Diariamente pela manhã, Micael Libarino Costa, 51, chega na UBS (Unidade Básica de Saúde) Jardim Vera Cruz para vestir um jaleco azul e seguir uma lista de tarefas e de rotas organizadas previamente. O agente comunitário de saúde parte para as ruas no intuito de conhecer e catalogar a saúde dos moradores. Vai de porta em porta por períodos de cinco a seis horas.
“Para eles [moradores] é uma espera, todo mês, por um agente de saúde para conversar, mandar as queixas”, explica Micael Libarino Costa, que atua há quase 10 anos como ACS (Agente Comunitário de Saúde) no bairro que pertence ao Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.
“Às vezes, a gente consegue resolver algumas coisas, com a enfermeira, e volta para levar a consulta ou trocar uma receita. Não paramos, não”.
Como um corpo humano em funcionamento, os ACSs podem ser assemelhados ao sangue que corre nas veias, levando e trazendo informações para que o órgão central – as UBS (Unidades Básicas de Saúde) – operem plenamente.
A Agência Mural conversou com profissionais do Jardim Ângela sobre os desafios de atuar em mais de um ano de pandemia de Covid-19. Os medos e o impacto na saúde mental estão entre as mudanças em um trabalho que, muitas vezes, serve como uma escuta em meio a piora na saúde mental.
O trabalho desses agentes que estão mais próximos dos moradores se tornou ainda mais essencial com a propagação do coronavírus. Em algumas periferias, eles ajudaram na conscientização sobre a pandemia utilizando até carro de som. Durante a vacinação, buscaram meios de garantir o aviso dos moradores.
Mas a atuação sempre ocorreu desde a criação do programa Saúde da Família. Eles fazem o acompanhamento domiciliar das famílias com “contato permanente” junto aos grupos para realização de atividades, ações e cadastro de pessoas vivendo em sua área.
“O nosso papel é cadastrar, levar informação, trazer informação, você acaba virando uma escuta para aquela pessoa. Acabam usando você para desabafar, conversar, contar coisas”, diz Micael.
Ela lembra que estava de férias no mês que o governador João Doria (PSDB) decretou as medidas de segurança e combate ao novo coronavírus, em março de 2020, tendo percepção de como a situação estava apenas no retorno ao trabalho, em abril do mesmo ano.
A agente batia as metas mensais de visitas, mesmo sabendo dos pacientes internados na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e de óbitos na unidade devido à Covid-19.
Os ACSs podem realizar, em média, até 200 visitas no mês, conforme informou a Prefeitura de São Paulo por meio da SMS (Secretaria Municipal de Saúde).
Mudanças nas rotinas de trabalho
Assim como Micael, outros 562 agentes que atuam em 18 unidades referenciadas no distrito do Jardim Ângela viveram mudanças nas rotinas do trabalho e enfrentamento da doença.
Além da adoção de tablets para o lançamento de informações para a comprovação do comparecimento do ACS nas casas, que antes era feita por meio de colhimento de assinatura dos próprios pacientes, as visitas passaram a ser do portão para fora.
“Antes da pandemia, a gente entrava, sentava, conversava, sentava no sofá; até um cafezinho a gente conseguia tomar”, brinca a ACS Maria Joselita Sobrinho, 49, da UBS Jardim Paranapanema. “Como trabalhar com isso?”, se perguntava sobre as mudanças no itinerário de trabalho diante da pandemia.
Para Maria Joselita, que trabalha como ACS na região do Jardim Ângela desde 2003, estar longe dos pacientes foi uma das partes mais difíceis a se adequar.
Em outubro do ano passado, Maria precisou se afastar por 14 dias por ter se contaminado com a Covid-19, mas não sabe se contraiu o vírus em uma visita a um paciente ou na própria UBS.
A ausência do contato também foi sentida pelos pacientes devido às mudanças na rotina, dado ao acolhimento que acontece nas visitas.
A ACS Givalda Bispo Pereira, 46, da UBS Jardim Coimbra, relata que os idosos atendidos por ela se queixam da falta de contato. “Tem os idosos que gostam que eu chegue lá, que abrace ele, dê beijo. Sento com eles, converso, gosto de ouvi-los. Essa parte pra mim foi a mais difícil, de não poder dar essa assistência”.
Antes do atual emprego, a agente trabalhou por 27 anos com atendimento em uma drogaria na mesma região.
O uso do whatsapp para manter o contato com as famílias se intensificou no período, para tirar dúvidas ou pedir orientações sobre os sintomas causados pelo novo coronavírus.
Givalda percebeu no aplicativo uma ferramenta para otimizar o trabalho e aproximação com a comunidade antes mesmo da pandemia, já que suas visitas acontecem apenas uma vez por mês, de cada grupo.
Diariamente, ela precisa realizar 15 encontros, organizados dentro de 209 famílias cadastradas e atendidas em suas rotas. As agentes pontuaram que, normalmente, o máximo de famílias atendidas por profissional deveria ser de 200 grupos familiares; podendo oscilar para mais ou para menos a depender das condições da região.
Pandemia e saúde mental
Givalda Bispo ouviu diversos casos de pessoas em sua área de atendimento se queixando de esgotamento emocional e nervoso por conta da pandemia.
“Teve pacientes que ficaram muito abalados psicologicamente, muitos tentaram até tirar a própria vida por medo. Outros se trancaram, não queriam receber ninguém, nem mesmo no portão”, contou a agente.
Ao longo das visitas, as boas-vindas dos pacientes foram trocados por frases como “eu não vou descer por conta do vírus, mas, tá tudo bem’” e “Não, eu não tô precisando de nada. Deus me livre ir no posto pra pegar esse vírus”.
“Tem casos que você acaba abraçando tanto que acaba sofrendo junto com a família, é bem delicado. Tem que ter um psicológico bem equilibrado, senão você cai junto.”
Reportagem publicada originalmente pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias e reproduzida por meio de parceria de conteúdo com o Jornal da Unesp.