancário, por exemplo. É uma situação em que os dois lados estão felizes, mas não inteiramente satisfeitos.
No nosso caso, facilita buscar uma diversificação a partir daquilo que a gente já exporta. Por exemplo, em julho passado, a China abriu o mercado para farelo de soja brasileiro, que é um produto industrializado, polpa cítrica. Isso é um avanço, pois, por muito tempo, a China não aceitou o farelo de soja brasileiro. Eles queriam importar o grão e processar lá, com geração de emprego no país.
O papel da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), e do próprio Itamaraty, é fundamental para abrir portas, sobretudo para pequenas e médias empresas. Agora, através dessa feira de importação que ocorre em Xangai, o governo brasileiro, através da Apex, tem levado até lá empresas brasileiras menores com interesse de acessar o mercado chinês. Sobretudo nessa área de alimentação, que é onde vejo que há maior espaço para a gente entrar, à medida que a população chinesa vai enriquecendo e o consumo aumenta. No Instituto Confúcio também temos feito seminários sobre o ambiente de negócios na China, sobretudo para pequenas empresas.
Espaço há. Agora existe o problema da distância física, cultural, linguística. Para as empresas grandes é fácil transpor essas barreiras. No caso das pequenas, não é tão fácil. E se não houver uma posição mais ativa do governo brasileiro, é evidente que nunca vamos conseguir levar essas empresas para lá.
A Argentina apresentou um pedido para integrar formalmente o bloco dos BRICS. Como a China enxerga a América do Sul, quais seus objetivos na região?
Luis Antônio: Os chineses são muito organizados; se planejam e fazem o que foi planejado. As relações com a América Latina têm três objetivos: fortalecer as relações políticas; aumentar as consultas e apoio mútuo em questões internacionais de interesse comum e expandir a cooperação comercial e estabelecer relações mais amplas e de longo prazo em outras áreas, como cultura, educação, ciência, tecnologia, etc. Esse foi o discurso do ex-presidente Jiang Zemin proferido na Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), em 2001 e desde então esse é o script que a China vem seguindo.
A China tem a vantagem de não possuir um passado colonialista e também de ser um país em desenvolvimento, tal como os países aqui da região, e com uma experiência bem sucedida em relação à superação da pobreza. Naturalmente isso faz dela um parceiro mais confiável do que as antigas potências coloniais, que têm um passado complicado de apoio a golpes militares e de atitudes puramente de exploração em relação à região.
Desde o início da guerra entre Ucrânia e Rússia, a China tem se aproximado mais da Rússia, econômica e politicamente. Como isso afeta o BRICS e a relação com o Brasil?
Luis Antônio: O fato de tanto a Rússia quanto a China serem alvos diretos dos Estados Unidos e coabitarem a Eurásia naturalmente leva a uma maior cooperação. Isso já vinha ocorrendo antes da guerra. Também é um reflexo dessa política agressiva dos Estados Unidos em relação a ambos: natural que diante de um inimigo comum, os países juntem forças.
Apesar dessa conversa sobre isolamento da Rússia, nenhum dos países do BRICS a condenou publicamente pela invasão da Ucrânia. Essa aproximação maior entre Rússia e China não se dá em prejuízo dos BRICS, mas sim gera fortalecimento. Tanto para a Rússia quanto para a China, o bloco dos BRICS é fundamental: o PIB dos países do BRICS é maior do que dos países do G7 e eles abrigam mais de 40% da população do mundo, contra apenas 6% do G7.
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