Estudos mostram efeitos benéficos de sistema de cotas raciais sobre a universidade pública brasileira

Segunda reportagem de série especial mostra que aumento da inclusão e da diversidade aconteceu sem perda de qualidade acadêmica. Pesquisa pioneira da Unesp avaliou todos os ingressantes entre 2014 e 2018 e não viu diferença significativa de desempenho entre cotistas e não cotistas.

Na noite de 26 de abril de 2012, após dois dias de um julgamento que deixou parte do Brasil de respiração presa, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, rechaçar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, proposta pelo partido Democratas (DEM) que contestava a legitimidade do regime de cotas raciais adotado pela UnB para o acesso à universidade. A ação, apresentada em 2009, acusava a política adotada pela UnB de violar os princípios constitucionais de igualdade, de dignidade da pessoa humana, de repúdio ao racismo, de meritocracia e do direito universal à educação. No texto, chegava a empregar a expressão “Tribunal Racial” para atacar, de forma veemente, a comissão da UnB responsável por identificar os candidatos autodeclarados como negros.

Ao se posicionarem através da leitura de seus votos, os integrantes do tribunal apresentaram diversos argumentos para defender a constitucionalidade e o caráter estratégico do sistema de cotas adotado pela UnB. Ricardo Lewandowski,  relator do processo, afirmou que o sistema estabelecia um ambiente acadêmico plural e diversificado, e tinha o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas. Ele ponderou que os meios empregados e os fins buscados pela universidade eram marcados pela “proporcionalidade” e “razoabilidade” e que as políticas eram transitórias, prevendo uma revisão periódica de resultados. Luiz Fux destacou que a Constituição impõe uma reparação de danos pretéritos do Estado em relação aos negros, já que entre os objetivos fundamentais da República está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ayres Britto, à época presidente do tribunal, disse que a Constituição legitimou todas as políticas públicas que buscam promover setores sociais desfavorecidos.

O julgamento, no STF, da constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela UnB, em 2012

O posicionamento do STF abriu caminho para que, após 13 anos de debates, o poder legislativo promulgasse uma norma regulamentando a adoção de um sistema de cotas étnico-raciais para o acesso a instituições federais de educação superior. O Projeto de Lei 73/1999 instituiu a reserva de, no mínimo, 50% das vagas de cada turno e de cada curso das instituições federais de ensino superior para os estudantes que tivessem cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Metade desta metade foi reservada a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Ainda daquela metade, uma proporção variável por estado deveria ser preenchida por autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência – no mínimo, respeitada a proporção da população que se declarava dentro destas categorias, na unidade da Federação onde se situava a universidade ou instituto federal. A referência para cada estado viria dos dados do censo do IBGE mais recente disponível.

O PL 73/1999 foi votado na Câmara dos Deputados e no Senado. No Senado a votação ocorreu na noite de 7 de agosto, em regime de votação simbólica (sem declaração de voto individual). O único voto contrário manifestado foi do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que considerou a proposta uma “violência à autonomia das universidades” e a imposição de uma “camisa de força”. O PL 73/1999 foi sancionado na forma da lei 12.711, publicada no Diário Oficial da União em 29 de agosto. O texto estabelecia que a lei deveria ser submetida a uma revisão após o transcurso de dez anos. Este prazo se encerra, então, em agosto deste ano.

Os argumentos apresentados pelo DEM junto ao STF, assim como as ponderações do ex-senador tucano em seu voto contra a lei de cotas, expressam apenas uma parte da chuva de críticas que foi despejada sobre as propostas de políticas de ações afirmativas nas universidades quando elas começaram a ser debatidas, no início do século. Outros opositores sustentavam que a inclusão de pretos, pardos e pobres no ensino superior derrubaria o nível acadêmico; que a adoção de cotas exclusivamente sociais bastaria para promover a inclusão; ou, ainda, que seria mais lógico adotar outros modelos, como a bonificação por pontos a certos grupos considerados prioritários, sem que fosse preciso recorrer à reserva de vagas. Porém, após uma década de vigência da lei 12.711, já há pesquisas sobre os efeitos da adoção do sistema de cotas nas instituições públicas de ensino superior, tanto federais quanto estaduais, capazes de desconstruir essas críticas.

Cotas sociais ou bônus bastariam para promover inclusão racial?

“Antes da lei 12.711, as universidades federais de Uberlândia (UFU) e a de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, adotaram as chamadas cotas sociais, porque entendia-se que, ao oferecer vagas para pessoas em situações de vulnerabilidade econômica, pertencentes a famílias de baixa renda, automaticamente o problema do racismo seria resolvido”, conta Régis Rodrigues Elisio, mestre em história social pela UFU, professor-pesquisador do Observatório da População Negra da Universidade Zumbi dos Palmares e docente de educação básica da rede estadual paulista.

“Mas o que se vê a partir dos resultados das seleções é que solucionar a questão de classe não resolve o problema da raça, porque estamos tratando de estruturas diferentes. O racismo faz com que as pessoas negras, ainda que em situação econômica equiparada (negros pobres comparados a brancos pobres), sofram maior exclusão escolar. Uma coisa não corresponde à outra. Por isso damos nomes distintos a elas. Para combater o racismo, precisamos de políticas de promoção de igualdade racial. E para promover ações voltadas contra a pobreza, você adota ações voltadas à realidade sócioeconômica. Se não são problemas iguais, é preciso adotar tratamentos diversos.”

Adriana Alves confirma essa percepção. “O que eu mais ouvia na USP era a crítica pretensamente sofisticada da superioridade das cotas sociais sobre as raciais. Respondo assim: todos os relatórios do Inep mostram que se você for ranquear os alunos de mesma escola, mesma cercania, mesmo índice de vulnerabilidade econômica, primeiro vão ficar, em desempenho, as meninas brancas, depois os meninos brancos, depois as meninas negras e por último os meninos negros.”

Um estudo dos economistas Renato Schwambach Vieira, da UnB, e Mary Arends-Kuenning, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA), avaliou mudanças no perfil de alunos nas universidades federais antes da lei 12.711, entre os anos de 2004 e 2013.

A pesquisa analisou dados de estudantes calouros aprovados em 48 universidades federais de todo o país. Os pesquisadores tomaram por base informações sociais e pessoais apresentadas pelos estudantes do primeiro ano do curso universitário que se inscreveram no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), entre elas raça, renda familiar e escola onde cursaram o ensino médio. No total, foram examinados os dados de 170.555 estudantes, classificados como brancos, pretos, pardos, amarelos ou indígenas, aprovados em 37 carreiras de 1.025 diferentes programas de graduação, e que se submeteram ao ENADE entre 2004 e 2010.

Uma vez que a maior parte do período estudado antecedia a promulgação da lei 12.711, as universidades federais eram consideravelmente livres para adotar ou não ações afirmativas para facilitar o ingresso em suas fileiras. Além disso, também possuíam autonomia para estabelecer seus próprios critérios, que podiam ser sociais, raciais, uma combinação de ambos ou seguir outros indicadores. Na amostra selecionada, 34 instituições adotaram alguma ação afirmativa. Destas, 20 adotaram a cor da pele como indicador de seleção, sendo que destas 17 adotaram também critérios sócio-econômicos. Apenas três universidades adotaram somente critérios raciais.

Ao comparar os dados de ingresso das universidades que adotavam critérios étnico-raciais e sociais em suas políticas de ação afirmativa com  os das instituições que optavam apenas por indicadores sociais, a dupla de pesquisadores  demonstrou que no primeiro grupo houve um aumento de quase 20% na presença de estudantes pretos e pardos em suas salas de aula, enquanto que no segundo grupo o crescimento foi de apenas 1% (veja arte abaixo).

Outro resultado interessante do estudo foi a comparação entre programas que focam estudantes de escolas públicas com outros onde esse parâmetro é combinado, também, com o aspecto racial. A análise, porém, mostrou que os modelos que focam os alunos de escola pública apenas não são mais eficazes para promover o ingresso de estudantes pretos e pardos. “Os alunos de escola pública estão nas faixas mais pobres de distribuição de renda. O aumento de sua inclusão é positivo”, disse Vieira em entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 2021. “Mas os melhores alunos dessas escolas, que normalmente ingressam através das cotas, em geral são mais brancos e têm mais renda do que a média. Isso provavelmente explica os resultados que encontramos.” Além disso, as políticas que usavam renda como critério juntamente com o fator da raça, também se mostraram mais eficazes do que os sistemas que faziam a clivagem exclusivamente pela renda familiar (veja abaixo).

Para evitar a adoção do sistema de cotas, desde 2004 a Unicamp oferecia um sistema de bônus, na forma de pontos extras contabilizados no vestibular, a estudantes oriundos de escolas públicas e a pretos e pardos por meio do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS). A política de bonificação acabou sendo  substituída pela de cotas em 2017 porque a primeira não estava atingindo a representatividade da população negra (só avançou de 18,9% em 2005 para 21,8% em 2016). Em 2019, primeiro ano dos sistemas de ingresso com cotas étnico-raciais, 35,1% de pretos e pardos entraram na Unicamp. Segundo o IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Trimestral, 1º trimestre de 2020), a população negra soma 40,6% dos 46 milhões de habitantes do estado de São Paulo.

As cotas derrubaram a qualidade acadêmica?

Mário Sérgio Vasconcelos, Eduardo Galhardo, Fernando Frei e Edgar Bendahan Rodrigues, da Faculdade de Ciências e Letras (Assis) da Unesp, publicaram há pouco mais de um ano o estudo “Desempenho acadêmico e frequência dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão da Unesp”.

A Unesp foi a primeira das universidades estaduais paulistas a estabelecer um sistema de cotas raciais, em 2013, como foi discutido na primeira reportagem desta série. O modelo adotado pela Unesp estipula que 50% das vagas para cada curso de graduação e turno devem ser destinadas a alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. E destas 50%, 35% são reservadas a pretos, pardos e indígenas.

Um aspecto metodológico diferenciado desse estudo é que não usou uma amostra, mas analisou dados da totalidade dos ingressantes. Foram vasculhados e sistematizados os dados referentes à população total de estudantes ingressantes na Unesp em cada um dos anos entre 2014 e 2018. As informações foram extraídas de um banco de dados oficial com 35.294 estudantes e 52 variáveis. Neste período, a Unesp ofereceu 38.525 vagas de graduação. Destas, 13.258 foram destinadas a estudantes oriundos da escola pública, e destas, 4.531 foram reservadas a pessoas que se declararam como pretos, pardos ou indígenas.

O estudo mostra que, entre 2013 e 2018, o percentual de alunos da Unesp oriundos do ensino público passou de cerca de 40% para 54,4%. Entre o grupo de pretos, pardos e indígenas, o percentual passou de cerca de 12% em 2014 para 18% em 2018.

Ao comparar o coeficiente médio de rendimento dos ingressantes na Unesp entre 2014 e 2017, a conclusão do quarteto – empenhado a dar continuidade à análise nos próximos anos – é clara: “Os dados coletados indicaram que não há diferenças relevantes de rendimento acadêmico entre os estudantes que ingressaram na Unesp pelo sistema universal e aqueles que ingressaram pelo sistema de reserva de vagas [veja tabela].”

O estudo também pondera que, quando a análise é feita agrupando os cursos segundo sua demanda social, surgem algumas diferenças com relação ao coeficiente os ingressantes oriundos das cotas raciais e da escola pública. “Tais dados podem indicar que é necessário o oferecimento de mais suportes aos alunos para a vivência universitária e a permanência estudantil, especialmente para egressos da escola pública em cursos de baixa demanda social”, escrevem os autores.

Outra avaliação do impacto das cotas no desempenho das universidades vem através de um relatório técnico recente, divulgado em 2 de dezembro de 2021 pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência, vinculado à Universidade Federal de São Paulo). O estudo teve como foco estudantes do ensino superior das áreas de educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia e zootecnia, que participaram das provas do ENADE em 2013 e em 2019 (o mais recente), e procurou rastrear o impacto do sistema de cotas raciais sobre a performance acadêmica do corpo discente de diversas instituições federais de ensino.

Dentre as instituições públicas federais, foram selecionadas 6, e outras 6 particulares a título e comparação. Para monitorar a qualidade da performance dos alunos foi adotada a nota do exame de conhecimento específico do ENADE, que é realizado a cada três anos.

As análises, realizadas por Maria Angélica Pedra Minhoto, Cláudia Guedes Araújo Silva, André Luiz Dias Vieira, Rafael Andrade e Victória Lopes, demonstraram que em 5 das 6 federais, e em todas as particulares, houve um crescimento da nota média obtida pelos estudantes de saúde. Na UnB, ela passou de 52,25 para 55,30; na Universidade Federal Fluminense, de 22,6 para  55,47; Na Universidade Federal do Pará, de 43,21 para 47,11; Na Universidade Federal de Santa Catarina, de 50,03 para 57,64; e na Unifesp, de 35, 56 para 54,16. Na única que registrou decréscimo, a Universidade Federal da Paraíba, a redução foi de menos de meio ponto. Ou seja, após a adoção das ações afirmativas,  a maior parte das instituições “teve um ganho na nota média da prova de conhecimentos específicos”, escrevem os autores.

“O que os dados mostram é que quando a universidade pública abriu as portas e ampliou a diversidade, ela melhorou”, diz Angélica Minhoto, que foi pró-reitora de graduação da Unifesp entre 2013 e 2017. “Nossa revisão bibliográfica também demonstrou que muitos trabalhos acadêmicos esperavam que o cotista desempenhasse pior, e muitas vezes seus autores escrevem, contra os dados, como se o desempenho fosse pior, seguindo um dogma de que necessariamente o cotista vai contaminar a universidade excelente”, complementa Cláudia Silva, mestre em psicologia escolar pela USP e doutoranda em educação pela Unifesp. “Nos surpreendeu esse discurso sutil mas bem presente em trabalhos que analisamos. Ficou claro o quanto esses estudos necessitam de um falseamento da realidade.”

Resistência a cotas não acabou

Mas os preconceitos e resistências a essa nova universidade ainda são muito grandes. “Você pode andar dentro da USP, da Unicamp, da Unesp e ainda vai encontrar muita gente que é contra as cotas. Você fala com uma pessoa que não leu nada sobre o assunto e ela julga ter argumentos fortíssimos de que as cotas são um equívoco. Por isso que nós temos de dar subsídio, com pesquisa, para ir quebrando essas opiniões pré-concebidas e preconceituosas que foram naturalizadas”, diz Mário Sérgio Vasconcelos, que dirige a Coordenadoria de Permanência Estudantil da Unesp.

Ainda no campo das análises quantitativas, um dado interessante tem sido revelado pelo Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), uma ferramenta criada pelos economistas Michael França, Sergio Firpo e Alysson Portella, do Insper, para o jornal Folha de S.Paulo, com o objetivo de medir a exclusão que pretos e pardos sofrem em estratos privilegiados, como a fatia da população com diploma universitário. A metodologia do indicador se baseia em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD). O índice é um número que pode oscilar entre -1 e 1, em que zero equivale a um cenário no qual a presença de brancos e negros reflete exatamente seu peso em determinada população e resultados negativos indicam que os negros estão sub-representados.

Segundo o Ifer, o Brasil reduziu o desequilíbrio entre brancos e negros com ensino superior completo nas duas primeiras décadas deste século em 36%. A queda no Sudeste foi de 29%. Nesta região, a mais desigual e a que progrediu menos, os pretos e pardos de 30 anos ou mais com ensino superior completo somam 23 de cada 100 habitantes dessa faixa etária. O equilíbrio seria atingido com a proporção de 43 a cada 100.

Ou seja, ainda há muito a ser feito. Além de ignorar os séculos de escravização que constituem um marco e uma chaga da história brasileira, os apressados pelo fim da política de cotas também fecham os olhos para os dados das últimas décadas. Se a régua é a proporcionalidade, está evidente que a tarefa ainda não foi concluída.

A despeito de todo o acúmulo de uma série de pesquisas atestando o sucesso da política de cotas e desmontando argumentos contrários, paira o receio de que a revisão da lei 12.711, no segundo semestre, possa ter desfechos desagradáveis.

Reportagem anterior: Após dez anos da lei que instituiu cotas raciais nas universidades federais, país se prepara para optar entre continuidade ou desmonte da política pública.

Foto acima: estudantes na Universidade de Brasília. Crédito: Marcelo Cassal Jr/ Agência Brasil