Na pista do “portunhol selvagem”

Estudo analisa linguagem híbrida, gestada na região da tríplice fronteira, que combina espanhol, português e tupi, e que já está sendo empregada para a escrita literária.

Quando Portugal e Espanha expandiram seus domínios pelo Novo Mundo, reconstituíram, na América do Sul, tanto sua condição de reinos europeus limítrofes quanto suas diferenças culturais. Hoje, transcorridos mais de cinco séculos da chegada dos ibéricos por aqui, as fronteiras políticas e culturais entre as nações formadas a partir das antigas colônias espanholas e portuguesas estão bem consolidadas. Porém, em certas regiões do continente, as crescentes trocas comerciais e culturais entre populações de países vizinhos têm aberto caminho para o surgimento de uma variedade híbrida de português e espanhol, chamada popularmente de portunhol.

Por mais que o termo pareça sugerir algo pouco sério, o portunhol já chama a atenção dos acadêmicos da área de linguística e literatura, e é objeto de pesquisas e artigos. “O fenômeno das línguas e linguagens de fronteira, também chamadas de línguas em contato, é um instigante objeto de estudo para a linguística”, diz Odair Luiz Nadin, docente na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara.  Um destes estudos foi conduzido pelo linguista espanhol Cristian Tugues Rodriguez, durante o período em que atuou como docente na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, e foi supervisionado por Odair Nadin. O artigo baseado no trabalho de Rodriguez, que traz os dois como autores junto com o espanhol David Gimenéz-Folqués, foi publicado na revista científica Alfa Revista de Linguística

Enquanto atuava como professor em Araraquara, Rodriguez cursava doutorado a distância na Universidade de Valência, na Espanha. Sua pesquisa girou em torno do spanglish, palavra surgida a partir da combinação dos termos español e english. Esse nome batiza a variante híbrida que articula termos de ambos os idiomas e é bastante falada nos estados dos Estados Unidos onde há grande população imigrante hispânica, como a Califórnia, o Texas, a Flórida e Nova York.

Nos EUA, o espanhol é uma espécie de segunda língua não oficial, com mais de 50 milhões de falantes. Há bairros inteiros onde o comércio adota esta língua, e até escolas destinadas aos falantes do espanhol. “Esse número é superior até ao de falantes de espanhol na própria Espanha”, diz Rodriguez. Na verdade, os EUA são a segunda nação do mundo em número de falantes de espanhol, atrás apenas do México. Para instituições de prestígio ligadas ao universo da língua, como a Real Academia Española e a Academia Norteamericana de la Lengua Española, o spanglish é visto como uma variedade popular surgida a partir da variedade normativa do espanhol estadunidense. “Mas o spanglish está longe de estar totalmente gramaticalizado”, diz. Por isso, os estudiosos têm analisado o uso do spanglish, buscando formular um compêndio das estruturas linguísticas adotadas pelos falantes. O estudo de Rodriguez foi mais uma contribuição nesta descrição.

Durante o período em que residiu no Brasil, Rodriguez viajou de férias ao Paraná para conhecer a chamada região da tríplice fronteira, formada pelos limites do Brasil, Paraguai e Argentina. Como fazem milhares de turistas brasileiros, ele deixou Foz do Iguaçu, no Brasil, e visitou Ciudad Del Este, no Paraguai, em busca de compras boas e baratas. Lá, os vendedores o atenderam falando uma combinação de espanhol e português: era o portunhol. E com um adendo: aqui e ali, os vendedores encaixavam também palavras em guarani, que é uma língua oficial no Paraguai. Intrigado, Rodriguez decidiu investigar se os fenômenos linguísticos que havia mapeado entre os falantes de spanglish na América do Norte se repetiriam também no coração da América do Sul.  

Rodriguez tomou por base a produção literária em portunhol gestada na região da tríplice fronteira. Mapeou cerca de uma dezena de autores brasileiros e paraguaios que têm produzido prosa e poesia usando a variante. Optou pelo escritor e tradutor Douglas Diegues, carioca de nascimento, filho de mãe paraguaia falante do espanhol e do guarani, criado em Ponta Porã, no Mato Grosso, e atualmente residindo em Assunção, a capital do Paraguai. Os textos de Diegues incorporam também os termos em guarani, e ele diz que escreve em “portunhol selvagem”.  Para fins de análise, Rodriguez se concentrou em um livro de contos de Diegues, intitulado “Era uma vez em la fronteira selvagem”, de 2019.

Livro infantil do escritor brasileiro-paraguaio Douglas Diegues.

Rodriguez organizou os fenômenos linguísticos que percebeu no spanglish em duas grandes categorias, intituladas empréstimos e mudanças de código, que por sua vez compreendem diversas subcategorias. Nas páginas de “Era uma vez em la fronteira selvagem”, ele encontrou vários exemplos análogos, combinando, porém três idiomas.

Vejamos a seguir alguns dos achados que constavam no texto de Diegues.

Las crianzas latinoamericanas vivem hoy em comunidades monolingues

  • A palavra crianza se encaixa na categoria dos empréstimos, subcategoria criação híbrida, na qual a grafia ç, que não existe em espanhol, é substituída pelo z. Existe em espanhol o termo “crianza”, mas seu sentido é outro, significando algo como criação. 

“Como se fosse um mitaruzú que acabou de chegar de Nova York”

  • O termo guarani mitaruzú significa jovem. Este recurso é chamado de empréstimo puro, e é mais comum com adjetivos.

“El sapo de All Star parecia um daqueles cinquentones que gostavam de usar solamente roupas de adolescentes”

  • Exemplo de mudança de código intersentencial,a palavra cinquentones surge de uma criação híbrida entre o português cinquentão e o espanhol cincuentones.

“Dentro de cada garrafón, los cazadores colocaban uma goiaba perfumada

  • Mudança de código no final da frase. Relaciona-se ao fato de que se está falando de uma fruta típica do Brasil.

“Pois fora daquele poço non existia puerra ninguma

  • Neste exemplo de empréstimo na categoria de extensão semântica e fraseológica, há uma adaptação hispanizada da forma em português “porra nenhuma”, e o termo  ninguma é um neologismo.

“El mandorová entonces foi embora y morreu numa boa colado numa árvore imensa, porque quando la noche está fresca los mandorovás morrem melhor.”

  • Mudança de código intrasentencial numa cláusula separada por vírgulas, mas na mesma frase.

Rodriguez assinala que o fenômeno das variedades híbridas entre as línguas de dois países não é algo incomum. Já há estudos sobre variantes híbridas de inglês e chinês e de romeno e chinês falados nos EUA, por exemplo. Nas Filipinas existe o chabacano, que combina elementos do espanhol e de uma língua local . E o portunhol existe até mesmo na fronteira entre Portugal e Espanha. Porém, uma variedade que combine três línguas, como é o caso do portunhol da tríplice fronteira, ainda é um caso único.  Essa particularidade, porém, não impede que os falantes do portunhol selvagem e do spanglish empreguem muitos recursos linguísticos em comum, embora estejam situados em regiões muito distantes do mesmo continente e sem contato entre si.

A chegada do portunhol selvagem à escrita pode vir a ser um passo em direção a alguma forma de institucionalização. “Muitos críticos dizem que as línguas de contato carecem de padronização e são apenas um fenômeno oral, espontâneo, e por isso efêmero. Mas, quando se mostra que ela pode embasar uma literatura, isso é contestado”, diz. Nos EUA também existem autores escrevendo em spanglish. “Talvez com o tempo o português venha a aceitar algumas das palavras surgidas do portunhol”, especula. “Com a globalização e as tecnologias digitais, os resultados desses encontros entre línguas são cada vez mais comuns”, diz Nadin. “Talvez os resultados desses encontros venham a ser a línguas do futuro. E, pensando no caso do portunhol e no spanglish, de um futuro não muito distante”, completa.  

Foto acima: Ponte na fronteria entre Ciudad del Lste e Foz do Iguaçu. Crédito: Monocletophat123/Creative Commons.