Previsão de debate sobre lei de cotas raciais é oportunidade para introduzir mudanças, dizem estudiosos

Críticos apontam necessidade de aperfeiçoar elementos como mecanismos de suporte à permanência de estudantes e separação entre cotas raciais e sociais. E apontam as importantes transformações que a presença dos cotistas está desencadeando na universidade.

O texto da lei 12.711, que instituiu a obrigatoriedade da adoção do sistema de cotas raciais e para o ingresso nas instituições federais de ensino superior, prevê que, transcorrida uma década de sua promulgação, sua eventual continuidade seja objeto de debate.

O pensamento dos redatores da lei (que só ganhou a forma definitiva em 2008, após quase dez anos de discussões), ao estipularem este prazo, era caracterizar o sistema de cotas como um mecanismo temporário, que fosse  adotado apenas enquanto permanecessem as sérias disparidades raciais que permeiam a sociedade brasileira. Para os adversários das cotas, esta discussão, a ser travada em agosto, será a oportunidade de dar cabo do que veem como uma vantagem ilegítima dada a alguns grupos sobre outros. Porém, mesmo entre os defensores das políticas afirmativas, há quem defenda que este é o momento de adotar mudanças no modelo, visando aprofundar o processo de integração de pretos e pardos.

Os primeiros passos para o debate no Legislativo já foram dados. Segundo estimativa feita pelo pró-reitor de assuntos comunitários e políticas afirmativas da Universidade Federal do ABC (UFABC),  Acácio Sidinei Almeida Santos, divulgada num debate on-line organizado pela Unesp em setembro de 2021, tramitam hoje no Congresso 50 a 70 projetos de lei sobre o tema. O teor dos projetos varia desde a simples prorrogação da lei 12.711, por períodos variáveis, passa pela incorporação de dispositivos que possam aperfeiçoar as ações afirmativas e chega à interrupção imediata desta política.  

Críticas e sugestões de aperfeiçoamento já estão circulando, muitas delas fundamentadas em quase duas décadas de estudos e de observações sobre as dificuldades experimentadas pelos alunos cotistas.

O desafio da permanência

Para Régis Elisio, integrante do Observatório da População Negra, é preciso avaliar objetivamente quais foram as garantias oferecidas para assegurar que os programas de inclusão realmente funcionassem, depois que foram implementados. “Refiro-me às condições de permanência do aluno na universidade após o ingresso. Se o público-alvo poderia ser efetivamente atendido pelas condições que estão sendo oferecidas, e em que medida. Por mais espinhosa e constrangedora que seja essa discussão, a gente precisa passar por ela”, diz.

Mário Sérgio Vasconcelos, professor de psicologia do desenvolvimento no câmpus de Assis e Coordenador de Permanência Estudantil da Unesp, concorda com a importância de assegurar uma estrutura de apoio ao aluno que ingressa por cotas. “Hoje quase 5 mil alunos são auxiliados na Unesp. Desses, sem auxílio com certeza 70% simplesmente cairiam fora da universidade. Porque o ato de abrir vagas em si é uma canetada. A questão é como garantir permanência”, diz Vasconcelos, que também é um dos autores de uma pesquisa sobre desempenho acadêmico dos estudantes cotistas da Unesp.

“Um projeto de inclusão sem um programa robusto de permanência estudantil, com várias modalidades de auxílios, como moradia e alimentação, morre na praia. É como se fosse um hotel 5 estrelas com porta giratória: o estudante chega, dá uma olhadinha e sai.”

Mário Sérgio Vasconcelos

No atual cenário de restrição econômica, os meios para garantir a permanência podem experimentar um refluxo no curto prazo. Angélica Minhoto, professora da Unifesp que foi pró-reitora de graduação entre 2013 e 2017, não acredita que o debate do Legislativo possa resultar em um retrocesso na política de ingresso. “Mas as cotas são só o começo da história”, diz ela. A docente destaca que, uma vez que “está havendo um enorme retrocesso em relação ao financiamento” das universidades públicas de maneira geral, prejudicando verbas de pesquisas, bolsas de pós-graduação etc.,  é no campo das condições concretas para sustentar sua execução que as ações afirmativas estão realmente sob ameaça.

Repensar os mecanismos de inclusão e permanência de negros e indígenas

Em entrevista ao portal da Universidade de Brasília publicada em 2018, o antropólogo José Jorge de Carvalho, que se tornou conhecido como proponente da adoção do mecanismo de cotas pela UnB ao lado da colega Rita Laura Segato, criticou a legislação atual. Na mira de Carvalho está o texto da lei, que destina aos estudantes negros uma parte do total de vagas que é originalmente reservado para os alunos egressos do ensino médio na escola pública.

“Apesar de seu inegável impacto, a Lei de Cotas para o Ensino Superior contém falhas em sua formulação, levando inclusive a retrocessos diante de modelos de cotas raciais como o da UnB”, declarou.

 “Defendo a necessidade de se manter, separadas e articuladamente, as cotas raciais, as cotas para baixa renda e as cotas para escola pública. É preciso que a lei reflita a complexidade das dimensões de discriminação e desigualdade, e não subsuma a pauta, mais que justa, das cotas para negros à condição de escola pública e de baixa renda. Espero ser possível, no futuro, revisar a lei para otimizar os seus efeitos”, disse Carvalho.

Essa desvinculação das cotas étnico-raciais das vagas reservadas aos estudantes de ensino médio oriundos da escola pública já está acontecendo em iniciativas para a inclusão de estudantes indígenas. Algumas instituições passaram a oferecer vestibulares, vagas e até cursos destinados exclusivamente a este público.

Ainda em 2003, a UnB criou, em parceria com a Funai, um processo seletivo específico para indígenas que contempla também aqueles que cursaram o ensino médio em escola particular, desde que tenham tido bolsa integral. Uma iniciativa interessante teve início em 2001, quando indígenas do estado do Paraná ganharam a possibilidade de concorrer ao Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná, que oferece vagas em oito universidades estaduais, sendo que a UFPR aceita candidatos também de outros estados.

Outra vertente foi implantada também em 2001 pela Universidade do Estado do Mato Grosso. A instituição criou duas graduações diferenciadas para professores indígenas que atuam em aldeias, a Licenciatura intercultural indígena e a Pedagogia intercultural indígena. E desde 2008, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) oferece também um vestibular indígena, com provas feitas em diversas cidades do Brasil, a fim de facilitar a captação dos candidatos. Em 2019, a Unicamp também começou a oferecer um vestibular indígena, e este ano as duas universidades vão oferecer um processo seletivo comum, que será aplicado nas cidades de Bauru (SP), Campinas (SP), Dourados (MS), Manaus (AM) e São Gabriel da Cachoeira (AM). A Unicamp oferecerá 130 vagas, e a UFSCar disponibilizará até duas vagas para cada um dos 65 cursos.

Para Edmundo Peggion, professor associado da Unesp e colaborador da pós em antropologia social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tanto as iniciativas focadas em cursos de licenciatura quanto aquelas que abrem espaço para indígenas em todas as graduações são positivas. “Mas penso que a abertura de vagas em todos os cursos, com vestibular específico e ampla política de permanência é mais interessante”, diz.

Porém, no caso dos estudantes indígenas, é preciso pensar estas políticas de permanência de forma mais ampla. Peggion explica que o afastamento dos indígenas de suas comunidades de origem para cursarem a universidade exige atenção ainda maior aos temas da permanência, acolhimento e assistência psicológica.

“A passagem da aldeia para o câmpus é uma mudança muito radical”, aponta Peggion. “Os jovens que vêm para a universidade são intelectuais, mas colocamos para eles um desafio que não colocamos para nós mesmos, o que seria muito enriquecedor.” Ele aponta a questão das diferenças culturais como algo a ser explorado e mais bem manejado pelas instituições de ensino. “Vejo o ideal de inclusão indígena como o estabelecimento de diálogo entre mundos diferentes, em que não se trata o conhecimento que eles têm como um saber menor.”

Participação de alunos cotistas tem levantado novas questões sobre a universidade

A chegada dos alunos cotistas à vida acadêmica nos últimos 20 anos tem gerado uma série de novos questionamentos e reivindicações, que envolvem desde a pouca participação de pretos e pardos na pós-graduação e na docência até os temas e autores escolhidos para fundamentar as ementas das disciplinas.

Embora as cotas tenham hoje alcance e abrangência bastante significativos entre os discentes de graduação, ainda há muitos desafios quando se trata da pós-graduação e da docência. Segundo o Censo da Educação Superior de 2016, por exemplo, as mulheres pretas e pardas com doutorado não chegam a 3% do total de docentes da pós-graduação no país.

Jorge Felipe Marçal, doutorando em Educação da UFRJ e membro de seu conselho universitário como representante da Associação de Pós-Graduandos, chama atenção para o fato de que os alunos cotistas vêm lutando por renovação dos autores acadêmicos abordados na grade. “Com a entrada dos coletivos negros na universidade, a gente também vem pressionando por recobrar a memória da intelectualidade acadêmica negra histórica no Brasil, que é muito apagada pelo racismo. Estamos cobrando modificações nos currículos”, diz.

Para Cláudia Araújo Silva, doutoranda da Unifesp e pesquisadora do desempenho dos alunos cotistas, as universidades e seus currículos formais já foram atropelados pela realidade. “Os novos estudantes estão lá, tensionando o currículo, não estão esperando ele mudar.” Um exemplo do poder de gerar mudanças destes grupos é a incorporação da professora Elena Brugioni ao curso de literatura da Unicamp. Formada em letras modernas na Universidade de Bologna (Itália) e professora de literaturas africanas comparadas e estudos pós-coloniais, ela entrou na universidade paulista em 2016 após uma demanda de estudantes por docentes que se dedicassem à área.

“A história do meu concurso é um pouco isso, uma exigência discente. Tenho muitos alunos que são cotistas e isso tem me dado muita satisfação, porque são pessoas que têm o interesse em valorizar e ver reconhecidas essas literaturas, culturas e teorias. As ações afirmativas são as políticas que realmente vão mudar o Brasil”, analisa.

O alcance das políticas afirmativas vai muito além de sua aplicação restrita na admissão de universitários. Nos últimos anos, a sociedade brasileira se abriu muito mais ao leque de conhecimentos produzidos pelas pensadoras e pensadores negras, negros e indígenas do país, e também de fora. A presença significativa dessas pessoas na universidade resulta em demanda por representatividade, por mudanças em conteúdos curriculares, e pelo reconhecimento de sua produção intelectual.  “A mudança na sociedade brasileira é visível”, diz o historiador Sidney Chalhoub, professor da Unicamp e da Universidade Harvard. “Estamos caminhando, apesar de todas as dificuldades e do longo caminho que ainda há a percorrer. A política de cotas ajuda a criar um círculo virtuoso. Ganha o país, ganha o mundo do conhecimento”, diz Chalhoub.

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Imagem acima: estudante durante prova para o vestibular indígena da Unicamp. Crédito: Antoninho Perri/ SEC Unicamp.