Quando o pintor Jean Baptiste-Debret concebeu a primeira bandeira do Império do Brasil, há exatos 200 anos, optou por envolver o escudo imperial no centro do desenho com um ramo de café e outro de tabaco, ressaltando a importância das duas plantas para a economia do país recém-nascido. Se fosse hoje, talvez o francês decidisse substituir ambas pela soja. O Brasil é atualmente o maior produtor mundial do grão: foram mais de 135,4 milhões de toneladas em 2021. Deste total, 86,109 milhões foram exportados, injetando estimados US$ 38,6 bilhões na economia, o equivalente a 13,8% de todas as rendas obtidas via exportação. Para manter esta escala de produção, as lavouras de soja cobrem nada menos do que 38,5 milhões de hectares do território brasileiro.
Se conseguir elevar a produtividade dessas áreas já ativas, o Brasil poderá dar um passo importante na preservação de seu valiosíssimo patrimônio ambiental, ao mesmo tempo que contribuirá para alimentar a crescente população mundial, e poderá usufruir de mais divisas. É este o horizonte de uma pesquisa conduzida pela agrônoma e geneticista Sandra Helena Unêda-Trevisoli, líder do Laboratório de Biotecnologia e Melhoramento de Plantas, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, campus de Jaboticabal.
Após dez anos de trabalho, a pesquisa coordenada por Trevisoli conseguiu desenvolver um novo cultivar de soja específico para o plantio em fazendas do estado de São Paulo. O genótipo deste novo cultivar apresenta uma adaptação mais adequada às condições ambientais do território paulista, e é capaz inclusive de apresentar uma performance superior quando usado em alternância com as safras de cana-de-açúcar. Tais características podem permitir que o produtor rural obtenha uma produtividade maior em sua lavoura.
O fator ambiental é especialmente importante na cultura da soja porque o grão apresenta extrema sensibilidade ao fotoperíodo, ou seja, seu crescimento e seu desenvolvimento apresentam bastante variação em função da quantidade de horas de radiação solar que incidem sobre ela. Por conta dessa sensibilidade, seu cultivo ocorre preferencialmente durante o verão, quando os dias são mais longos e, portanto, o tempo de exposição ao sol é maior. Além do fotoperíodo, fatores como a temperatura, o regime de chuvas e os níveis de umidade podem influenciar a performance da planta, e devem ser considerados no desenvolvimento de um cultivar.
Em um país de dimensões continentais e diferentes latitudes como o Brasil, a duração do dia e as condições climáticas variam bastante regionalmente. “A tendência é o cultivar apresentar uma performance melhor na região em que foi desenvolvido, e onde apresenta a maior adaptação ambiental. Um que apresente boa produtividade no Mato Grosso não necessariamente vai ter o mesmo desempenho em São Paulo”, diz Sandra Trevisoli. “É preciso encontrar a combinação especifica entre o cultivar e o local.”
Último cultivar para SP surgiu há 40 anos
Atualmente os cultivares usados pelos produtores paulistas foram desenvolvidos em estados que são os principais produtores de soja do Brasil, como Mato Grosso e Goiás. Sua aplicação acaba sendo estendida a São Paulo, e o resultado é uma queda na performance. O último cultivar desenvolvido especificamente para São Paulo para áreas de rotação de cana, o IAC Foscarin-31, foi lançado nos anos 1980.
Nas interações que costuma estabelecer com os produtores rurais, Trevisoli notou que existia uma demanda por um cultivar específico para o território paulista. “O custo de produção é sempre muito alto no campo. Esse é o ponto positivo do melhoramento genético: conseguir entregar uma quantidade maior de alimento trocando apenas o cultivar utilizado.”. O novo cultivar foi desenvolvido considerando as particularidades ambientais da região de Jaboticabal, o que lhe confere maior potencial de performance para o território paulista. Se optar por essa variedade, o produtor pode, com os mesmos custos, elevar sua produtividade e aumentar o lucro.
Outro elemento particular da soja no estado relaciona-se ao processo de renovação das áreas de cana-de-açúcar, cultura que tem em São Paulo o maior produtor do país. Depois que acontece a colheita da cana, os produtores plantam soja no terreno, pois a planta, como a maior parte das leguminosas, tem a capacidade de realizar a fixação biológica do nitrogênio por meio da associação com determinadas bactérias. Esse é um processo extremamente benéfico e recupera a fertilidade do solo. Mas, para além destes benefícios indiretos à cultura da cana, os produtores paulistas estão cada vez mais interessados na soja pelo alto valor comercial que o grão vem alcançando no mercado de commodities.
Tendo como horizonte a realidade do produtor paulista, que ocorre durante um período específico entre os ciclos da cana-de açúcar, o novo cultivar priorizou o chamado ciclo precoce da soja, para que seja atendido o cronograma da cultura de cana-de-açúcar, sem prejuízos dos benefícios ao solo e da lucratividade da soja. Essa característica do cultivar permite seu plantio na área de rotação com a cana-de-açúcar sem a perda da qualidade dos grãos.
Produto já está em testes visando comercialização
Atualmente, o grupo tem se dedicado à execução de uma série de testes dentro e fora do estado de São Paulo, no intuito de comparar a performance do cultivar desenvolvido no laboratório com outros já à venda no mercado. Esses testes são importantes tanto para a validação junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a posterior comercialização do produto, quanto para analisar a performance do cultivar em comparação com futuros concorrentes. Os resultados mostraram uma média de produtividade em torno de 15% superior do cultivar desenvolvido na Unesp, em relação aos cultivares comerciais que foram comparados nos experimentos conduzidos.
O novo cultivar é produto de décadas de pesquisas envolvendo o melhoramento genético da soja realizadas no câmpus de Jaboticabal. O programa de melhoramento de soja existe há 25 anos, criado originalmente pelo professor Antonio Orlando Di Mauro. Trevisoli foi pós-doutoranda sob supervisão de Di Mauro, e assumiu a frente do programa em 2012, dando continuidade aos projetos de melhoramento genético, que atualmente compreendem mais de mil linhagens de soja em desenvolvimento.
Além do cultivar precoce adaptado ao território paulista, o grupo também desenvolve projetos de melhoramento genético que visam resistência a doenças e o consumo da soja como alimento humano, para uso em saladas ou como substituto ao feijão, por exemplo. Além dos cultivares de grão amarelo, existem também os genótipos que apresentam grãos nas cores marrom e preto. “Não é todo grão de soja que é palatável. Esses cultivares foram desenvolvidos para apresentarem um sabor mais agradável, serem resistentes a nematoides, e terem alto teor de proteína. Esse nicho já tem mais de 120 linhagens e vem sendo desenvolvido com foco no mercado de orgânicos”, explica Trevisoli, destacando que tais cultivares já estão em fase de ensaios finais antes de serem liberados para a comercialização.
Inteligência artificial na busca do rendimento
Para identificar o tempo do ciclo de vida do cultivar desde o plantio até a colheita em diferentes regiões do Brasil, os pesquisadores têm atuado em uma área conhecida como fenotipagem de alto rendimento. De forma geral, essa área tem como característica a incorporação de novos recursos tecnológicos como inteligência artificial, sensoriamento de imagens ou as próprias redes neurais para fazer predições relacionadas à produção rural.
Em um artigo publicado na revista Frontiers in Plan Sciences, em julho, o grupo relata uma pesquisa que empregou técnicas de redes neurais artificiais para buscar identificar o tempo do ciclo que permite classificar o cultivar de acordo com o grupo de maturidade. Essa informação é importante porque é o grupo de maturação que irá orientar o produtor quanto ao cultivar mais adequado à região onde ele trabalha. O plantio de um cultivar inadequado para a região pode resultar em colheitas precoces ou atrasadas, que não vão atingir a performance ideal da planta. “Um dos maiores desafios do melhoramento é fazer essa classificação correta do grupo de maturidade porque o ambiente interfere demais na classificação”, explica Trevisoli. Ela diz que a nova tecnologia desenvolvida pelos pesquisadores foi capaz de acertar o tempo do ciclo em 92% dos casos, enquanto os softwares usados pelas fabricantes comerciais têm um nível de acerto de cerca de 50%,
Outro trabalho foi publicado na capa da revista Agronomy. Os pesquisadores conseguiram prever a intensidade da flor de uma planta ornamental chamada beldroega (também conhecida em algumas regiões como onze-horas) a partir da arquitetura da planta. Para isso, os pesquisadores desenvolveram um algoritmo capaz de identificar, em imagens da beldroega, padrões associados a cores mais intensas nas flores que ainda não desabrocharam. Para Trevisoli, a previsão realizada a partir de novas tecnologias tem o potencial de diminuir o papel do olhar humano no processo de fenotipagem e, portanto, aumentar sua precisão. “Neste caso, o algoritmo foi desenvolvido para a beldroega, mas ele é um modelo que pode ser extrapolado para outras espécies comerciais. Futuramente, ele pode ser usado na soja associando e arquitetura à produção de grãos, por exemplo”, afirma a pesquisadora.
Trevisoli explica que, embora nas peças publicitárias seja comum a figura do produtor rural com um tablet na mão e com ferramentas tecnológicas à disposição, a realidade é que são poucos os que podem contar com esses recursos. “Acredito que quanto mais conseguimos desenvolver esses produtos tecnológicos, maior é a tendência de que fiquem mais baratos e cheguem de fato à mão do produtor com um custo baixo, capaz de causar impacto na produção. Acho importante a universidade oferecer um produto tecnológico como retorno ao investimento feito pela sociedade.”
Foto acima: lavoura onde são feitos os testes com os novos cultivares. Crédito: LBMP.