A energia nuclear voltou a entrar no horizonte do futuro energético do Brasil, ainda que de forma discreta. Várias iniciativas foram adotadas pelo governo federal para incrementar o setor, tanto do ponto de vista da infraestrutura como administrativo. Segundo declarou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em fins de novembro, o objetivo é expandir até cinco vezes a capacidade de geração de energia elétrica por via nuclear. Ele atribuiu a retomada de investimentos no setor ao “processo de transição energética em busca de uma economia de baixo carbono”, tendo como horizonte a busca mundial pela diminuição da emissão de gases do efeito estufa. Albuquerque estimou que, até 2050, 60 milhões de brasileiros poderiam ser abastecidos pela eletricidade gerada por usinas nucleares.
A iniciativa mais recente, anunciada em 6 de janeiro, foi a assinatura de um convênio entre o Ministério de Minas e Energia e o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (CEPEL) para selecionar locais para a construção de novas usinas. Ela se soma a outras medidas adotadas ao longo do último ano, que incluíram a retomada da produção de urânio, após um hiato de cinco anos, com a instalação da Mina do Engenho em Caetité, na Bahia; o reinício das obras da usina nuclear de Angra 3, paralisadas desde 2015; a criação da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN) para “monitorar, regular e fiscalizar as atividades e instalações nucleares no país”; a inauguração de uma nova cascata de enriquecimento de urânio no Rio de Janeiro; e o anúncio de planos para começar a construir uma nova usina nuclear, antes mesmo que se completasse a usina de Angra 3, que ficaria pronta até 2031.
Todas essas medidas estão dentro do contexto do Plano Nacional de Energia 2050, aprovado em dezembro de 2020 pelo Ministério de Minas e Energia (MME). O documento prevê o aumento de até cinco vezes da oferta de energia nuclear dentro da matriz elétrica brasileira nos próximos 30 anos — atualmente, as duas usinas em funcionamento têm, juntas, uma potência de aproximadamente 2 GW (gigawatts). A meta é alcançar uma capacidade de geração entre 8 e 10 GW no período estipulado, e a conclusão de Angra 3, prevista para o fim de 2026, promete acrescentar 1,4 GW de potência.
Contudo, embora o movimento de apostar na energia nuclear como alternativa sustentável esteja sendo ensaiado em alguns países — a União Europeia (UE), por exemplo, propôs, no início de 2022, a classificação desta fonte como “verde” para aumentar as possibilidades de investimento — , especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp discordam da adoção desta estratégia no Brasil. As razões envolvem os riscos operacionais intrínsecos e, principalmente, o potencial brasileiro subaproveitado de outras fontes mais baratas, limpas e seguras, como a eólica e a solar, somado à já existente e significativa estrutura de usinas hidrelétricas no país.
Geração por energia eólica explodiu no Brasil
“É compreensível que, devido a limitações geográficas, a França invista em energia nuclear. Inclusive, a maior parte da energia elétrica gerada na França é de origem nuclear. Mas o Brasil não necessita disso. Estamos longe de esgotar nossa capacidade de geração de energia”, argumenta Antônio Martins, físico e docente do Departamento de Engenharia Ambiental do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unesp Sorocaba. Mestre em física e doutor em engenharia elétrica, ele estuda a evolução da matriz energética brasileira em comparação com a de outros países.
A França, que tem cerca de 70% de sua matriz elétrica dependente de usinas nucleares, assumiu a presidência rotativa da UE em 1 de janeiro e é uma das forças que apoiam a classificação da energia nuclear como “sustentável”. No Brasil, a energia nuclear responde por apenas cerca de 1% da geração de eletricidade.
O processo de desenvolvimento do uso da energia nuclear em nosso país teve início ainda nos anos 1950 e se revelou demorado e turbulento, com denúncias de corrupção e décadas de paralisações das construções. Martins destaca que, em comparação, a geração eólica em nosso país apresentou um crescimento gigantesco e rapidíssimo. Em 2006 a capacidade instalada de geração de eletricidade pela matriz eólica era de apenas 0,2 GW. No fim de 2021, ela já beirava 20,1 GW, um aumento de 100 vezes. Nesses 15 anos, ela saltou de uma participação de menos de 1% da matriz elétrica nacional para 11,11%, com tendência de crescimento ainda maior nos próximos anos.
Outra fonte energética mais interessante em ascensão, segundo os estudiosos, é a solar. Embora entre nós seu emprego tenha se iniciado mais recentemente – a primeira usina solar brasileira foi instalada somente em 2011 – sua contribuição para a matriz energética brasileira já é o dobro da nuclear (2,51% contra 1,09%, em dados de dezembro de 2021). “Uma vantagem interessante da energia solar é que ela permite um modelo descentralizado de geração, que é diferente do modelo centralizado, do qual a nuclear e a maioria das outras fazem parte. No modelo centralizado, tem-se um único lugar que gera energia e ela tem que ser transportada, o que gera perdas que podem chegar até a ordem de 10%. No caso da energia solar, você gera e utiliza energia em sua própria casa”, comenta Martins.
Para a física Emiko Okuno, professora aposentada do Departamento de Física Nuclear do Instituto de Física da USP e autora de livros sobre o tema, “em minha opinião, não faz sentido” investir na ampliação da matriz nuclear em nosso país. “No Brasil, há inúmeras fontes alternativas de energia. O país é ensolarado quase o ano todo. As marés da imensa costa do território nacional são outra alternativa. Pode-se utilizar também a energia eólica”, pondera.
Os riscos e impactos ambientais da energia nuclear
Um dos argumentos mais utilizados pelos grupos que apoiam a expansão da matriz nuclear é o de que se trata de uma fonte “limpa”, com baixa emissão de gases poluentes na atmosfera. De fato, o vapor gerado nas usinas nucleares é formado por água, o que, por si só, não traz riscos para o meio ambiente. Entretanto, ambientalistas ponderam que é necessário considerar todo o ciclo de valor envolvido no processo de geração da energia nuclear, que vai desde a extração e enriquecimento de urânio até o tratamento dos resíduos radioativos após sua utilização nas usinas.
“Não foi resolvida a questão dos resíduos radioativos. Mesmo a Alemanha, que já está abandonando a energia nuclear, ainda não definiu qual será a destinação dos resíduos”, afirma Marcelo Laterman, porta-voz do Greenpeace Brasil e especialista em Ciências Ambientais e Energia. São necessários milênios até que o urânio, o principal combustível das usinas nucleares, deixe de representar risco à vida. Até que isso aconteça, as autoridades precisam armazená-lo em segurança, de forma que não ocorram vazamentos e exposição da biodiversidade à radioatividade. Elaborar uma estratégia que garanta o total isolamento do urânio por milhares de anos, considerando todas as variáveis que podem surgir com o passar dos séculos, é um desafio complexo, e não são os alemães que enfrentam dificuldades em solucioná-lo. “O descarte desses resíduos é um problema em todo o mundo”, diz Emiko Okuno. “Como ele se manterá perigoso por milênios, há até o problema quanto a qual língua empregar para deixar uma mensagem sobre sua periculosidade para as próximas gerações, uma vez que não sabemos qual língua será usada então”, diz.
Há também o aspecto dos outros impactos ambientais envolvidos no processo de geração de energia a partir dessa fonte. “Os reatores das usinas aquecem muito, e o resfriamento é feito com a água (dos rios), que tem sua temperatura elevada e evapora. Tudo isso gera graves impactos para a biodiversidade local. Outro fator é que, para minerar o urânio, são empregadas máquinas que emitem gases poluentes. E, hoje, o Brasil está minerando urânio em Caetité, na Bahia, e também é preciso levar em conta o processo de transporte desse combustível”, diz Laterman.
Também é impossível desconsiderar o risco de acidentes nas usinas. Embora a estrutura destas instalações seja reconhecidamente segura, e a probabilidade de que algo grave aconteça seja remota, os possíveis acidentes podem custar a vida de milhares de pessoas, causar doenças nas populações de cidades próximas afetadas pela névoa radioativa e, também, gerar danos ambientais irreversíveis.
Todas essas possibilidades foram o combustível que movimentou décadas de manifestações anti-nucleares por parte de grupos ambientalistas. E o coro de críticos só se tornou mais forte quando ocorreu o acidente com a usina nuclear de Fukushima, no Japão, atingida por um tsunami em 2011. Após o acidentes, países que dependiam bastante da energia nuclear, como Alemanha e Bélgica, anunciaram projetos para a desativação completa de seus reatores nos próximos anos. E Alemanha, Áustria e Espanha também já se manifestaram contra a recente proposta do bloco europeu de classificar a energia nuclear como “verde”.
Propaganda quer melhorar imagem da energia nuclear
Ainda em 2018, quando Bento Albuquerque era um almirante da Marinha recém-indicado como futuro ministro de Minas e Energia por Jair Bolsonaro, ele já havia se manifestado favoravelmente a uma retomada dos investimentos do Estado brasileiro na área nuclear. De lá para cá, o projeto tem sido tocado no ritmo “devagar e sempre”, sem chamar muita atenção. Nos últimos doze meses, porém, ganhou algum momentum e visibilidade. Entre novembro e dezembro de 2021, chegou-se a veicular uma campanha publicitária da Eletronuclear em canais de TV fechada e no rádio. O intuito era apresentar a matriz nuclear de uma forma mais favorável junto à opinião pública brasileira.
Em paralelo às iniciativas do governo, o tema voltou a ser abordado por especialistas da área, também de forma discreta. Ainda em 2019, no começo do governo Bolsonaro, um boletim editado pela FGV Energia, um centro de pesquisas ligado à Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, compilou as visões de 14 profissionais da área e estudiosos do tema no Brasil. O levantamento apontava diversos possíveis benefícios, para além da questão climática. “A energia nuclear é uma fonte limpa, que demanda uma pequena área de geração, preservando grandes extensões para agricultura e outras atividades, além de gerar pouco resíduo se comparado às térmicas”, afirmou Luis Maurício Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM). Dorel Soares Ramos, professor do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da USP, destacou as vantagens trazidas pela exploração de urânio como parte de um programa de geração nuclear. “Alavanca a economia, o PIB do país se eleva, pois é uma indústria de base que produz e gera emprego. Pode ser muito importante e vantajosa para o país a exploração de urânio, dependendo da magnitude do programa”, diz ele.
Já no final de 2021, Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, defendeu em artigo que as usinas podem proporcionar uma estabilidade bem-vinda no fornecimento de energia em tempos de instabilidades no clima. “A expansão da geração nuclear é importante para o Brasil por garantir segurança no fornecimento de energia elétrica, evitando que o país fique suscetível às adversidades climáticas, trazendo confiabilidade à matriz elétrica brasileira”, diz. Para Martins, no entanto, nenhum desses argumentos pode justificar a opção por retomar a construção de novas usinas. “Sou favorável ao investimento em pesquisas nessa área, para manter o país em dia com a ciência mundial. Mas, estrategicamente, não faz o mínimo sentido essa opção no Brasil, devido ao potencial energético ainda subaproveitado em outras fontes mais interessantes para nós”, diz. “Não é questão de ser a favor ou contra a energia nuclear.”
Imagem acima: canteiro de obras da Usina de Angra 3. Crédito: Eletronuclear.