Um estudo de autoria do astrônomo brasileiro André Izidoro está colocando em xeque algumas das ideias mais tradicionais sobre a formação do Sistema Solar e, de quebra, ajudando a encontrar novas respostas para antigas questões envolvendo o surgimento dos planetas. A pesquisa, fruto de uma colaboração de Izidoro com colegas de universidades dos EUA, França e Alemanha, foi publicada em dezembro na revista científica Nature Astronomy.
A pesquisa de Izidoro sugere que, nos primeiros milhares de anos durante o processo de formação do Sol, nossa estrela estaria circundada por três anéis concêntricos, repletos de detritos de gelo e poeira, com tamanhos e características distintos. Estes anéis, posteriormente, teriam dado origem aos diferentes corpos situados em diferentes regiões e que são responsáveis pela configuração, ou arquitetura, que observamos no Sistema Solar hoje.
Como explicar Marte e os asteroides?
Os modelos desenvolvidos pelos astrônomos para explicar o surgimento do Sistema Solar estipulam que o Sol e os planetas se formaram quase ao mesmo tempo, a partir de uma nuvem de gás e de detritos de gelo e poeira, que coalesceram para formar nossa estrela e os demais corpos que a circundam. Partindo dos dados coletados por observações telescópicas, esses modelos sustentam a existência de uma espécie de ‘disco’ de matéria ao redor da estrela durante os seus primeiros milhões de anos de existência. Este disco, acreditava-se, era contínuo, e a matéria abrigada em seu interior se distribuía de forma homogênea.
Porém, vários dados observacionais não se adaptam bem a esse modelo. Um exemplo está nas características do planeta Marte, cuja massa é cerca de dez vezes inferior à da Terra. É difícil explicar uma diferença de massa desta ordem se a matéria estivesse distribuída de forma uniforme no disco. Inspirado por estas e outras incongruências semelhantes entre teoria e dados empíricos, Izidoro mergulhou nos estudos de simulação computacional, procurando encontrar mecanismos que pudessem levar à formação da configuração do Sistema Solar e de seus corpos, tais como os vemos hoje.
Um dos grandes desafios das teorias tradicionais era explicar o Cinturão de Asteroides, localizado entre Marte e Júpiter, que marca a fronteira entre a parte interior e a parte exterior do Sistema Solar. Estudos sobre a composição química dos asteroides revelaram que eles guardam importantes diferenças entre si. Alguns têm uma assinatura química mais semelhante à de Marte, sugerindo que se formaram próximo a esse planeta, enquanto outros apresentam uma composição química que indica que teriam se formado além de Júpiter. O problema é que atualmente esses asteroides estão ocupando uma mesma região: o cinturão. Isso é bastante intrigante e um desafio para as teorias tradicionais.
Mais questões também surgiram a partir da observação de sistemas estelares distantes. Os astrônomos ainda não entendem bem por que, no Sistema Solar, não temos as chamadas superterras, nome dado à classe de planetas rochosos cujo raio equivale a até quatro vezes o raio do nosso planeta, e cuja massa é de 15 a 20 vezes maior. Essa ausência causa espanto, porque as superterras estão presentes em 30% dos sistemas com estrelas semelhantes ao Sol. Alguns estudos sugerem que, na realidade, esse número pode chegar a até 90%.
O trabalho de Izidoro envolve a reconstituição de possíveis cenários do passado para tentar explicar esta e outras características do Sistema Solar. “Eu usei simulações computacionais para tentar reproduzir a formação e evolução do Sistema Solar desde quando o Sol era muito jovem e os planetas ainda estavam começando a crescer a partir da aglomeração de grãos de poeira com tamanhos de alguns milímetros. Minhas simulações modelam os diferentes processos físicos que fizeram com que esses grãos de poeira crescessem até o tamanho atual dos planetas, da ordem de alguns milhares de quilômetros. Nós precisamos variar diversos parâmetros físicos até chegarmos às condições que melhor reproduziam o Sistema Solar.”
Inspiração pelas imagens do ALMA
Uma das fontes de novas descobertas sobre os sistemas de planetas que orbitam outras estrelas é o radiotelescópio ALMA, localizado no Deserto do Atacama, no Chile. Com uma estrutura gigante, que combina diversas antenas para a captação de ondas de rádio vindas do espaço, este telescópio conseguiu fornecer imagens mais nítidas de estrelas jovens cercadas por anéis separados (figura abaixo), e não por um único disco uniforme, como os pesquisadores antes imaginavam.
A observação destes anéis foi a fagulha que estimulou Izidoro a buscar um novo ponto de partida para suas reflexões, estipulando a existência de três anéis. “A ideia é a seguinte: os planetas terrestres (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte) se formaram em um desses anéis, que era localizado próximo a onde estamos hoje. Marte é pequeno porque cresceu na ‘borda’ do anel, e Mercúrio também. Por crescerem na borda, havia menos material disponível, então naturalmente eles ganharam uma dimensão menor”, explicou.
Cada anel abrigaria materiais com composições químicas distintas, e em diferentes quantidades. O anel interior – onde a Terra está – abrigava menor quantidade de material, enquanto o anel do meio e o mais externo continham quantidades de massa algumas dezenas ou até centenas de vezes maiores.
Izidoro explica que, caso não houvesse uma separação espacial entre os anéis e o material estivesse concentrado apenas na forma de um enorme disco – tal como pressupõem as teorias hoje mais aceitas –, a matéria mais afastada tenderia a, com o passar do tempo, se aproximar do Sol. Se isso realmente ocorresse, o resultado seria um grande acúmulo de massa na região mais interior (próxima de onde a Terra atualmente se encontra), o que poderia ocasionar o surgimento de superterras e de planetas gigantes como Júpiter.
Todavia, isso não ocorreu. “Alguma coisa bloqueou esse fluxo e, por consequência, a Terra não dispunha de material para que pudesse crescer mais. Por isso não se tornou uma Superterra”, diz Izidoro. E o que pode ter causado este bloqueio? “Os anéis”, defende Izidoro. “Eles são ‘armadilhas’ para os grãos da formação planetária; confinam a poeira numa certa região de onde não consegue sair, e não migra para o Sistema Solar Interno (onde ficam os quatro primeiros planetas).”
Uma vez que grande parte do material disponível teria ficado retida no anel intermediário, sem completar a migração para a região mais interna, isso explicaria por que os maiores planetas do Sistema Solar (Júpiter, Saturno, Netuno e Urano) estão justamente na região onde antes existiu esse anel, diz Izidoro.
Esse modelo também pode explicar as diferenças encontradas na composição dos asteroides existentes no cinturão: eles não compartilhariam uma única origem. Alguns teriam se formado a partir de material que estava originalmente no primeiro anel, principalmente nas cercanias de Marte, que está mais próximo da região onde ficaria a borda deste anel. Outros se originaram de material oriundo do anel intermediário, e que estava, em sua maioria, nas cercanias de onde se formou Júpiter. Para Izidoro, o cinturão de asteroides pode ser comparado a uma ‘caçamba espacial’: “É como se você estivesse fazendo uma construção e fosse jogando as sobras em uma caçamba em frente à sua casa. Sobrou algum material ali da região do anel de Marte e caiu na ‘caçamba’. E quando Júpiter estava crescendo no anel do meio, ele e Saturno espalharam material daquele anel em todas as direções. Parte desse material chegou ao cinturão de asteroides, criando uma mistura. Assim se consolidou essa região, cujos objetos apresentam composições químicas diferentes”.
A origem dos anéis
Outro desafio do modelo é explicar como teria se formado a arquitetura de anéis ao redor do Sol. O pesquisador brasileiro acredita que a ocorrência de ‘choques de pressão’ em pontos específicos ao redor do Sol terminou por agrupar a matéria em diferentes regiões do Sistema Solar. Na prática, estes choques de pressão têm efeito semelhante ao de uma ‘lombada’ ou ‘quebra-molas’, interrompendo o fluxo dos grãos de matéria e dos gases em direção ao Sol e concentrando-os em faixas específicas de espaço – os anéis.
Como a pressão do gás nesses pontos é maior, o resultado é que, uma vez nessas regiões, os grãos de poeira não conseguem espiralar em direção à estrela. Grãos de poeira espiralam em direção à estrela porque o gás do disco gera uma espécie de vento que freia o grão. Numa zona de alta pressão esse vento desaparece e o grão para de espiralar. Consequentemente, com o tempo, mais matéria se acumula nestas regiões e, a partir da ação da gravidade, a massa começa a se agrupar formando asteroides, planetesimais e, por fim, planetas. “É como se fosse um efeito de compressão, um colapso, e isso permite passar de uma coleção de partículas pequenas para um asteroide do tamanho de São Paulo”, compara Izidoro.
E os principais choques de pressão, na teoria de Izidoro, estão em três pontos do Sistema Solar: a “linha de sublimação do silicato”, a “linha de sublimação da água – H2O” (ou linha do gelo) e a “linha de sublimação do monóxido de carbono – CO”. Sublimação é o nome dado ao processo físico em que ocorre diretamente uma passagem do estado sólido para o estado gasoso. Isso gera liberação de vapor, aumentando a quantidade de gás no ambiente, o que eleva a pressão local. Essa elevação súbita de pressão gera o “choque de pressão”. Teria sido justamente nas proximidades de cada um destes pontos onde se verificaram estes choques de pressão que ocorreu a formação dos anéis.
Dificuldades para a carreira científica no Brasil espantam pesquisadores
A maior parte da carreira acadêmica de André Izidoro ocorreu na Unesp. Entre 2003 e 2013, a universidade foi a casa de sua graduação em Bacharelado em Matemática Aplicada e Computacional (São José do Rio Preto) e de seu mestrado e doutorado em Física (Guaratinguetá). Mesmo após experiências internacionais nos EUA, no período do ‘doutorado sanduíche’, e na França, para dois pós-doutorados, o brasileiro retornou, em 2016, como pesquisador no Grupo de Dinâmica Orbital & Planetologia, com seu orientador de mestrado e doutorado, Othon Cabo Winter.
Ganhou então a bolsa e os auxílios de ‘Jovem Pesquisador’ da Fapesp, que lhe permitiram continuar desenvolvendo seus estudos. O auxílio garantiu uma estabilidade de quatro anos, cotas de bolsas para orientar alunos de iniciação científica e mestrado, acesso a recursos para comprar equipamentos computacionais e participar de congressos no exterior, além da possibilidade de dar aulas na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá da Unesp (FEG).
Quando se aproximou o fim do período do auxílio, Izidoro se viu sem opções para continuar o trabalho. “Como estava no fim do projeto, a melhor opção foi sair do Brasil novamente e esperar as coisas melhorarem, ou ficar de vez no exterior.” Foi então que surgiu uma oferta de trabalho na Universidade Rice, dos EUA, e o pesquisador partiu em maio de 2020. Manteve-se, porém, como colaborador do Grupo de Dinâmica Orbital & Planetologia da Unesp de Guaratinguetá.
Para Othon Winter, que foi seu orientador na pós-graduação em Guaratinguetá, o caso de Izidoro não é excepcional, mas sim um sintoma do desmonte da ciência no Brasil nos últimos anos. E ele não acha que se trate apenas dos reflexos de um momento econômico conturbado. “Em outras décadas também tivemos problemas de falta de concursos e poucos recursos financeiros. Mas a ciência e a pesquisa eram valorizadas e respeitadas pelo governo. A situação atual é muito pior porque a gente vive um momento de anticiência por parte de governos e pessoas que deveriam defender a ciência.”
Ele cita as experiências de outros estudantes talentosos que decidiram não prosseguir na pesquisa. “Posso citar três alunos meus que desistiram da carreira científica. Não porque não gostassem, mas por medo do futuro. E tenho outros ex-alunos no exterior também. Um está na Espanha, outro na Alemanha, porque é o que tem. E eles dizem que sentem saudades do Brasil, gostariam de voltar. Mas não vão voltar, não dá pra saber o que aconteceria aqui. Lá onde eles estão é mais estável.”
Imagem acima: zzoplanet/Deposit photos