O Cinturão de Asteroides é um conjunto de corpos celestes localizado entre as órbitas de Marte e Júpiter que abriga em torno de 470 milhões de asteroides. Existe neste grupo, contudo, um estranho no ninho: o planeta-anão Ceres. Com quase 1.000 quilômetros de diâmetro e concentrando um terço da massa total do Cinturão, Ceres possui formato arredondado e baixa densidade, características pouco comuns entre seus vizinhos asteroides, em geral menores e mais densos.
As diferenças não param por aí. Em 2007, a missão espacial Dawn, da Nasa, registrou imagens da superfície de Ceres e o que apareceu nas fotos só aumentou as diferenças em relação aos demais corpos do Cinturão. Viam-se poucas crateras, por exemplo, em comparação com o asteroide Vestas, que foi outro destino da missão. Também foi constatada a presença de água, algo raro naquela vizinhança.
A singularidade de Ceres gera debates entre os astrônomos desde sua descoberta, em 1801, pelo italiano Giusepe Piazzi. Durante meio século, foi classificado como planeta. Na década de 1860, foi reclassificado como asteroide. Em 2006, uma decisão da União Astronômica Internacional (UAI) criou o grupo dos planetas-anões, com o objetivo de diferenciar alguns corpos celestes que, embora fossem muito semelhantes aos planetas, ainda guardavam algumas particularidades próprias. Ceres foi um dos três corpos celestes que ganharam esta denominação.
Mas, para além das definições, o avanço no conhecimento de Ceres fomentou outros questionamentos. Há tempos a comunidade científica busca explicar a presença de um corpo tão distinto no Cinturão de Asteroides. Um grupo de pesquisadores da Unesp no câmpus de Guaratinguetá acaba de propor uma resposta em artigo publicado recentemente na revista Icarus, dedicada a estudos do Sistema Solar. O texto é produto de um projeto temático financiado pela Fapesp com o objetivo de estudar a relevância dos pequenos corpos em dinâmica orbital.
Além da linha de gelo
No cenário proposto pelos pesquisadores, a jornada de Ceres começa cerca de 4,5 bilhões de anos atrás, quando o Sistema Solar ainda estava se estruturando. Os planetas gigantes Júpiter e Saturno já existiam, e estavam separados por distâncias inferiores às que vemos hoje, enquanto Urano e Netuno ainda estavam em processo de formação. Além deles, havia também outra classe de pequenos corpos celestes chamados planetesimais. Os planetesimais se formaram nas fases iniciais do Sistema Solar e serviram como uma espécie de blocos de construção do que hoje são os planetas, asteroides, cometas etc.
Ceres seria um desses planetesimais, mas formado em uma região mais distante, além da linha de gelo. A linha é uma espécie de referência que marca o início da região mais fria do Sistema Solar. Uma das características dessa região é a presença de água em estado sólido e a abundância de amônia, substâncias que acabaram incorporadas à superfície de Ceres.
À medida que esses planetas gigantes se formaram, suas órbitas sofreram deslocamentos, se aproximando e se distanciando do Sol. Esse processo resultou em intensa agitação nos corpos ao seu redor. ”A fase de formação dos planetas gigantes não foi nada tranquila”, explica Rafael Ribeiro, autor principal do artigo e especialista na formação do Sistema Solar. “Ocorriam colisões colossais entre os corpos precursores que mais tarde formariam Urano e Netuno. Além disso, a forte perturbação gravitacional que os planetesimais sofriam, causada pelos planetas, acabou por espalhar estes objetos pelo Sistema Solar”, diz Ribeiro, que tem sua bolsa de pós-doutorado financiada pelo programa CAPES-PrInt.
Nesse ambiente caótico, Ceres teria se deslocado das áreas mais externas e geladas para o ponto que hoje conhecemos como Cinturão de Asteroides, levando consigo a amônia e a água que são comuns naquela zona. “Vejo Ceres como uma espécie de retirante que deixou a região distante do Sistema Solar para terminar em uma área mais próxima do Sol”.
De onde pode ter vindo a água na Terra?
Para comprovar a hipótese, os pesquisadores rodaram diversas simulações computacionais da formação dos planetas gigantes e incluíram uma coleção de objetos similares em tamanho e composição química de Ceres. Para contar essas diferentes “histórias”, os pesquisadores tomaram como base um período anterior ao Modelo de Nice, o mais aceito entre os astrônomos para explicar a última fase de formação do Sistema Solar. “O Modelo de Nice começa em um momento em que os planetas gigantes, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno já estão inteiramente formados, próximos do Sol e em órbitas compactas. Nosso modelo de formação contempla um período um pouco anterior, em que Urano e Netuno ainda estão se formando a partir de colisões gigantescas entre eles”, esclarece Ribeiro.
Estudos anteriores realizados a partir da observação de crateras e tamanhos de outras populações de objetos localizados além de Saturno, como no Cinturão de Kuiper, estimaram a existência de no mínimo 3.500 objetos do tipo Ceres no passado. Estas constatações também foram incorporadas ao trabalho realizado na Unesp. “Nosso principal resultado indicou que, com este número de objetos, há uma certa probabilidade de que um deles possa ser transportado e capturado para o interior do Cinturão de Asteroides seguindo uma órbita muito similar à órbita atual de Ceres”, afirma.
Mais do que apenas responder a dúvidas sobre a origem de Ceres, a investigação desenvolvida pelos pesquisadores do câmpus de Guaratinguetá abre uma janela para o entendimento de outro mistério do espaço: a origem da água da Terra. Algumas hipóteses hoje consideram que a água teria chegado até nós trazida por esses corpos, localizados nas regiões mais externas do Sistema Solar, que teriam colidido com o nosso planeta. “Este modelo pode ser um ponto de partida para investigar, por exemplo, quantos objetos poderiam ter colidido com a Terra, e se seria estatisticamente viável a possibilidade de que alguns deles teriam trazido água daquela região”, diz Ribeiro.
Foto acima: imagem de Ceres captada pela sonda Dawn, com efeitos de colorização. Crédito: NASA/JPL-CalTech/UCLA/MPS/DLR/IDA.