Mia Couto receberá título de Doutor Honoris Causa pela Unesp no próximo dia 7

"Uma semelhante homenagem diz muito sobre as excepcionais qualidades do homenageado, mas é também eloquente a respeito da instituição que o homenageia", escreve professora de Literatura Portuguesa da Unesp em artigo que analisa trajetória do jornalista, professor, biólogo e escritor moçambicano.

No próximo dia 7 de junho, o escritor, jornalista, professor e biólogo moçambicano Mia Couto será agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. A honraria acadêmica, a maior conferida pela Unesp, foi concedida pela notabilidade de sua literatura, sua contribuição à língua portuguesa e a ênfase em seus livros das regiões e culturas de Moçambique. A cerimônia acontecerá no Memorial da América Latina, em São Paulo, a partir das 15h.

No artigo a seguir, a docente Sandra Aparecida Ferreira, que é professora assistente de Literatura Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Assis, apresenta a trajetória do autor africano, explanando sua imensa contribuição para a literatura em língua portuguesa e aquela produzida na África, sem no entanto abrir mão do caráter de universalidade que é a marca dos grandes criadores.   

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António Emílio Leite Couto ( 1955), filho de emigrantes portugueses, nasceu na cidade de Beira, em Moçambique, e ainda menino autonomeou-se Mia Couto, por afinidade com os gatos. Seu primeiro poema, dedicado ao pai, foi publicado aos 14 anos, no jornal Notícias da Beira. Aos 17, começou a cursar Medicina, em Lourenço Marques (atual Maputo), mas abandonou o curso em 1974, para empenhar-se, via imprensa, na luta pela independência de seu país. Militante da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), não pegou em armas e assumiu o jornalismo como forma de ação efetiva. Do líder revolucionário Samora Machel, o jovem Mia Couto ouviu esta sentença decisiva: “O país que não conhece a sua história é um país pobre e está fadado à morte”.

A atuação jornalística de Mia Couto ocupou uma década de trabalho árduo, quando dirigiu a Agência de Informação de Moçambique (AIM), atuou na revista Tempo e no jornal Notícias. Em 1985, trocou o jornalismo pelo curso de Biologia e, mais tarde, tornou-se professor de ecologia terrestre na Universidade Eduardo Mondlane. Cuidou, em 1992, da preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca e, em 1996, foi um dos fundadores da empresa de consultoria ambiental Impacto. Em 2015, com seus irmãos, Armando e Fernando Amado, inaugurou uma Fundação que leva o nome de seu pai: Fernando Leite Couto, poeta, jornalista e editor. Essa Fundação, em Maputo, é hoje uma pujante instituição cultural, promovendo ações artísticas, educacionais e filantrópicas. Mantém uma editora, voltada em especial para a publicação das novas gerações de autores moçambicanos, e dispõe de galeria de arte e biblioteca pública, bem como de uma atrativa programação de eventos.

O vínculo com a experiência histórica e social reveste sua obra literária de uma moçambicanidade representativa, sem que Mia Couto deixe, porém, de ser  um escritor sem fronteiras e de qualidade universal. Suas formas de apropriação da realidade criam processos estéticos em todos os níveis da língua portuguesa, por meio de usos desviantes. Tanto é assim que, na recensão crítica aos contos de Vozes Amanhecidas (1986) para a prestigiada Revista Colóquio/Letras (n°. 110/111, 1989), o africanista Manuel Ferreira afirma ser o processo de escrita desses contos “um desafio, tanto mais que vem ao desencontro da prática de muitos anos de jornalismo do próprio Mia Couto”. Assinalando a entrada em cena de um prosador invulgar,  Ferreira o celebrou como um marco de maioridade da literatura moçambicana e fez um vaticínio certeiro: “Tudo concorre, em definitivo, para anunciar um notável escritor, que, sendo ainda jovem, por ora mal se poderá adivinhar até onde irá chegar; mas bem longe é, certamente!”.

Poesia e Prosa

Essencialmente poeta em todos os âmbitos de sua atuação, Mia Couto publicou  Raiz de orvalho, o primeiro livro de poesia, em 1983. Depois, publicou também prosa curta de excelente qualidade, além do primeiro e decisivo romance: Terra sonâmbula (1992), considerado um dos melhores livros africanos do século 20. Embora bom poeta, é a prosa que o consagra. Decorridos quase quarenta anos de carreira literária, tem agora publicada uma obra extensa, com títulos de poesia, crônicas, contos, romances, textos de intervenção, literatura infanto-juvenil – gêneros diversos unificados pela força real da poesia de Mia Couto. Amplamente premiado, publicado em dezenas de países, com obras adaptadas para o teatro e o cinema, é uma referência de topo entre os escritores de língua portuguesa contemporâneos.

A literatura de Mia Couto, enraizada simultaneamente no mundo elemental e na história, resulta de uma genuína formulação textual, cujo efeito é um todo inusitado e fortemente expressivo. Espaço de transfiguração da experiência e da linguagem, sua escritura brota de uma sociedade de oralidade  linguisticamente fértil (embora desde a Independência o português seja a língua oficial, mais de 25 línguas são faladas em Moçambique). A  experimentação dos limites da língua portuguesa por Mia Couto decorre de uma vivência marcadamente local, amalgamada às raízes portuguesas de seus pais emigrados e, provavelmente, às vozes literárias com que experimenta afinidades, a exemplo do angolano Luandino Vieira e de Guimarães Rosa.

Uma encantadora prosa poética, repleta de imaginário popular, permite a Mia Couto revitalizar mitos e crenças e representar vivamente o processo de miscigenação e aculturação decorrente do colonialismo português em África

Uma encantadora prosa poética, repleta de imaginário popular, permite a Mia Couto revitalizar mitos e crenças e representar vivamente o processo de miscigenação e aculturação decorrente do colonialismo português em África, como no romance Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (2002), em que, retornando a sua ilha natal, um estudante percebe-se como forasteiro, porque adquirira hábitos dos brancos na cidade. A abertura para a íntima beleza das coisas e para os mundos subjacentes ao nosso é permanente na obra de Mia Couto, ao modo do que se descobre na leitura de O Último vôo do flamingo (2000), cujo enredo foca um  imediato pós-guerra civil, quando soldados das Nações Unidas estão em Moçambique para acompanhar o processo de desarmamento e, inexplicavelmente, explodem. Isso dá motivo a uma fascinante busca às causas daquele estranhíssimo efeito, na qual se ancora uma crítica acerba aos agentes, externos e internos, da guerra e da miséria em África.

As imprevisíveis narrativas de Mia Couto tendem a apresentar um comprometimento com as camadas mais desprotegidas da sociedade e com as marcas traumáticas das duas guerras, a colonial e a civil. Há histórias povoadas por crianças, mulheres, doentes, velhos, bêbados, expressivamente nomeados, como a menina Infelizmina, o cego Estrelinho e Tia Tristereza, personagens de  Histórias Abensonhadas (1994). Fundindo duas palavras (abençoadas + sonhadas) em uma nova, e ainda mais potente, o título celebra e qualifica narrativas que, mesmo envoltas pelas mágoas da guerra, guardam o desejo inadiável de reinventar o mundo. No magistral Terra Sonâmbula (1992), sonhar, apesar das circunstâncias mais atrozes, era já uma ação indispensável à sobrevivência. Esse romance de forte impacto, ambientado na guerra civil moçambicana, narra duas exemplares histórias de fugitivos de guerra, situadas em diferentes tempos: no presente, a fuga do conflito empreendida por Tuahir e Muidinga; no passado, a viagem do garato Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros que dariam cabo do mal que feria sua terra, tudo narrado em um dos mais hipnotizantes registros da língua portuguesa.

A leitura das narrativas de Mia Couto amplia o horizonte de nossa compreensão com histórias formadoras e revolucionárias. Em 2008, em expedição para estudos ambientais no norte de Moçambique, o biólogo ouviu relatos sobre ataques a pessoas por leões famintos. O escritor transfigurou essa experiência em um narrativa fascinante, repleta de peripécias em que se fundem fatos e lendas e se estabelecem relações complexas entre as personagens . Aqui, destaca-se também um tema caro a Mia Couto, o da opressão às mulheres moçambicanas, representantes de tantas mulheres no mundo. O cruzamento de linhas temáticas candentes e a justaposição de realidade e magia geram um torvelinho de violências e exclusões, mas também de claros movimentos de subversão, como se percebe desde a tocante abertura do romance:

Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar.

Na ficção de Mia Couto, o insólito e o sobrenatural, inscritos no destino da comunidade, remetem continuamente à sacralidade da vida. Somados às qualidades de  fabulação, composição de personagens e registro narrativo poético, respondem pela boa recepção dos leitores ao autor moçambicano. Se o prosador fascina, o poeta Mia Couto encanta, graças a um lirismo surpreendente, porque atento à íntima relação entre os componentes do mundo, num impulso contínuo de contemplação e compreensão. Sua lírica irmana-se à de Manoel de Barros no apreço às grandezas diminutas, às extrapolações do verbo e às miragens da infância. Repletos de evocações telúricas e afetivas, seus tópicos são animados por uma imaginação dada a brincriações, a exemplo do poema a seguir, de Vagas e lumes (Lisboa: Caminho, 2014), cujas palavras dão vida ao inanimado, invertem escalas e humanizam o incomensurável:  

O menino, a casa e a árvore

Eu era pequeno,

a árvore era grande,

a casa era infinita.

A casa era de terra,

a árvore era céu

e eu era véspera de viagem.

A árvore voava,

a casa nascia

e eu só sabia ser ninguém

No escuro da casa,

o quarto crescia.

Sob o lençol,

a árvore sonhava.

Na minha cama,

O universo dormia.

Intervenção e Honoris Causa

Convém lembrar ainda da junção das forças de conhecimento do biólogo e do poeta para analisar e criticar o mundo contemporâneo. Seus textos de intervenção fazem lembrar a definição do escritor, segundo Elias Canetti, como um servo do seu tempo, interessado por tudo e não intimidado por tarefa alguma. Em conferências, ensaios, discursos, entrevistas e outras manifestações, o cidadão Mia Couto vale-se do longo alcance de sua  projeção intelectual e artística para ser moralmente útil à sociedade, posicionando-se firmemente sobre questões cruciais não só para os moçambicanos, mas também para a humanidade. Sapatos sujos e peúgas furadas (metáforas para um conjunto de reflexões sobre comportamentos desfavoráveis à dignidade humana), infelizmente, parecem calçar os pés do mundo, como se percebe, por exemplo, em “Quebrar armadilhas” (intervenção no Congresso de Leitura – COLE, Campinas, 2007, posteriormente publicada em E se Obama fosse africano? e outras intervenções):

[…] Sou biólogo, trabalho nas zonas rurais e não há vez nenhuma que não seja assaltado pelo receio de pisar o chão. As minas antipessoais são produzidas por países que se reclamam da civilização e dos direitos humanos. Algumas dessas nações proclamam-se mesmo campeãs na luta contra o terrorismo e as armas de destruição em massa. Mas recusaram-se sempre a assinar o acordo para o banimento desta insidiosa forma de terrorismo que todos os dias mutila e mata mulheres, crianças e homens inocentes nos países pobre.

No consistente arrazoado com que solicita a atribuição do título de Doutor Honoris Causa a Mia Couto pela Unesp, o professor Trajano Sardenberg, da Faculdade de Medicina de Botucatu, afirma que os ensaios do escritor, em razão de sua abrangência reflexiva, deveriam ser leitura recomendada a todos os estudantes universitários brasileiros. O professor Sardenberg, dado o rigor inerente à outorga de um título Honoris Causa pela Unesp, destaca que “a pessoa a receber há de ser universal e de se encontrar ao lado, lado a lado, em conjunto, com os seres humanos”.

 Elevado requisito,  integralmente atendido pelo laureado:  “só me interessa ser famoso nesse sentido: o nome que eu possa ter presta um serviço, serve para alguma coisa, é posto a serviço de outros”, diz, com justiça, sobre si no excelente documentário  Sou autor do meu nome – Mia Couto (dir. Solveig Nordlung, 2019). A palavra de Mia Couto, carregada de lúcida inquietação crítica, tem atuado firmemente contra várias das misérias dos nossos dias, seja repudiando a violência xenofóbica sofrida por moçambicanos na África do Sul, seja posicionando-se contra o genocídio dos indígenas Guarani-Kaiowá no Brasil, ou mobilizando-se, por meio da Fundação Fernando Leite Couto, para socorrer os tantos afligidos, em 2019, pelo ciclone Idai, um dos mais devastadores a atingir Moçambique.

Há muitas razões para alegria com a outorga do título referido a Mia Couto em 07 de junho de 2022. Uma semelhante homenagem diz muito sobre as excepcionais qualidades do homenageado, mas é também eloquente a respeito da instituição que o homenageia.

Há muitas razões para alegria com a outorga do título referido a Mia Couto em 07 de junho de 2022. Uma semelhante homenagem diz muito sobre as excepcionais qualidades do homenageado, mas é também eloquente a respeito da instituição que o homenageia. Em um país onde celebrações a torturadores e milicianos têm sido recorrentes e cujas florestas são continuamente saqueadas e destruídas, o reconhecimento ao jornalista, escritor e biólogo moçambicano é, sem dúvida, um alento abensonhado. Eleger Mia Couto Doutor Honoris Causa representa, em suma, uma declaração de princípios humanísticos, em defesa da arte, da ciência e da vida por parte da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Sandra Aparecida Ferreira é professora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Assis.