A subordem dos ruminantes é um dos casos mais bem-sucedidos no processo de domesticação de animais pelo ser humano. Estima-se que existam hoje sobre o planeta cerca de 3,5 bilhões de ruminantes de nove espécies domesticadas, que exercem um papel fundamental na economia e na produção de alimentos, em especial da carne e do leite. Apenas no grupo dos bovinos, a população total é estimada em um bilhão de indivíduos em todo o mundo.
Tais números superlativos refletem o grande desenvolvimento alcançado desde o início da domesticação das cabras, que remonta a dez mil anos e se acredita ter ocorrido na região do Oriente Médio. Mas para que se tornassem realidade foi fundamental a introdução gradual de sofisticadas técnicas para potencializar a eficiência produtiva, de esforços para aperfeiçoar o controle sanitário e um crescente interesse pelas condições relativas ao bem-estar animal.
Ainda assim, especialistas apontam que certos avanços tecnológicos alcançados recentemente – por exemplo no campo da genética e do melhoramento animal – não foram acompanhados por uma preocupação equivalente com um tema aparentemente mais simples: a saúde bucal dos animais. E esse desinteresse ganha mais relevância por se tratar de um grupo animal em que o sistema digestório e a mastigação desempenham uma função vital.
Problemas bucais refletem até no peso do animal
No processo digestivo dos animais, a comida é inicialmente triturada pela mastigação e em seguida enviada a uma parte do estômago chamado rúmen. Esse órgão possui grande quantidade de micro-organismos, que atuam sobre o alimento e complementam a digestão. Após a ação dos micro-organismos, o material retorna à boca para o processo de ruminação, que consiste em ser remastigado junto à saliva, para então ser engolido pela última vez. Bovinos que vivem confinados passam 265 minutos diários comendo e 440 minutos ruminando, e que no total o processo digestório demanda aproximadamente 17 mil movimentos mastigatórios, mostram estudos. A importância da mastigação, e portanto dos dentes para a saúde dos ruminantes, já está bem demonstrada empiricamente: pesquisas mostraram que bovinos com doenças periodontais, por exemplo, podem pesar em média até 30% menos que os animais saudáveis.
Ao longo da última década, o pesquisador e veterinário Iveraldo dos Santos Dutra tem se dedicado a pesquisar a saúde bucal desses animais, com foco na condição dos dentes e dos tecidos que dão sustentação a essas estruturas, o periodonto. “Observar a boca do ruminante não é uma percepção comum ao produtor brasileiro, mas ela pode afetar de forma aguda a vida desses animais”, explica o professor do câmpus da Unesp em Araçatuba. “Uma saúde bucal comprometida pode afetar a eficiência alimentar e o bem-estar dos animais, uma vez que vão sentir dor e dificuldades na hora da mastigação e da ruminação.”
Mal da “cara-inchada” foi desafio à expansão pecuária
No início de sua carreira ele se dedicou a estudar um sintoma apresentado pelos bovinos conhecido popularmente como “cara-inchada”, que é uma manifestação aguda de um quadro de periodontite. Diferentemente do que se observa na “cara-inchada” dos equinos, que tem relação com o manejo nutricional inadequado, hoje se sabe que a doença em bovinos é causada por infecções causadas por microorganismos alojados no periodonto, o tecido que envolve os dentes. Em casos mais graves, a infecção pode evoluir para a inflamação do tecido que circunda os ossos da mandíbula, o periósteo, causando o quadro de inchaço que dá nome à doença. Contudo, nos anos 1960 e 1970, pouco se sabia sobre a moléstia, e a “cara-inchada” se tornou a principal vilã a confrontar a expansão da pecuária brasileira para novas áreas no Sudeste e Centro-Oeste do país.
O entendimento que existe hoje é que a própria mudança no uso da terra, ocorrida durante o processo de expansão pecuária, esteve associada ao aparecimento da doença nos rebanhos. A transformação da mata virgem em novas pastagens provocava um desequilíbrio nos micro-organismos que formam a microbiota do ambiente, aumentando a presença de bactérias responsáveis pelas infecções do tecido periodontal. Com a consolidação das áreas de pecuária, a prevalência da doença nos rebanhos diminuiu.
Alguns trabalhos conduzidos por Dutra, entretanto, mostraram que a periodontite e suas consequências nunca deixaram de fato as pastagens brasileiras. “O que se vê hoje é uma forma mais branda clinicamente, mas ainda capaz de provocar lesões periodontais”, explica. Em razão da pouca importância que produtores e veterinários atribuem à saúde bucal dos ruminantes como um todo e à periodontite especificamente, muitos animais acabam apresentando alguma debilidade no seu desenvolvimento ou em sua capacidade reprodutiva, ocasionando prejuízos econômicos e afetando inclusive a qualidade do leite produzido pelas vacas.
Pesquisas apontam que, em bovinos, a periodontite pode acometer entre 25% e 60% dos animais do rebanho. Estes, em sua maioria, não manifestam mais a “cara-inchada” que era tão familiar nos anos 1960 e 1970. A infecção, contudo, pode levar ao emagrecimento progressivo, à perda da dentição e a atrasos no crescimento. Com o passar dos anos, este quadro faz com que os animais passem a ser classificados como o que os produtores chamam de fundo de rebanho, e muitas vezes são descartados sem um tratamento adequado.
Conhecer a microbiota é chave para combater doenças
Atualmente, boa parte das pesquisas conduzidas pelo grupo que Dutra coordena envolve um melhor entendimento da periodontite na saúde geral dos ruminantes, e mais precisamente do papel da microbiota presente em seu organismo. Os pesquisadores têm recorrido a recursos de sequenciamento genético para conhecer melhor o microbioma presente nos dentes de diversos ruminantes, e assim identificar quais as bactérias que compõem esse ambiente. A abordagem foi tema de financiamento da Fapesp e permitiu aos pesquisadores, além de examinar em detalhe os micro-organismos compõem essas microbiotas, estabelecer relações relevantes entre eles.
Em um desses trabalhos, os pesquisadores realizaram o sequenciamento do bioma dos dentes e do rúmen de bovinos saudáveis e com periodontite, e encontraram no total 425 gêneros diferentes de bactérias, dos quais 93 estavam presentes nos dois lugares. “Embora a boca e o rúmen abriguem duas microbiotas muito particulares, com características fisiológicas, metabólicas e ecológicas distintas, constatamos a necessidade de um equilíbrio entre as duas biotas para uma melhor saúde do animal”, diz o veterinário.
A técnica de sequenciamento foi aplicada também para melhor compreender de que forma as mudanças no uso da terra podem influenciar a incidência da periodontite nos animais. Esse conhecimento pode ser importante para reduzir perdas e melhorar a produtividade do rebanho, e colaborar para reduzir a pressão pela abertura de novas áreas de pastagem.
Pesquisa na Amazônia tem apoio dos EUA
Este objetivo levou integrantes do grupo de pesquisa ao Acre, onde a expansão da produção pecuária pelas matas anteriormente virgens da Amazônia está em pleno andamento. A partir de um transecto de 800 quilômetros que atravessava cenários de pastagem recente e de floresta, a equipe, que reuniu os pesquisadores da Unesp, da Embrapa Solos e de instituições dos Estados Unidos, fez o levantamento dos animais que apresentavam ou não periodontite, e analisaram a microbiota presente no solo, na boca e no rúmen dos bovinos. O projeto de pesquisa foi aprovado em um edital da National American Society (NAS) entre mais de 500 propostas.
Com o uso de técnicas avançadas de sequenciamento foi possível listar e comparar as bactérias que compõem a microbiota da boca e do rúmen de animais saudáveis e daqueles que apresentavam periodontite. O artigo foi publicado na última edição da revista científica Frontiers in Microbiology. A partir dessa lista, os pesquisadores também puderam identificar os patógenos comumente associados à presença da periodontite e comparar a sua presença em relação ao conjunto de micro-organismos que formam a biota.
“Observamos que os animais doentes têm problemas na microbiota da boca e do rúmen, enquanto os sadios apresentam um perfil microbiótico ideal. Isso sinaliza que um desequilíbrio da microbiota pode estar influenciando a etiopatogênese da doença, ou seja, nas suas causas”, diz Dutra. Para o docente, “investigar os microorganismos presentes nos ruminantes, no meio em que vivem, como se dá a relação entre eles e os efeitos do desequilíbrio, pode colaborar para, por exemplo, avançarmos na proposição de medidas de controle e tratamento da periodontite”, diz.
O grupo acaba de elaborar um livro dedicado exclusivamente à saúde bucal de ruminantes reunindo o conhecimento gerado pelo grupo de pesquisa, centenas de fotos e as novas abordagens com a pesquisa genômica. “Além do Brasil, o livro será lançado nos Estados Unidos e na África do Sul. Queremos mostrar a produtores, veterinários e à indústria que é preciso compreender a saúde bucal desses animais”, preconiza o pesquisador. Ele ressalta que ainda há muito por ser pesquisado na relação da saúde bucal com questões produtivas de grande importância, como a qualidade do leite, a capacidade reprodutiva e a própria saúde animal. “Quando abrimos a boca, vemos toda expressão do que é saúde e toda expressão do que é doença. Precisamos abrir a boca dos ruminantes.”
Foto acima: Crédito: Deposit Photos.