Quem vê a imagem de uma preguiça no alto de uma árvore, se empanturrando de folhas enquanto equilibra o pequeno corpo, que em média chega a 80 cm e pesa menos de 7 kg, dificilmente imagina que os antepassados deste simpático animal tinham a massa corporal de um… Elefante! As chamadas preguiças-gigantes ocuparam a América do Sul durante o Plioceno e o Pleistoceno (entre 5 milhões e 10 mil anos atrás, aproximadamente). Elas podiam chegar a sete metros de altura, e seu peso, a várias toneladas. E graças ao trabalho pioneiro de um pesquisador da Unesp, estamos aos poucos sabendo mais sobre como viviam esses gigantes da pré-história brasileira.
Os paleontólogos dispoem de uma grande variedade de fósseis de preguiças-gigantes, encontrados em diversas regiões do continente. Eles revelam grupo diverso de animais, de tamanhos e hábitos múltiplos. Enquanto a preguiça de nossos dias adota um estilo de vida solitário e arborícola (habitando principalmente o topo das árvores), as versões pré-históricas podiam viver em comunidades e caminhar pela terra (e algumas inclusive desenvolveram hábitos marítimos para se alimentarem de algas). Francisco Buchmann, docente do câmpus da Unesp de São Vicente, no Litoral Paulista, explica que um grupo de preguiças-gigantes conhecido como Milodonte desenvolveu a capacidade de escavar a terra para construir tocas. Elas são conhecidas como paleotocas.
Buchmann é referência na pesquisa sobre paleotocas, a que vem se dedicando desde 2001. À época, havia apenas registros de paleotocas preenchidas por sedimentos, chamadas crotovinas. “Naquele período, tudo era novidade, pois nunca haviam sido descritas as estruturas encontradas nas paleotocas. Para tal, precisamos identificar marcas, recriar hábitos e interpretar o comportamento desses animais gigantes dentro das paleotocas”, relembra o professor, que a cada toca encontrada retira moldes em silicone das marcas de garras nas paredes, e mede comprimento, largura, altura, rumo na bússola, elevação no nível e fotografias das cavernas. Atualmente, existe um grupo multidisciplinar de pesquisadores de diversas instituições de pesquisa reunidos pelo tema, cuja produção está disponível no site Projeto Paleotocas.
Uma paleotoca que todos podem visitar
Hoje, Buchmann encontrou uma forma de compartilhar com o público a emoção e a curiosidade de explorar um ambiente pré-histórico moldado por mãos não humanas. Junto com colaboradores, ele reproduziu digitalmente uma paleotoca localizada na cidade de Doutor Pedrinho, em Santa Catarina.
A réplica virtual foi publicada pelos pesquisadores na forma de um PDF e está disponível na plataforma Sketchfab, especializada na disponibilização de modelos 3D. Explorando o recurso tridimensional é possível notar detalhes como a marca das garras da preguiça nas paredes e diferenciar claramente cada uma das galerias escavadas pelo animal. O modelo tridimensional permite ainda o uso de óculos de realidade virtual que ampliam ainda mais a experiência de estar dentro da paleotoca.
Um dos propósitos para se criar um modelo tridimensional da paleotoca, explica Buchmann, foi justamente popularizar as paleotocas e, por consequência, chamar a atenção para essas espécies gigantes que ocuparam o país, mas ainda são pouco conhecidas pelo público brasileiro em geral. “Este recurso abre infinitas possibilidades para o ensino de ciência, mas também para que se conheça melhor as paleotocas, uma vez que praticamente não existe exploração turística dessas estruturas”, afirma o docente. Além de preguiças-gigantes, a megafauna brasileira incluía ainda tigres-dentes-de-sabre, mastodontes, antas e tatus-gigantes.
Os caçadores de paleotocas
Ao longo de 20 anos, o grupo de pesquisadores que Buchmann integra já registrou mais de duas mil dessas estruturas. “A gente viaja muito, e encontramos as paleotocas dirigindo pelas estradas. Vamos por um caminho e voltamos por outro, às vezes desviamos a rota para pegar alguma estrada que não conhecemos ainda. Com o tempo a gente foi criando um olho clínico para localizar essas paleotocas”, explica o professor da Unesp. Ele mesmo já chegou a rodar 30 mil quilômetros em um período de dois anos, sem repetir as estradas, na busca pelas tocas gigantes.
Paleotocas são enquadradas na categoria de icnofósseis, pois registram ações como pisadas, mordidas ou escavações de animais, mas não são um fóssil do animal em si. As paleotocas construídas por preguiças-gigantes costumam ter centenas de metros de comprimento, e marcas de garras nas paredes, sinalizando a escavação, e um túnel com um fim bastante claro (fundo “cego”), indicando que a formação se deu por ação de animais e não por um processo geológico. “O diâmetro das galerias dentro da toca também varia muito pouco, apresentando diferentes frentes de escavação. Essas são algumas evidências que claramente mostram que foi um animal o responsável por aquela construção, e não a passagem de água, por exemplo”.
Embora a megafauna seja bastante conhecida da comunidade científica, a primeira referência às paleotocas das preguiças-gigantes foi feita em um resumo de congresso, em 2003. Em 2009, Buchmann e seus colegas publicaram um artigo em que atribuem a formação de um icnofóssil a mamíferos que compunham a megafauna. “Ainda não havia registros de paleotocas vazias, que permitissem a entrada de pesquisadores. Eu e minha equipe fomos os primeiros a entrar nas paleotocas e descrever as marcas de garras nas paredes”, lembra.
Pouco mais de dez anos após a publicação do primeiro artigo sobre o tema, a quantidade de registros de paleotocas impressiona. O docente relata que existem mais de duas mil paleotocas registradas no Brasil, sendo 99% delas distribuídas entre o sul de Santa Catarina e o norte do Rio Grande do Sul. A paleotoca digitalizada de Doutor Pedrinho, por exemplo, está nesta região.
O motivo dessa concentração poderia estar relacionado com a maior presença de pesquisadores atuando na região. Mas Francisco explica que colegas vêm fazendo buscas em outras regiões do país, e nos países da América do Sul sem o mesmo sucesso. A razão para a concentração dessas estruturas no Sul é uma pergunta que os pesquisadores ainda tentam responder, principalmente porque fósseis de preguiças-gigantes já foram encontrados por praticamente todo o território brasileiro.“Talvez o hábito de escavar tocas tenha sido uma habilidade desenvolvida e ensinada pelos animais que viviam naquela região, passando este hábito de geração em geração, mas ainda é preciso estudar melhor esse tema”, aponta.
E os estudos estão sendo feitos. Um deles foi publicado em 2016 na Revista Brasileira de Paleontologia e investigou uma área ao norte do estado de Minas Gerais em que foram encontradas um total de 15 paleotocas, divididas principalmente em dois grupos localizados próximas a dois rios da região, o Esmeril e o Jiboia. Além das diversas marcas de garras na parede, o trabalho identificou, dentro das paleotocas, espaços de forma elíptica e superfície lisa, que aparentam terem sido “polidas” pelas pelagem dos animais, indicando ser ali uma área de repouso. Essas paleotocas estavam próximas umas das outras e cada uma delas dispunha de duas a quatro áreas elípticas polidas, sugerindo uma convivência em comunidade que até então não havia sido provada. Não à toa, a região foi batizada pelos pesquisadores de Vale dos Gigantes, e hoje é um GeoParque.
Atualmente, o grupo de pesquisadores vem se aprimorando na investigação do comportamento das preguiças no interior das paleotocas. Além do trabalho com fotogrametria com a mestranda Caroline Audi, o aluno Marcelo Schereiber vem desenvolvendo estudos na área de bioacústica. A ideia é testar padrões de sons em diferentes regiões da paleotoca para entender como esses sons se propagam ali. “Dessa forma vamos montando um quebra-cabeça que mostra os hábitos dessas preguiças. Hoje, por exemplo, já se sabe que nessa região elas viviam de forma coletiva e se comunicavam por sons graves no interior da toca”, afirma.
Foto de abertura: equipe de fotogrametria explora uma paleotoca. Crédito: Francisco Buchmann.