Mercosul não alcançou o impulso esperado porque seus benefícios não foram percebidos pela população

Três décadas após assinatura do tratado comercial, região é o principal destino da exportação dos produtos industrializados brasileiros. Ainda assim, afirmam os especialistas da Unesp, o Mercosul vive uma crise em razão da desarticulação da política externa brasileira e da baixa percepção da sociedade sobre os seus efeitos econômicos e culturais

Talvez o leitor não tenha notado, porque a festa foi discreta, mas em outubro de 2021, o Mercosul celebrou 30 anos. O aniversário do acordo de integração regional que une Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – a Venezuela está suspensa desde dezembro de 2016 – recebeu poucas manifestações públicas e apenas uma breve reunião virtual entre seus respectivos presidentes marcou oficialmente a efeméride.

O Jornal da Unesp entrevistou dois especialistas em integração regional e Mercosul, a professora Karina Lilia Pasquariello Mariano e o professor Tullo Vigevani, para entender a atual situação do bloco comercial sul-americano. Ambos compõem o corpo docente do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, que reúne as expertises de Unesp, Unicamp e PUC-SP na área de Relações Internacionais. 

Entre os assuntos abordados pelos professores estão as origens, motivações e os principais atores que estimularam o projeto de integração sul-americana nos anos 80, bem como uma avaliação do estado atual do Mercosul em um contexto político interno avesso à cooperação regional e que, juntamente com pandemia de Covid-19, ajuda a explicar o tom melancólico do evento de aniversário. 

Para os pesquisadores, ainda que os efeitos positivos da aliança não tenham sido totalmente percebidos pela sociedade, seus impactos econômicos e culturais não devem ser desconsiderados, citando sua importância como destino da exportação de produtos industrializados brasileiros e sua capacidade de estimular trocas culturais entre os países-membros.

Os professores comentam ainda a perspectiva do bloco para o futuro, diante dos acenos contraditórios do Brasil a outros agrupamentos de países, como a OCDE ou os BRICS, e da tendência de mudança observada hoje em diversos governos sul-americanos, que estariam, em tese, mais abertos à cooperação regional.

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Nós temos visto ultimamente dois movimentos principais do Brasil em sua política externa: um em direção à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e outro em direção aos BRICS (agrupamento que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). A impressão é que não se fala tanto no Mercosul como se falava antes. Por que o bloco parece não estar no horizonte da política externa brasileira hoje? Ele deu errado?

Karina Mariano e Tullo Vigevani: Acho que não. O Mercosul se insere na estratégia de política externa brasileira com momentos de maior e menor ênfase nessa aliança. Um ponto importante é que o Mercosul foi a plataforma pensada nos anos 90 para fazer a inserção internacional do Brasil. Então, no fim das contas, diálogos com OCDE e BRICS são desdobramentos desse processo. 

O que a gente tem hoje no Mercosul, que é inegável, é uma crise, que tem a ver principalmente com desarticulações internas do Brasil, por conta de diferentes visões governamentais. Falando o português claro, o atual governo brasileiro tem uma visão extremamente negativa da integração. Quando o Governo Bolsonaro ganhou a eleição, a primeira coisa que ele falou foi que o Mercosul acabou. Depois ele voltou atrás, mas esse foi um ponto importante da falta dessa visão estratégica. 

É importante dizer que existem interações dentro do Mercosul que se tornaram permanentes e que, embora a gente não perceba, elas fazem parte do nosso dia a dia, mesmo quando há crises na cúpula. 

Os presidentes Fernando Collor, Andrés Rodríguez, Carlos Menem e Luis Alberto Lacalle na assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, que criou oficialmente o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Crédito: Mercosur.int

Voltando agora pro começo da história do Mercosul, quais foram os grupos interessados na criação da aliança e na criação de um movimento de integração da América do Sul? Foram as elites políticas, as elites econômicas, as diplomacias? Quem patrocinou a criação desse bloco na época? 

Karina Mariano e Tullo Vigevani: A comunidade epistêmica que se mobilizou a favor do Mercosul sobretudo nos anos 80, mas também nos anos 90, era composta por diversos segmentos sociais e econômicos. Um dos segmentos sociais era a diplomacia. Não era toda diplomacia, mas alguns diplomatas se mobilizaram ativamente pela concretização da integração regional. Pode parecer estranho falar isso hoje, mas podemos dizer também que a comunidade militar. Alguns grupos entre os militares, juntamente com pesquisadores e professores, discutiam a necessidade de o Mercosul liquidar a hipótese de confrontação militar entre Brasil e Argentina. Provavelmente essa foi uma das grandes conquistas do Mercosul. Até esta época, nos anos 70, a política dos militares argentinos e brasileiros era claramente de confrontação. Eu não digo guerra, até porque eu não sei se havia condições efetivas para a realização de uma guerra, mas era de confrontação. Confrontação que levou a graves crises políticas, diplomáticas e militares, até que se chegou ao acordo tripartite de Foz do Iguaçu pelo qual se resolveu a grande dificuldade para a melhoria das relações Brasil-Argentina, que era a utilização das águas do Rio Paraná. A consequência foi o acordo tripartite para o estabelecimento dos níveis das hidrelétricas de Itaipu e da hidrelétrica Corpus, da Argentina.

O setor econômico e empresarial também teve muita importância pelo impulso que deram às multinacionais automobilísticas. Elas tinham interesse em criar um mercado comum e mais amplo para produtos automobilísticos, e utilizar o que viria a ser o Mercosul como uma base de produção de determinados produtos automotivos para o mercado internacional em geral. Até hoje essas multinacionais internacionais produzem na Argentina ou no Brasil e exportam peças, motores, às vezes equipamentos completos, para os Estados Unidos, que é a lógica da globalização dos mercados. 

Talvez o setor mais importante tenha sido a própria burocracia estatal e uma parte dos políticos. Eu citaria simbolicamente o presidente José Sarney, do Brasil, e o presidente Raúl Alfonsín, na Argentina, e os políticos que estavam ligados ao tema, no caso do Brasil, o Celso Lafer, Celso Amorim, Rubens Barbosa, Rubens Ricupero. Toda uma série de funcionários e políticos que tiveram a percepção de que a integração regional era a chance de fortalecimento dos estados brasileiro e argentino em um contexto nacional que já estava caminhando para a globalização. Portanto, os estados que não se adequassem às mudanças no sistema internacional ficariam marginalizados. Um outro elemento que teve bastante importância na época foi a estabilidade do regime democrático, que se estava implantando tanto na Argentina quanto no Brasil, em que um processo de integração regional garantiria vínculos internacionais para as instituições. Houve a percepção de que acertos internacionais seriam favoráveis ao fortalecimento de uma perspectiva democrática que esse governos estavam tentando desenvolver e implantar nos seus países. 

Ou seja, fica claro que a integração não é resultado de um simples momento, mas de um processo e de formação de consensos. Em um primeiro momento, a ideia é colocada, mas você não consegue ter o apoio interno necessário ou o contexto internacional não é favorável. Nos anos 90, você tem uma conjunção, tanto de uma opinião pública favorável, como de uma conjuntura oportuna, que dá concretude a esse processo. 

Quando vemos outras experiências de integração multinacional, notamos uma reorganização na esfera produtiva. Na NAFTA, hoje chamado T-MEC, empresas dos EUA foram para o México e para o Canadá, por exemplo. Na União Europeia, a articulação envolveu leis, moeda e fronteiras comuns. E, aqui na América do Sul, de que forma o Mercosul alterou as relações e as dinâmicas entre os países? 

Karina Mariano e Tullo Vigevani: Alterou bastante, é que às vezes a gente não percebe. Boa parte dos produtos que a gente consome no nosso dia a dia, industrializados, estão todos sendo feitos na região. Já foi citado a questão do setor automotivo, a Ford só saiu do Brasil e foi para a Argentina porque ela pode exportar a sua produção pra cá sem problema. Mas não só isso. O Mercosul ampliou os mercados para os produtos industrializados. O Brasil exporta produtos industrializados pra região, enquanto para o resto do mundo a gente exporta commodities. Essa questão é importante. 

Em 2020, a CNI (Confederação Nacional da Indústria) publicou um documento em que eles defendem abertamente a manutenção do Mercosul. Isso é contraditório porque os industriais e as elites dominantes foram fortemente críticas a aspectos do Mercosul, porque consideravam que o Tratado fazia com que o Brasil facilitasse os interesses dos países vizinhos em desfavor dos próprios interesses, industriais, agrícolas e políticos. E a CNI, dois anos atrás, publicou um documento dizendo, com toda razão, que a saída do Brasil do Mercosul traria um prejuízo inominável para o país. O Brasil, pela existência do mercado comum, tem tarifas alfandegárias favoráveis para os seus produtos. O grosso dos produtos industriais brasileiros é exportado para os países do Mercosul e para os países associados por acordos de livre comércio, como Chile, Peru e Colômbia. Essas tarifas garantem aos industriais brasileiros a possibilidade de exportação que não teriam em relação a nenhum outro bloco.

Você tem ainda a expansão de empresas multinacionais argentinas para o lado brasileiro, como a Sereníssima ou o grupo Monje. Elas não estavam muito presentes no mercado brasileiro antes do Mercosul e hoje são grandes referências dentro do mercado brasileiro.

Importante destacar que, no plano internacional, Brasil e Argentina são competidores. Afinal, exportamos os mesmos produtos, a soja, a carne, minérios. Isso acaba limitando um pouco a nossa complementaridade. No início do Mercosul, houve um aumento significativo nas trocas e investimentos que, com a crise e nossos problemas internos, acabou caindo, mas houve sim um impacto que talvez a gente não perceba com tanta clareza.

Um ponto importante é que a integração ela não traz só efeitos econômicos, mas sociais e culturais. Quando se observa as trocas culturais na forma de festivais de cinema, festivais de arte, bienais, nota-se uma presença muito maior na produção dos países da região, coisa que não acontecia antes do Mercosul. 

Um dos casos que eu acho que é mais importante é o código de defesa do consumidor. Houve uma harmonização do código de defesa do consumidor e dos rótulos dos produtos por conta da questão do Mercosul. Foi utilizado o padrão mais avançado que, na época, era o brasileiro. No Brasil, o efeito foi imperceptível porque a gente já aplicava essas normas, mas nos outros países foi uma mudança importante. Você tem outros tipos de mudanças que são importantes e que às vezes não percebemos. Veja por exemplo a incorporação do espanhol nas escolas públicas de ensino fundamental e médio. Quem aprendia espanhol 20 anos atrás? Ninguém, a gente aprendia às vezes inglês na escola, às vezes francês, mas espanhol não. Hoje em dia, todo mundo aprende pelo menos uma noção de espanhol. É um impacto importante, que até facilita essas trocas culturais. Agora veja a presença da música, dos filmes, da literatura, que antes não era acessível, porque as pessoas tinham dificuldade em ler e assistir. Acho que esse é o ponto importante, existem impactos, mas que são lentos porque são processos. 

Mas o Mercosul ainda apresenta debilidades graves. O comércio interno da União Europeia era de aproximadamente 60%, isso antes da saída da Grã-Bretanha. O T-MEC, que substituiu o antigo NAFTA, é em torno de 30%, mas só os EUA representam uma parte imensa desse número. O Mercosul, por sua vez, tem um comércio interno de aproximadamente 15%. Quer dizer, o Mercosul não teve spillover, não teve o impulso interno que se esperava. Não teve porque as vantagens não foram visíveis para a população, então isso trás as dificuldades as quais estamos assistindo. 

É fato que todos os processos de integração têm sérias dificuldades, mas o Mercosul nunca conseguiu ultrapassar um determinado patamar necessário para se confirmar. Ainda assim, esse documento da CNI mostra porque o Mercosul terá continuidade, que mesmo em um Governo como o de Bolsonaro, ele não chegou a ser diretamente questionado, ainda que houvesse políticos no Brasil que dissessem isso.

Foto oficial da 54ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, em Santa Fé, na Argentina. Crédito: Mercosur.int

Na medida em que a gente vê uma reaproximação do Brasil com os BRICS, ao mesmo tempo em que as conversas com a União Europeia são enterradas por conta do atual projeto político, qual futuro o Mercosul pode ter?

Karina Mariano e Tullo Vigevani: Tudo depende de como vão andar os processos políticos nos próximos anos. A Argentina foi para a última reunião do BRICS solicitando a entrada no bloco. A princípio isso poderia indicar uma expansão do Mercosul dentro do BRICS, na forma de uma articulação conjunta de Brasil e Argentina, ou pode ser uma competição também. Depende de como vão se desdobrar as eleições no Brasil. Hoje, o Governo Federal tem uma visão muito negativa em relação à integração regional, que revela até uma ignorância sobre o processo. Você tem o ministro da Economia Paulo Guedes falando sobre cada país aplicar a sua tarifa externa e ao mesmo tempo defendendo uma moeda única no bloco, uma proposta que significaria uma articulação ainda mais forte entre seus membros. Ou seja, não tem nem noção do que é integração. Existe a situação política nos demais países também. A Argentina está enfrentando uma crise forte e terá eleições no próximo ano. 

É evidente que há diferentes direcionamentos na política brasileira. No caso do Mercosul, dos BRICS e da OCDE, há elementos contraditórios nessas políticas.Se o Brasil privilegiar as relações com a OCDE, certamente não poderá manter relações intensas com os BRICS. Elas são contraditórias porque, neste momento, estar no BRICS quer dizer estar em relações políticas favoráveis com China, Rússia e Índia. Estar na OCDE significa adequar-se às regras econômicas dos Estados Unidos e da União Europeia. Por não ter uma política, o Governo Bolsonaro acaba sendo contraditório, querendo ter boas relações com a Rússia, querendo ter boas relações com os BRICS e com a China, particularmente. E ao mesmo tempo querendo avançar no acordo de comércio com a União Europeia e ingressar na OCDE. São questões contraditórias que ainda não estão resolvidas. 

Um ponto importante para se pensar é, será que sozinhos conseguiremos nos sair melhor? Será que nos aliarmos aos BRICS ou entrar na OCDE resolve os nossos problemas locais? O BRICS hoje tem uma lógica e formação muito diferente de quando foi criado. A situação da China é outra. A situação da Rússia cria uma instabilidade dentro do BRICS por conta da questão da guerra. O cenário ainda está muito confuso. Eu acho que a gente vai ter que aguardar um pouco para ver como essas questões vão se encaminhar. Um ponto favorável são as mudanças políticas que estão ocorrendo na região, não apenas no Mercosul, mas também nos demais países, como Colômbia e Chile, que apontam para um posicionamento de maior convergência e de repensar as relações da região.

Imagem acima: Bandeiras dos países que compõem o Mercosul. Crédito: DepositPhoto