Em maio passado, a notícia da morte de Genivaldo Jesus dos Santos, 38, durante uma abordagem por membros da Polícia Rodoviária Federal no município de Umbaúba, SE, trouxe o debate sobre tortura para as primeiras páginas do noticiário. Genivaldo foi atingido por spray de pimenta, imobilizado pelos policiais, algemado e colocado dentro do porta-malas da viatura. Testemunhas relataram ver uma nuvem de gás semelhante a spray de pimenta saindo da parte de trás do veículo. Ele foi levado desacordado ao hospital, mas chegou lá morto. O laudo do Instituto Médico Legal apontou sufocamento e insuficiência respiratória como a causa do óbito. A morte desencadeou uma série de protestos em diversas cidades brasileiras. Até Jan Jarab, diretor do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos para a América do Sul, se manifestou para exortar as autoridades brasileiras a procederem a uma investigação “célere e completa” do acontecimento.
Mas o tsunami de indignação suscitado pela morte de Genivaldo foi o segundo incidente grave relacionado ao tema da tortura este ano. Em abril, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o mais votado da história, postou em suas redes sociais um comentário atacando a jornalista Miriam Leitão. Leitão publicara um artigo com fortes críticas ao pai de Eduardo, o presidente Jair Bolsonaro. Em 2014, a jornalista relatou as torturas pelas quais passou quando foi presa política durante o período da Ditadura Militar. Entre as violências que sofreu por parte de seus algozes, a jornalista, que estava grávida, contou que uma cobra foi colocada em sua cela, numa prática de tortura psicológica. “Ainda com pena da cobra”, escreveu o deputado em suas redes sociais, como comentário ao artigo. Posteriormente, ele chegou a escalar suas declarações, afirmando que não há evidências de que a jornalista foi torturada, além da sua própria palavra.
Miriam Leitão deu a resposta poucos dias depois. Em seu blog pessoal, ela revelou a existência de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar (STM), feitas entre 1975 e 1985. Nelas é possível escutar os próprios ministros militares manifestando desconforto e até oposição à prática de torturar os adversários do regime. “O que não podemos é admitir que o homem, depois de preso, tenha sua integridade física atingida por indivíduos covardes”, declarou o almirante Júlio de Sá Bierrenbach durante uma sessão do STM em 1976. Em outra sessão, de 1977, o general Rodrigo Otávio Jordão Ramos fala em “fato mais grave que suscita exame” e lê o relato de uma presa política que denuncia ter sofrido um aborto, “por choques elétricos no aparelho genital”, após ter sido submetida a torturas no terceiro mês de gravidez.
Quem passou o material a ela foi o historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele pesquisa o período da ditadura desde 2006 e, há quatro anos, deu início à análise de cerca de 10 mil horas de áudios do STM. “Resolvi divulgar algumas passagens de sessões de julgamento quando um dos filhos do presidente fez afirmações ofensivas contra Miriam Leitão, questionando o fato de ela ter sido vítima de tortura”, diz o historiador. “Fiz isso pela vivacidade dos áudios. Ouvir generais, almirantes e brigadeiros do STM, durante a ditadura, afirmando a existência da tortura tem muito impacto, mais do que a leitura de documentos escritos, por exemplo”, diz Fico.
Mas o ataque de Eduardo Bolsonaro à Miriam, relativizando a violência que ela sofreu, nada tem de pessoal. É fruto de um gradual processo que tem procurado apagar a memória social construída sobre a prática de tortura por parte do aparelho repressivo no Brasil durante a ditadura militar, e de esvaziar o consenso social, construído a partir dos anos 1980, de que essas práticas não têm lugar numa sociedade democrática.
Onda negacionista quer mudar imagem de Brilhante Ustra
E um dos mais destacados atores desse processo é o próprio presidente da República e pai de Eduardo Bolsonaro, Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro já declarou que o relato de Miriam leitão sobre as torturas que sofreu era “mentira, mentira”. Também afirmou que não há evidências de que o jornalista Vladimir Herzog – talvez o mais conhecido caso de morte por tortura durante a ditadura – tenha morrido devido à brutalidade de seus interrogadores, e que o deputado Rubens Paiva, outra célebre vítima da repressão, teria na verdade sido “executado pelo bando do Lamarca”. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro recebeu no Palácio do Planalto a viúva do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), um dos mais notórios torturadores ligados ao regime militar, a quem elogiou como “herói nacional”. Ustra também foi defendido no ano seguinte pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que foi seu subordinado nos anos 1970. Mourão declarou que Ustra “respeitava os direitos humanos de seus subordinados” e que “muito do que se fala sobre ele não é verdade”.
O objetivo desse discurso é lançar dúvidas a respeito de todo o conhecimento acumulado sobre o legado de sofrimento e violência que a prática da tortura projetou sobre milhares de vítimas e seus familiares. “Jair Bolsonaro é o expoente de uma corrente que representa parte da sociedade. Ele trouxe à tona a questão do negacionismo em relação à história do Brasil”, diz o sociólogo e cientista político Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Estudioso do período, Cunha atuou como consultor da Comissão Nacional da Verdade entre 2012 e 2014.
Primeiro, em vez de se mostrar as denúncias de torturas, passou-se a exaltar os torturadores. No limite, questiona-se a ocorrência da tortura.
Carlos Fico, historiador
Cunha diz que a construção desse discurso negacionista vem sendo feita em etapas. Primeiramente, houve uma inversão lógica; “em vez de se mostrar as denúncias de torturas, passou-se a exaltar os torturadores”, analisa. O estágio seguinte foi dedicado a negar “as conquistas da sociedade democrática” obtidas neste campo e os avanços na luta pelos direitos humanos representados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade. Por fim, “no limite, questiona-se a ocorrência da tortura”.
Mas não é possível negar todo o conhecimento acumulado por jornalistas, historiadores e ativistas de direitos humanos sobre o que aconteceu realmente nos porões da ditadura militar, o regime autoritário que comandou o país entre 1964 e 1985. Isso inclui dados sobre a quantidade de pessoas torturadas, a difusão gradual da prática em meio aos órgãos de segurança civis e militares e os métodos mais empregados.
Estimativas colocam número de torturados na casa dos milhares
Quantos foram torturados? Em meio a tantas subnotificações, os números variam. “Na Comissão de Anistia [criada por lei federal em 2002], pelo menos 100 mil pessoas que foram presas durante o regime militar deram entrada com pedidos de reparação. E a tortura era a regra”, enfatiza o geólogo, ativista e ex-deputado estadual Adriano Diogo, ele próprio torturado, em 1973, nas dependências do DOI-CODI em São Paulo, e que presidiu a versão estadual de São Paulo da Comissão da Verdade.
“O Plano Nacional de Direitos Humanos [em sua terceira edição, datada de 2009], da presidência da República, aponta para aproximadamente 20 mil casos de tortura”, diz o historiador Leonardo Leal Chaves, pesquisador na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Autor do premiado livro “A Casa da Vovó: Uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar”, o jornalista Marcelo Godoy reconhece que “esses números são dificílimos de se quantificar”, mas estima que “estão na casa dos milhares”. “Depende muito do que se vai considerar ‘torturador’ e das fontes das denúncias. O Projeto “Brasil: Nunca Mais” (conduzido por líderes religiosos progressistas de 1979 e 1985, de forma clandestina) é uma delas.”
“É impossível determinar quantas pessoas foram torturadas nos 21 anos da ditadura no Brasil, principalmente por conta da existência de centros clandestinos de tortura”, acrescenta o cientista político e jurista Manoel Moraes, professor na Universidade Católica de Pernambuco, onde é coordenador da cátedra Unesco de Direitos Humanos Dom Helder Câmara. “O número com certeza é muito maior do que se imaginava, mesmo assim não podemos aferir precisamente porque foram práticas sistemáticas usando todos os tipos de instrumentos.”
“A maioria das pessoas presas durante a ditadura militar passou por tortura”, salienta o jornalista Aluízio Palmar, autor do livro ‘Onde Foi Que Vocês Enterraram Nossos Mortos?’. “A tortura foi oficializada e os presos políticos eram torturados nos quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além das delegacias de polícia. Cito o meu caso, como exemplo.”
Alguns casos se tornaram mais emblemáticos, seja pelas repercussões à época, seja por depoimentos daqueles que sofreram os flagelos, seja pela própria importância midiática das ocorrências. Tão logo o golpe foi impetrado, o militar e político Gregório Lourenço Bezerra (1900-1983), militante comunista e opositor do então novo regime, foi preso e arrastado pelas ruas do Recife. Godoy ressalta que esse acabou sendo “o caso mais conhecido”, mas é importante porque ilustra que a tortura como método de tratamento aos oposicionistas existiu desde o início da ditadura.
Outro caso notório foi a já mencionada morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, que terminou por contribuir para a exoneração do então comandante do II Exército por sua incapacidade de refrear a ação dos elementos torturadores. Em 2004, o Centro de Comunicação Social do Exército publicou uma nota afirmando que não havia provas de que Herzog tivesse falecido nas instalações do DOI-CODI no II Exército, em São Paulo. Foi preciso que o então comandante do Exército, Francisco Roberto de Albuquerque, visse a público contestar a nota anterior e lamentar a morte do jornalista, apontando a falta de uma discussão aprofundada sobre o tema como a causa para o teor da nota original.
Difusão da tortura foi gradual
Nessa primeira fase, contudo, eram práticas geralmente restritas às delegacias de polícia. Onde, vale dizer, torturar já era uma maneira institucionalizada para arrancar confissões de meliantes enquadrados pelos policiais.
“No começo, os militares não sabiam fazer interrogatório. Eles pediram ajuda para a Polícia Civil, e o que mais orientou no início, principalmente em São Paulo, foi o delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979), que era da polícia política mas também da polícia comum, atuava com marginais, tinha grupos de extermínios…”, comenta Diogo.
“As torturas ocorriam então nos DOPs (Departamentos de Ordem Política e Social), da Polícia Civil. Posteriormente os militares foram criando organismos próprios… Passaram a fazê-las [as torturas] nos quartéis, nas bases aéreas e em outros lugares”, prossegue o ativista.
Os procedimentos ganharam mais consistência a partir da chamada Operação Bandeirante, criada pelo governo em 1969 com o objetivo de “investigar e desarticular fações revolucionárias”. Segundo Diogo, a operação “legalizou” as torturas feitas pelo Estado, com a criação do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), subordinado ao Exército.
Foi o ponto de partida para a fase mais macabra da ditadura militar, aquela onde forças ligadas ao Estado mais desrespeitaram as liberdades individuais e os direitos humanos.
“Com a criação do DOI-CODI, as agências de inteligência do regime se uniram e formaram uma estratégia unificada de informação e difusão das informações obtidas por tortura e, evidentemente, checagem desses dados”, pontua o professor Moraes. “Isso tornou a repressão mais eficiente e, consequentemente, mais gente veio a morrer.”
Cunha recorda, contudo, que muitos militares também não aceitavam as torturas, “inclusive se recusando a participar”. “Há o caso de um coronel da Polícia Militar de São Paulo, que estava sendo preso e barbaramente torturado e foi salvo pelo general Silvio Frota [(1910-1986), ministro do Exército no governo de Ernesto Geisel], que era da linha-dura mas contra a tortura”, enfatiza o sociólogo. Ernesto Geisel (1907-1996) dizia ser favorável “aos excessos” — eufemismo utilizado pelos militares quando queriam se referir às torturas — “em determinadas situações”.
No entendimento de Cunha, que pesquisa exatamente a atuação de militares de esquerda durante o período, essa falta de consenso entre os próprios adeptos do regime é consequência da natureza de um governo de exceção. Nesse contexto, nem sempre a hierarquia militar era seguida à risca, quando a discussão era nas operações do dia a dia.
“Isso é muito polêmico”, explica. “O Ustra, enquanto capitão, major, mandava mais do que muitos generais, muitas vezes torturava à revelia do comando local.” Segundo o pesquisador, isso fazia com que “comandos paralelos” naturalmente assumissem ordens que não necessariamente vinham da hierarquia.
“Isso não tira a responsabilidade da instituição. Mas a responsabilização tem nome, endereço e rosto. A maior parte dos torturadores não chegou ao generalato, e isso, na minha opinião, foi um recado”, diz ele, apontando para um indício de que a cúpula do governo militar não era necessariamente apoiadora de tais “excessos”.
Cartilha das sevícias
Se a tortura foi amplamente utilizada, pelo menos de 1964 até 1976, havia um método, uma cartilha, um modus operandi comum?
Marcelo Godoy explica que eram muitas e variadas as técnicas, conforme as especificidades de cada lugar. “Em comum , todos usavam o espancamento e os choques elétricos”, cita.
O cientista político Moraes lembra que os choques eram colocados em várias partes do corpo “e as dores eram aumentadas quando as pessoas tinham seus corpos molhados, o que agravava a descarga elétrica”.
“Além disso, havia a chamada geladeira, que eram quartos como câmaras frias, onde as pessoas entravam e ficavam isoladas, se sentindo com frio. E também as cadeiras do dragão, uma espécie de estrutura em que as pessoas se sentavam, eram amarradas e levavam choques elétricos”, acrescenta. “Além do famigerado pau de arara, que ficou amplamente conhecido. Mulheres eram estupradas, colocadas nuas…”
“Era uma coisa impressionante o que eles faziam”, afirma Diogo. “Os militares achavam que havia um estado de guerra e, por isso, usaram de todos os métodos mais sujos de uma guerra.”
Descrições desses métodos cruéis de sevícias constam de documentos como o livro ‘Brasil: Nunca Mais’, publicado em 1985 como consequência do projeto homônimo, e o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014. Tais detalhes são capazes de revirar estômagos. Conforme frisa o historiador Chaves, “choques elétricos eram aplicados inclusive nos órgãos genitais, as vítimas eram submetidas a afogamentos, privações de sono e de alimentação, tomavam pontapés, socos”, entre outras agressões.
De concreto para nortear o modus operandi, houve um documento chamado Manual de Interrogatório, feito pelo Centro de Informações do Exército, que dava um certo padrão a esse tipo de procedimento. “Nele se fala sobre métodos duros”, comenta Godoy. “Mas, na maioria das vezes, o que temos são eufemismos.”
“Conheço um documento, uma ata de uma reunião do Alto Comando do Exército, de 1975, no qual o comandante do Exército admite o espancamento de um oficial da PM de São Paulo preso pelo DOI-CODI IIº Exército sob a suspeita de ser comunista. Existe outro documento sobre a morte de um sargento da Aeronáutica que foi investigado pelo CISA em que o oficial descreve as torturas aplicadas à vítima e diz que o relato publicado pelos jornais era verdadeiro. São raros os documentos que tratam do tema com sinceridade. Ninguém deixou prova por escrito sobre casos concretos”, acrescenta o jornalista. “O que existe são manuais sobre combate à guerrilha nos quais se diz que os prisioneiros não podem ser tratados segundo as normas da Convenção de Genebra. Não precisam dizer mais nada.”
Para o jornalista Eduardo Reina, pesquisador de crimes praticados pelo regime militar e autor do livro ‘Cativeiro Sem Fim: As histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil’, os métodos foram aperfeiçoados por Fleury e seu grupo, “o que levou o delegado a ganhar destaque na ditadura”.
Em São Paulo, por exemplo, as torturas começaram a ocorrer no quartel do II Exército, no Ibirapuera. “Depois, por causa da grande movimentação de prisioneiros e também do barulho provocado durante as sessões de espancamento e outras mazelas, os militares se viram obrigados a mudar de lugar”, conta. “Foi quando instalou-se o DOI-CODI nos fundos de uma delegacia na rua Tutoia. As instalações foram criadas com auxílio de empresários paulista, que contribuíram financeiramente para formar esse centro de tortura.”
Mas, ele ressalta, havia outros centros de tortura espalhados em sedes militares, além de pontos de tortura clandestina — como uma boate na região de Sorocaba, no interior paulista — e até as próprias delegacias civis. O historiador Leal Chaves lembra que uma residência em Petrópolis, no Rio, também foi “utilizada por muito tempo como centro clandestino de tortura e, muito provavelmente, assassinato”.
“A tortura não ocorria apenas nos equipamentos oficiais do Estado”, acrescenta Moraes. “Também existiam espaços financiados pelos empresários. Este é o outro lado da ditadura brasileira: a participação de empresários no funcionamento e apoio logísticos da tortura.”
Moraes explica que, por mais irônico que possa parecer, essas camadas diferentes da rede do aparelho repressivo podiam resultar em mais ou menos segurança à vítima, a depender do local em que as violações ocorriam. Quando o preso era encaminhado a um prédio ligado ao Estado, ele se inseria em aparato que assegurava um mínimo de visibilidade e segurança que contribuíam para que ele pudesse sair vivo dali; nos aparelhos clandestinos, nenhum limite existia.
Dificilmente um dia saberemos os nomes de todos os criminosos que, travestidos de representantes do poder ditatorial, cometeram violações graves contra os direitos humanos de brasileiros e moradores no Brasil de 1964 a 1985. Eles atuavam muitas vezes protegidos pela falta de registros específicos em documentos, ou mesmo pelo uso de codinomes ou omissões de suas identidades em operações. “Eles agiram sob confidencialidade para encobrir esses fatos”, explica Chaves.
Depois de dois anos e sete meses de trabalhos, a Comissão Nacional da Verdade entregou um relatório de 2 mil páginas em 2014, acusando nominalmente 377 responsáveis por crimes durante o regime ditatorial.
Outros casos ainda podem vir à tona, é claro. “Os acervos do Centro de Informações do Exército e do Centro de Informações da Marinha nunca foram localizados, mas a ditadura militar brasileira deixou muitos acervos que ainda não foram inteiramente pesquisados”, ressalta Carlos Fico. “Esses áudios do STM, por exemplo, estão disponíveis para pesquisa desde 2015. O problema é que a pesquisa histórica dá muito trabalho e os acervos da ditadura militar demandam muito conhecimento do contexto da época para que possam ser devidamente aproveitados.”
Fico conta que já ouviu todos os áudios de 1975 a 1979 — sobre eles, publicou o artigo “Moldura Institucional e Projetos de Institucionalização do Regime Militar Brasileiro“, na revista História, Histórias. Enquanto ouvia o material, ele assinalou “as passagens mais ‘quentes’, as falas escandalosas, pois os ministros se sentiam resguardados em função do caráter secreto das sessões”, comenta ele. “Há muitos outros exemplos. Ainda estou avaliando como divulgá-los. Agora estou ouvindo as sessões de 1979 a 1985 e deverei publicar outro artigo sobre esse período oportunamente”.
Adotando uma perspectiva histórica mais ampla, as pesquisas de Fico situam a atribuição ao STM da tarefa de julgar supostos crimes políticos numa longa tradição de intervencionismo militar na política brasileira, que remonta ao fim da Guerra do Paraguai. “Esse intervencionismo, infelizmente, também acontece hoje em dia. A sociedade é vista por muitos militares como despreparada e o universo da política, como corrompido. Os militares se consideram superiores, com o direito de tutelar a sociedade. Os áudios das sessões de julgamento do STM mostram isso.”
O historiador está escrevendo um livro “sobre a história desse intervencionismo”, que deve ser lançado em dois anos. “Essa minha pesquisa tem natureza acadêmica, até bastante tradicional, porque se trata de uma questão teórico-conceitual: qual era a moldura institucional da ditadura militar brasileira? Por que a manutenção de constituições, em paralelo com leis de exceção, não foi uma ‘contradição’, como sustentam muitos colegas?”, argumenta. “Busquei identificar nos debates orais dos ministros, dos procuradores e dos advogados a tensão entre a aplicação das leis de exceção, os atos institucionais, e a existência de garantias constitucionais.”
PRF chegou a ganhar prêmio em direitos humanos
A morte de Genivaldo Jesus dos Santos numa viatura da PRF é um exemplo de como o negacionismo propagado por algumas autoridades nos últimos anos tem caminhado em paralelo com o afrouxamento de mecanismos institucionais de combate à tortura. Em 2008, a direção da PRF instituiu comissões de direitos humanos nas superintendências regionais do órgão. No ano seguinte, o diretor-geral da PRF, Helio Derenne, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria segurança pública. E, em 2012, Maria Alice Nascimento Souza, a primeira mulher a dirigir a PRF, recebeu outra importante premiação da área, o prêmio João Canuto.
Embora esses prêmios tenham sido ganhos há apenas dez anos, parecem falar de um passado distante. Logo após a morte de Genivaldo dos Santos, reportagens revelaram que, nos últimos anos, policiais egressos da PRF que atuam como professores nos cursos preparatórios para os concursos do órgão falaram abertamente no tema da tortura durante as aulas. Em maio passado, o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, retirou do currículo de formação dos seus agentes as matérias que falavam de direitos humanos e revogou o funcionamento e as competências das comissões de direitos humanos dentro do órgão. O Ministério Público Federal recorreu, mas a PRF não voltou atrás.
Mas os dados e depoimentos coletados pela pesquisa histórica são o antídoto que impede que os revisionismos consigam jogar uma cortina de fumaça sobre a dor dos que foram torturados e dos que perderam para ela seus entes queridos. Manter viva essa memória é a única forma de exorcizar o passado. “Se a cruz se tornou a expressão da resistência do cristianismo, como símbolo de tortura e da morte, o pau de arara devia ser o símbolo da resistência do povo brasileiro”, diz o ativista Adriano Diogo. “Negar que houve tortura no Brasil é como querer negar o Holocausto”, compara Paulo Cunha.
Foto acima: Monumento Tortura Nunca Mais, em Recife. Crédito: Sara Fremberg.