Em 2021, o setor do agronegócio brasileiro bateu seu recorde histórico de exportações. Foram US$ 120,5 bilhões, ou o equivalente a 43% das exportações brasileiras, que permitiram que a balança comercial brasileira fechasse o ano com um saldo favorável da ordem de US$ 61 bilhões. Mas estes números se tornam ainda mais impressionantes quando comparados com os cerca de US$ 24 bilhões que o país exportou em 2001. Esse crescimento, de mais de US$ 95 bilhões em duas décadas, reflete uma expansão que vem transformando o Brasil em diversas esferas, e uma das mais visíveis é o meio ambiente.
O clima quente do país exige a utilização, em grandes quantidades, de defensivos agrícolas, a fim de proteger as lavouras de pragas e de ervas daninhas. E estes defensivos podem gerar impactos significativos sobre a flora e a fauna. Desde meados dos anos 2000, toda uma linha de pesquisa na Unesp, liderada pelo biólogo Osmar Malaspina, tem procurado investigar o impacto dos defensivos sobre as populações de abelhas, animais que desempenham um serviço ambiental fundamental para a manutenção tanto das matas quanto das próprias lavouras. Essas pesquisas têm se mostrado fundamentais para estabelecer parâmetros e criar caminhos para que produtoes agrícolas, apicultores e as populações desses insetos possam conviver da melhor forma possível, nas fazendas e áreas de vegetação.
A partir de meados dos anos 2000, apicultores de diferentes partes do país começaram a relatar a morte de colmeias inteiras de abelhas, às vezes literalmente da noite para o dia. Os produtores inicialmente apontaram o dedo para os defensivos agrícolas usados nas monoculturas. O raciocínio era que, durante o processo de polinização, as abelhas se contaminavam e após o retorno à colmeia intoxicavam o restante do grupo. O resultado era a morte rápida de colmeias com milhares de indivíduos em um período entre 24 e 48 horas.
Quando os primeiros relatos ganharam a mídia, em 2005, Malaspina foi convidado pelos dois lados a investigar as mortes. Há mais de 40 anos ele se dedica à ecotoxicologia das abelhas, uma área que estuda os efeitos tóxicos das substâncias em organismos vivos. “Os apicultores me procuraram para entender o que estava acontecendo com suas colmeias. As empresas de defensivos também me procuraram, porque estavam sendo responsabilizadas pelas mortes das abelhas”, explica o docente.
Projeto de investigação começou com desconfiança
Embora a morte de abelhas em apiários possa ocorrer em virtude de fome, doenças ou mesmo pelo manejo inadequado, Malaspina explica que a mortalidade de colmeias inteiras em períodos curtos de um ou dois dias levantava uma suspeita grande sobre os inseticidas aplicados pelos agricultores. Para determinar as causas de forma rigorosa, foi proposto aos fabricantes dos defensivos, em 2014,o financiamento de um projeto chamado Colmeia Viva que, em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), realizou um levantamento dos casos de mortalidade de abelhas no estado de São Paulo. “Eu fui criticado pelos apicultores por aceitar a parceria com essas empresas porque não havia muita confiança nelas. Então propus que o relatório final seria público e que o primeiro órgão a recebê-lo seria o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Todas as empresas concordaram e esse acordo foi cumprido”, lembra o professor da Unesp no câmpus de Rio Claro.
Ao longo de quatro anos de projeto, uma empresa terceirizada visitou apiários em que eram registradas mortes massivas de abelhas, aplicavam um questionário sobre a condição do apiário, observavam as demais culturas no entorno e recolhiam amostras das abelhas mortas. As amostras eram então analisadas em laboratório pelos pesquisadores e um relatório era enviado às partes envolvidas. Ao todo, apicultores de 80 cidades do estado de São Paulo cujas abelhas morreram em grandes quantidades foram visitados durante o projeto.
O resultado da pesquisa publicado em 2017 mostrou que em 67% das amostras de abelhas mortas coletadas foram encontrados registros positivos de produtos químicos. O resultado, entretanto, pode ser considerado conservador, uma vez que o projeto trabalhou com apenas 44 dos mais de 600 princípios ativos usados em inseticidas. “Se o agricultor usasse um inseticida que não estivesse na lista, o equipamento não conseguia pegar”, explica Malaspina. “Além disso, o apicultor em geral não visita diariamente o apiário. Muitas vezes, quando a equipe recebia a notificação, a abelha coletada já estava morta há muito tempo e a substância do inseticida já estava degradada, não sendo possível fazer a detecção”.
Os resultados comprovaram a responsabilidade dos defensivos agrícolas na mortandade de abelhas e colocaram os diferentes atores envolvidos na pesquisa diante da responsabilidade de propor soluções que reduzissem os prejuízos para todos os produtores. “Embora os agricultores argumentem que uma produção intensiva de monocultura em um país tropical, e portanto sujeito a diversas pragas, seja inviável sem o uso de defensivos agrícolas, é essencial a preservação de polinizadores e a garantia do direito dos apicultores a uma fonte de renda a partir da produção do mel”, argumenta o biólogo.
Regras de boa vizinhança
A partir de 2017, o projeto Colmeia Viva passou então a se dedicar à orientação e promoção de boas práticas agrícolas para agricultores e apicultores, de forma a viabilizar o convívio entre as duas culturas numa mesma região. A iniciativa foi chamada Plano Nacional de Boas Práticas e tinha como objetivo estimular uma relação produtiva entre as duas partes tendo como ponto de partida a informação e a adoção de práticas que não prejudicassem a cultura vizinha.[ver infográfico]
“Muitos colegas defendem que os inseticidas deveriam ser proibidos, mas acho esta uma opção inviável para o contexto brasileiro. Defendo um meio-termo”, argumenta Malaspina. Neste sentido, seu grupo de pesquisadores, organizado ao redor do Laboratório de Ecotoxicologia e Conservação de Abelhas realizou diversos projetos na direção de descobrir os principais problemas dos sistemas produtivos e mitigar a mortalidade de abelhas.
Entre as iniciativas estava a conscientização dos produtores sobre o serviço ambiental promovido pelas abelhas na polinização das culturas. O pesquisador explica que as culturas podem ser divididas em três tipos quanto à dependência das abelhas: para as culturas não dependentes, a polinização é em geral realizada pelo vento ou por outras espécies animais, e a ausência de abelhas praticamente não impacta a produção. Alguns exemplos são a cana-de-açúcar, o milho, o trigo ou o eucalipto. Já as culturas beneficiadas possuem uma dependência modesta das abelhas e sua ausência pode impactar até 40% da produção, como é o caso da amora, do tomate, da laranja ou da soja. Por fim, as culturas dependentes podem sofrer perda de até 100% da produção na ausência das abelhas. É o caso do abacate, do melão, da melancia ou do maracujá.
Cientes dessas informações, os produtores envolvidos no projeto passaram a organizar e alinhar com os apicultores do entorno a aplicação dos defensivos. Malaspina relata, por exemplo, a experiência de proprietários rurais no Ceará que alteraram a rotina da fazenda em função das abelhas. “Produtores de melão deixaram de aplicar defensivos com avião e passaram a usar o trator. Além disso, aplicavam apenas durante a noite, até às 4h da manhã, porque a flor do melão dura apenas um dia e se ela não for polinizada nesse momento, a planta não produz o fruto”, explica.
A aplicação por avião, destaca o pesquisador, representa uma preocupação extra. Segundo Malaspina, o crescimento dos episódios de mortandade de abelhas no estado de São Paulo coincide com a adoção por parte dos agricultores deste tipo de aplicação. Estima-se que, atualmente, mais de 24% da área plantada no país seja pulverizada por aviões. “Entre as ações do projeto foi criado um sistema de treinamento para pilotos de aviões para melhorar a qualidade da aplicação e evitar que o inseticida caia sobre mata em que estão as abelhas”, destaca Malaspina. “Antigamente, o avião aplicava o defensivo também em diversas partes de mata contíguas à plantação. Hoje já existem aplicativos que controlam e aumentam a precisão da aplicação, evitando que ela ocorra fora da área em que está a cultura”.
Proteger as abelhas aumenta também a produtividade da lavoura
As boas práticas para aplicação por avião foram objeto de um manual desenvolvido em parceria com a Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura). Embora essa cultura tenha capacidade de se autopolinizar, as flores são extremamente atraentes para as abelhas e a sua presença tem o potencial de aumentar a produção de laranjas em 35% e o peso dos frutos em 22%. No manual desenvolvido pelo projeto há orientações sobre boas práticas, formas corretas de aplicação em terra e até mesmo detalhes sobre as condições climáticas adequadas para aplicação aérea, evitando presença de ventos fortes ou dias muito úmidos, que favorecem o espalhamento das gotículas.
Ainda que o projeto Colmeia Viva tenha tido sucesso em comprovar a responsabilidade dos defensivos agrícolas na morte massiva de abelhas, principalmente no estado de São Paulo, e estimulado o diálogo entre agricultores e apicultores de forma que ambos se beneficiem da interação entre suas culturas, Malaspina avalia que a situação das abelhas ainda é motivo de preocupação e estamos longe de “virar o jogo”, no que diz respeito a assegurar a sobrevivência do inseto no Brasil, que é superpotência na produção de alimentos.
No que diz respeito aos dois principais grupos diretamente envolvidos com o projeto, agricultores e apicultores, Malaspina acredita que houve uma melhora na relação e no entendimento da importância na manutenção das abelhas. “No começo do projeto, houve muitos atritos entre as duas partes. Na medida em que o projeto cresceu, as empresas cumpriram seus acordos e produtores rurais e criadores de abelhas dialogaram, esse atritos diminuíram, mas ainda existem”, afirma.
Atualmente, Malaspina não está mais diretamente envolvido com o projeto. Sua atuação tem se dado principalmente na forma de palestras, em que explica a importância dos insetos e relata a origem da iniciativa. O projeto é conduzido pelo Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), entidade que representa as empresas fabricantes de agrotóxicos, e que tem expandido a atuação do Colmeia Viva para outros estados brasileiros. O sindicato também tem adotado recursos digitais para ampliar o alcance da iniciativa, como o uso de aplicativos de alertas sobre ocorrência de mortes de abelhas e a divulgação de vídeos online sobre boas práticas e importância da polinização pelas abelhas.
Episódios com mortalidades massivas de abelhas ainda vêm sendo registrados pelo país. E existe todo um grupo de abelhas nativas, sociais ou solitárias, igualmente responsáveis pelo serviço de polinização das plantas, mas que ainda precisam ser mais bem estudadas quanto aos efeitos causados pelo contato com agrotóxicos. Esse inclusive é um dos objetos de pesquisa de um projeto que o grupo vem desenvolvendo desde 2018, com o apoio da Fapesp.
Ainda assim, avalia o professor, o projeto Colmeia Viva conseguiu alguns feitos importantes. Em 2017, o grupo foi convidado pelo Ibama a realizar consultoria para a elaboração do Manual de Avaliação de Risco Ambiental de Agrotóxico para Abelhas. O documento tem como objetivo apresentar as bases da avaliação de risco a organismos não-alvo e apoiar o órgão nas decisões sobre a liberação do seu uso no país. Atualmente, o órgão tem conversado com o professor de Rio Claro para a elaboração de protocolos a serem seguidos por fiscais da vigilância sanitária que atendem a chamadas de mortalidades de abelhas, informando formas apropriadas de coleta das amostras, por exemplo. “É importante que a pesquisa e o trabalho realizado no âmbito do projeto estejam se consolidando na forma de políticas públicas”, celebra o docente.
Imagem acima: Igor Vertusko/DepositPhotos