Pesquisa mostra que apoio a separação de Portugal marcou nascimento da opinião pública no Brasil

Estudo analisou dezenas de impressos publicados em seis províncias entre 1808 e 1822. Divulgação de artigos de opinião e de manifestações populares foi muito importante para estimular D. Pedro I a se tornar o primeiro líder da nova nação. Nos estados do Norte e do Nordeste, porém, periódicos também traziam as críticas dos que se opuseram à Independência.

Com o turbilhão de eventos que têm sacudido o Brasil este ano, a efeméride do bicentenário da Independência parece ter deslizado para fora do radar, tanto das autoridades quanto da maior parte da população. Na academia, porém, a data tem servido para motivar tanto reflexões quanto novas pesquisas que permitam ampliar a compreensão sobre o contexto dos eventos que resultaram na dissolução do  Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e no surgimento do Império do Brasil.

O historiador Jean Marcel França, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, câmpus de Franca, em parceria com a doutora em história pela Unesp Amanda Peruchi, tem conduzido uma pesquisa com foco no surgimento da imprensa no Brasil durante o período Joanino. Junto com D. João VI aportou em 1808 no Brasil Colônia a primeira impressora, com o objetivo de produzir a documentação oficial necessária ao funcionamento da máquina burocrática portuguesa. Com o tempo, a Imprensa Real, situada no Rio de Janeiro, começou a publicar também jornais independentes, que alcançaram uma dezena de títulos em 1822.  Paralelamente, chegaram a províncias como a Bahia, Pernambuco e Pará outras máquinas impressoras importadas da Europa, permitindo assim o surgimento e a circulação de jornais e revistas produzidos fora da corte, trazendo a perspectiva das respectivas elites. Nestes 26 impressos, entre revistas e jornais, os cidadãos da Colônia puderam se posicionar contra ou a favor dos diversos eventos dos anos de 1821 e 1822 que culminaram no Brasil independente. “Antes do início da impressão no Brasil, o público leitor de jornais era virtualmente inexistente. O debate sobre a independência foi a primeira manifestação de opinião pública no país”, diz França.

Os resultados da pesquisa vêm sendo publicados em um jornal do Paraná, e devem sair em livro ainda este ano. Na entrevista a seguir, Jean Marcel França e Amanda Peruchi  comentam os resultados da pesquisa e as reflexões que têm ensejado sobre questões como o papel da imprensa, o interesse do brasileiro por suas origens nacionais e os espaços para a produção da opinião pública hoje.  

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Por que a efeméride do bicentenário da Independência motivou vocês a investigar o estado da opinião pública na época?

Jean França e Amanda Peruchi: De maneira geral, partimos de uma ideia que o historiador José Murilo de Carvalho desenvolveu muito bem para analisar a proclamação da República. Ele diz: “olha, as pessoas assistiram à proclamação da República bestificadas. Elas não foram chamadas a participar e levaram um susto, essa é a grande verdade”. Nossa pergunta inicial era  se isso teria acontecido também na Independência. Será que também foi algo que ocorreu meio no susto, e as pessoas assistiram meio bovinamente à proclamação da Independência? O único lugar em que pensamos que poderíamos encontrar a resposta era nos jornais, na imprensa.

E a imprensa estava nascendo no Brasil, foi um fenômeno coincidente. Em 1808 pela primeira vez se permitiu a existência de uma prensa aqui, para editar a tipografia imperial. A partir de 1813, teve início um pequeno processo de diversificação do material impresso. Em 1821, com o fim da censura sobre o que era publicado, realmente a proliferação da imprensa se intensificou. Então a independência do Brasil e a formação da opinião pública foram fenômenos coincidentes. E nós dizemos que o primeiro ensaio da opinião pública no Brasil foi a Independência.

Veja, esse é um país enorme que não se fragmentou, ao contrário do que aconteceu no continente americano, do México para baixo. O Brasil preservou a unidade, um acaso histórico muito peculiar. Isso se deveu a várias razões. Uma delas foi o cristianismo, mas também a figura de Dom João VI foi um fator agregador muito forte. Ele foi um rei muito querido, que fez do Brasil o centro do império.

Tanto os que se manifestavam nos jornais a favor da Independência como os que foram contra não contestavam a fidelidade e o amor a Dom João VI. Veja-se o Maranhão; [a imprensa de lá] não defendia a Independência e sim a submissão às cortes de Lisboa. Mas defendiam Dom João VI.  E no Rio de Janeiro a Independência também se faz clamando a Dom João VI. [ Os jornais] Falavam “o rei nosso querido Dom João VI está lá em Portugal impedido, controlado pelas cortes. Ele desejaria a Independência do Brasil”.

Vê-se que o Dom João teve um papel importante como fator de agregação. E a gente resolveu justamente mostrar que, além desses dois fatores, deveria existir um terceiro componente, que foi a questão da opinião pública. Por alguma razão, se não se incluir a opinião pública no esquema explicativo, parece que ele não funciona muito bem.

Coroação de D. Pedro I. Quadro de Jean-Baptiste Debret.

Sabemos que houve províncias onde a aceitação à Independência só se consolidou no ano seguinte, em 1823. Essa divisão se verificava na opinião pública?

Jean França e Amanda Peruchi: No Sul e no Sudeste do Brasil a adesão à causa da Independência foi bem rápida. Já as regiões Norte e Nordeste  demoraram mais [para aderir]. Durante a maior parte do tempo se colocaram do lado das Cortes portuguesas. Observamos que os jornais de lá traziam muitas reclamações em relação às províncias do Sudeste. Queixavam-se de que os políticos daquelas províncias queriam desempenhar um protagonismo, mas que o protagonismo na verdade deveria ser de Portugal e não do Rio de Janeiro.

Poucas províncias tiveram jornais à época, e entre elas Bahia, Maranhão, Pará, Pernambuco.  Na Bahia, no Maranhão e no Pará houve uma expressão bem característica contrária ao processo de Independência. Em Pernambuco também havia jornais contrários e que depois mudaram de posição, no fim Pernambuco terminou por aderir. Já na Bahia foi preciso a atuação do Almirante Lorde Cochrane, que blefou e disse que dispunha de uma armada. O general Inácio Madeira (comandante das forças militares portuguesas que estavam na Bahia) acreditou e decidiu se retirar para Portugal. Lorde Cochrane ganhou a guerra blefando. Mas, enfim, foi preciso um envolvimento bélico-militar para aplacar a situação, sobretudo nessas três províncias.

Uma viajante inglesa que estava no Brasil em 1822, de nome Maria Graham, diz que essas províncias do Norte e do Nordeste aceitariam bem a Independência se a nova capital ficasse um pouco mais ao Norte; o Rio de Janeiro não era bem visto. Para essas províncias parecia não haver vantagem em estar submetida à corte do Rio de Janeiro ao invés das cortes de Lisboa. E havia certa reticência em relação a Dom Pedro porque ele  representava a elite carioca.

Aliás, havia até mais simpatia por uma ideia de transferir a capital para São Paulo. Isso implicaria tirar o poder de um local que era visto um pouco como uma espécie de Brasília; um centro político que vinha desde 1763, na época do Brasil Colônia, e estava marcado pelo vício da máquina pública, por uma percepção de um estado parasita etcetera.

Esse é um argumento muito forte para as províncias do Norte. Elas falam algo como “olha, se a capital for São Paulo, talvez seja interessante, vamos até conversar”. Mas não foi o que aconteceu. Houve resistência, mas não foi grande. A Independência em si é um ato exitoso, com pouca resistência digamos assim. Houve uma adesão razoável.

Aliás, havia até mais simpatia por uma ideia de transferir a capital para São Paulo. Isso implicaria tirar o poder de um local que era visto um pouco como uma espécie de Brasília; um centro político que vinha desde 1763, na época do Brasil Colônia, e estava marcado pelo vício da máquina pública, por uma percepção de um estado parasita etcetera.

E como atuaram os jornais que eram favoráveis à independência?

Jean França e Amanda Peruchi: Houve um gesto muito inteligente do glorioso José Bonifácio: ele chamou o país a participar do processo de Independência através dos jornais.  Bonifácio estimulava as autoridades das cidades onde se realizavam manifestações e sessões nas câmaras municipais em apoio a D. Pedro que enviassem uma nota relatando o acontecimento para os jornais. Essas notas eram publicadas em conjunto com as assinaturas dos apoiadores, sobretudo pelos jornais do Rio. Foram publicadas centenas de notas assim, vindas de cidades como Itu, Franca, Lorena, de cidades do Rio de Janeiro, Ceará, Mato Grosso, Goiás… As notas diziam coisas como  “o dia do Fico foi importantíssimo, e enviamos cento e tanto assinaturas daqui de nossa cidade em solidariedade à decisão do príncipe”. Essas mensagens começaram a ser publicadas nos jornais num crescendo.

E Dom Pedro se empolgou com essas manifestações. Há cartas dele para o pai em que ele fala “tenho recebido apoios do Brasil todo. E aguardo mais apoios, que têm chegado”. E quando ele viaja para Minas, em 1822, se sente ainda mais  animado. A viagem foi descrita nos jornais, e a viagem posterior a São Paulo também. Durante estas viagens cresce sua confiança de que havia uma sinergia entre ele e a população.

Aclamação de D. Pedro como imperador no Campo de Santana. Quadro de Jean-Baptiste Debret.

É possível perceber se essas manifestações da opinião pública influenciaram as decisões que D, Pedro I foi tomando ao longo desse período de 1821 e 1822

Jean França e Amanda Peruchi: É possível mapear isso. Principalmente na viagem a Minas. Quando ele inicia a viagem está um pouco sem coragem ainda. As descrições das festas que eram feitas para recebê-lo conforme ia passando pelas cidades foram enviadas pros jornais. Há relatos de como foi sua entrada, como foi recebido pela população local, que cada vez mais o apoiava. Pela documentação, dá para perceber o quanto o povo se envolveu com ele, e o quanto ele se sentiu tomado pelo envolvimento do povo conforme entrava e saía das cidades. A viagem fez com que D. Pedro começasse a pensar na possibilidade de abarcar a causa da Independência do Brasil, algo de que os brasileiros, principalmente José Bonifácio tentavam convencê-lo.

E o apoio não era só a ele; o casal real funcionou muito bem nessa hora. Uma das críticas que se fazia à independência é que os dois eram muito jovens. Era uma crítica importante, ainda mais em um lugar onde não havia tradição monárquica.

Mas pelo que a gente leu, houve também muitos textos afirmando que o Brasil era uma país muito grande, e por isso era essencial que seu rei fosse jovem e enérgico. Alguém capaz de percorrer 160 lugares ao longo de uma visita a Minas Gerais, por exemplo. Esse apoio foi muito importante para consolidar o processo de Independência.

Esse tema nos pareceu interessante também porque nós estamos vivendo o contraponto. A opinião pública tal qual nós conhecíamos, elaborada nos jornais e nas praças públicas, está desaparecendo. Os jornais estão falindo. E muitas vezes evocar no texto um formador de opinião — dizer “segundo o especialista da universidade tal”, por exemplo — hoje muitas vezes tem o efeito de afastar o leitor. Ele fecha a matéria, não vai ler mais.

A opinião pública está se divorciando da imprensa . Ela está sendo forjada em outros lugares: na internet, nas redes sociais, num cruzamento meio frenético de mil referências de imprensa. E esse tema nos pareceu atrativo também porque começamos a publicar os resultados dessa pesquisa em uma coluna de jornal, intitulada jornalistas da Independência, na Gazeta do Povo.

O que pode ter acontecido para que, no Brasil da época, a opinião pública tenha se mostrado capaz de aderir tão rapidamente à causa da Independência?

Jean França e Amanda Peruchi: O período joanino foi fundamental, nele foi forjada uma ideia de nacionalidade. Naquele período surgiu um aparato de Estado na forma de uma série de Instituições, como os correios, o Banco do Brasil, um teatro nacional, um jardim botânico… Criou-se uma ideia de nacionalidade que foi fundamental, e que provavelmente se manifestou quando a imprensa veio a lume. E, quando a opinião pública foi requisitada a se manifestar, já trazia esses laivos do período joanino em que foi amadurecendo uma ideia de Brasil, de brasilidade, de nacionalidade.

Essa ideia de nacionalidade é fundamental. Esse é um aspecto sobre o qual pensamos muito. Iniciativas como a agenda 2030, por exemplo, não têm qualquer interesse em discutir as raízes nacionais. Ela é antinacionalista, foca temas globais que são financiados por agências internacionais, etc. Só que a história não tem muita função fora dos princípios da nacionalidade. Isso é uma coisa que estamos descobrindo. Há uma perda de público que se está observando na área de história por exemplo. Não é porque não haja leitores. Eles existem, sim; se se interessarem por um livro, vão ler. Mas os leitores querem saber de coisas que digam respeito à vida deles. E essas grandes lutas, essas grandes agendas não dizem respeito à vida nacional das pessoas.

Porque a história, tal qual a gente conhece hoje, é um fenômeno das nações. O método pode ter variado, as teorias podem ter se diversificado, mas o vínculo entre história e raízes nacionais, ou raízes civilizacionais, esse não se alterou. O desejo de retomar o problema da nacionalidade foi um dos fatores motivadores para a nossa pesquisa. O Brasil ficou independente  em 1822 porque houve um processo, as pessoas aderiram a um sentimento de nacionalidade. Eu ouvi recentemente de um jornalista que ele se sentia reticente em comemorar o bicentenário da Independência porque isso poderia implicar apoio ao governo federal. Eu respondi “você deixou o governo federal sequestrar a sua nacionalidade?” Isso não faz o menor sentido. Governos vêm e vão. A nação não é assim.

Imagem acima: A proclamação da Independência, 1844, quadro de François-René Moreaux.