Autorização para consultas veterinárias à distância pelo CFMV levanta debate sobre limites da telemedicina

Teleconsultas já eram adotadas informalmente no país e trazem benefícios como comodidade e agilidade. Mas alguns profissionais temem pressões comerciais e alertam para potenciais problemas no atendimento clínico, especialmente em diagnósticos.

Assim como aconteceu nos setores do trabalho e do ensino, o uso dos canais digitais como via de contato entre médicos e pacientes disparou no Brasil com a pandemia de covid-19. Essa nova realidade, que se impôs em parte pela necessidade de manter o isolamento social de indivíduos doentes e sob suspeita de terem contraído a doença, sacudiu o debate sobre os aspectos éticos e técnicos da telemedicina. Agora, também no campo da veterinária a tecnologia digital está oficialmente abrindo novos espaços. No final de junho, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) publicou uma resolução no Diário Oficial da União que regulamenta o atendimento virtual de animais em todo território nacional.

De acordo com o documento, a teleconsulta veterinária somente pode ser efetivada nos casos em que tenha ocorrido comprovado atendimento presencial anterior do animal, ou Relação Prévia Veterinária-Animal-Responsável (RPVAR). Além disso, é preciso ter inscrição ativa no conselho médico-veterinário e, no caso de pessoas jurídicas, a Anotação de Responsabilidade Técnica de um profissional devidamente inscrito.

“A resolução dá ao profissional a autonomia de decidir quanto ao uso da telemedicina veterinária, inclusive para a sua impossibilidade, considerando questões éticas e de segurança para a saúde do animal. Assim como na medicina humana, as novas tecnologias vêm para somar e devem ser utilizadas com responsabilidade”, disse Odemilson Donizete Mossero, presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP), em artigo que anunciou as novas diretrizes.

O texto estabelece os parâmetros para a prática da medicina veterinária por meio do uso de tecnologias de informação e comunicação e considera os padrões técnicos e éticos estabelecidos. O documento estabelece requisitos para as seguintes modalidades da telemedicina veterinária: teleconsulta, telediagnóstico, teleorientação, telemonitoramento, teleinterconsulta e prescrição veterinária.

“A telemedicina veterinária elimina barreiras geográficas do atendimento profissional e pode fazer conexões com eficácia com diferentes especialistas para concluir um diagnóstico ou decidir por uma determinada conduta. Trata-se de um novo cenário mundial de atuação em que os profissionais envolvidos deverão se adaptar”, diz José Rafael Modolo, docente do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, câmpus de Botucatu. “É uma importante ferramenta para que os médicos veterinários possam prestar assistência profissional à distância, por meio de tecnologias que possibilitem uma videochamada, aumentando assim as chances de sucesso profissional”, diz.

A prática do atendimento virtual na medicina veterinária não é nova; já acontecia de maneira informal, inicialmente por e-mail e posteriormente via whatsapp e por outros aplicativos de comunicação instantânea que permitem videochamadas. Para os defensores da medida, a nova resolução apenas regulamenta e define critérios para a atuação à distância. “Isso sempre existiu. O veterinário recebia um pedido para dar uma olhada em um animal por telefone, por foto ou vídeo e ficava constrangido de não responder. A gente até deu o apelido de ‘teleolhadinha’”, disse Marcelo Teixeira, relator da medida do CFMV, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.

Atendimento no hospital veterinário de Jaboticabal

Limitações da telemedicina

Para Andrigo Barboza de Nardi, professor na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Unesp, no câmpus de Jaboticabal, a resolução do conselho federal é interessante e abrangente, mas a possibilidade do atendimento remoto de animais traz limitações à prática clínica. A exigência de comprovação de uma relação prévia entre veterinário, animal e seu responsável é uma forma de minimizar as restrições do contato virtual. “Diferentemente da telemedicina para humanos, em que o médico pode decidir se a primeira consulta é presencial ou virtual, a modalidade na veterinária exige um atendimento presencial anterior registrado em um prontuário médico-veterinário”, diz.

Andrigo Barboza de Nardi lembra que, a partir desta regulamentação, o veterinário conseguirá verificar o resultado do tratamento prescrito e acompanhar a evolução da doença a distância, evitando o estresse causado no deslocamento do animal. Esse atendimento com o animal acomodado no local em que vive traz mais conforto “especialmente em casos de doenças com tratamentos longos”, diz o docente, com experiência na área de oncologia. “A telemedicina é interessante, veio para ficar e vai ser cada vez mais usada pelos profissionais, mas não dá para estabelecer o diagnóstico em todos os casos”, diz o docente da FCAV.

Em outras palavras, apesar de existirem pacientes que vão se beneficiar com a prática, em muitas situações será necessário o encaminhamento do animal a um hospital ou clínica para a efetivação de um atendimento adequado. Alexandre Lima de Andrade, da Faculdade de Medicina Veterinária (FMVA) do câmpus de Araçatuba da Unesp, que é supervisor do Hospital Veterinário Luiz Quintiliano de Oliveira, faz a ressalva também que as facilidades tecnológicas e o apelo da modernidade não se sobrepõem aos preceitos que regem o Código de Ética do Médico Veterinário, que proíbe o profissional de “receitar sem prévio exame clínico do paciente”.

“Existem peculiaridades do exame físico, geral e específico, tal como acontece no atendimento presencial que jamais poderão ser substituídas pela consulta virtual. Principalmente aquelas referentes à observação do comportamento do animal doente e à realização de manobras clínicas específicas que são, por vezes, fundamentais para concluir por uma suspeita diagnóstica”, ressalva o docente.

Problemas de comunicação são entraves

Uma das preocupações que envolvem a telemedicina veterinária é justamente o comprometimento do exame físico, o que poderia causar aumento na frequência de erros e perda de qualidade no tratamento. Diferentemente de um paciente humano, que consegue expressar os seus sintomas, é necessário que o tutor traduza, por hipóteses, o que o cachorro, gato ou animal de produção está sentindo para o médico veterinário.

Para chegar ao diagnóstico correto do paciente, o médico veterinário realiza o exame físico, geral e até específico, e outros exames complementares, como de sangue ou de imagens. A professora Flavia de Almeida Lucas, que é vice-supervisora do Hospital Veterinário Luiz Quintiliano de Oliveira, destaca que na medicina veterinária é comum que o tutor apresente informações incorretas na hora da consulta, pela falta de um olhar clínico adequado, e que posteriormente são “desmentidas” pelo exame físico.

“Já temos dificuldades na modalidade de atendimento presencial, pois os animais não falam ou demonstram o que estão sentindo. A telemedicina vai aumentar esses problemas. Com certeza ocorrerão diagnósticos errados”, alerta a docente.

Alexandre Lima de Andrade, cita uma orientação da Associação Americana de Medicina Veterinária (AVMA, na sigla em inglês) para que as tecnologias digitais sejam utilizadas com a finalidade apenas de fornecer remotamente informações, ou na área de educação em saúde. “Embora tenha sido aprovada pelo CFMV, é preciso ter cautela em empregar a telemedicina veterinária como modalidade de rotina, haja vista as distorções sobre o exercício da profissão. Percebe-se, ainda, um apelo comercial e empresarial elevado para que a modalidade se solidifique para lançamento de plataformas digitais, como ocorre na prática da medicina humana”, afirma Andrade.

Foto acima: atendimento veterinário no Hospital Veterinário Luiz Quintiliano de Oliveira, em Araçatuba.