No câmpus de Araçatuba, duas unidades auxiliares vinculadas à Faculdade de Odontologia (FOA-Unesp) fizeram jus, durante a pandemia, ao trabalho de referência que desenvolvem há décadas na região noroeste do estado de São Paulo: mesmo nos momentos mais críticos, mantiveram assistências odontológicas e multidisciplinares à população atendida em seus serviços ou se reorganizaram rapidamente para apoiar atendimentos de urgência e emergência.
O Centro de Oncologia Bucal (COB), até pela necessidade vital de dar continuidade aos tratamentos dos pacientes com diagnóstico de câncer de cabeça e pescoço, não interrompeu o atendimento em nenhum momento desde que surgiu a pandemia de covid-19, em março de 2020. O Centro de Assistência Odontológica à Pessoa com Deficiência (Caoe) registrou uma breve interrupção com as medidas restritivas que determinaram o distanciamento social, mas retomou o atendimento de urgência e emergência semanas depois, no início de maio do ano passado –foram implementados plantões presenciais e por telefone com cirurgiões dentistas.
“Diminuímos o fluxo de consultas que não eram de urgência, mas consultas de pacientes oncológicos que precisavam de diagnóstico e o preparo da equipe para o tratamento oncológico não sofreu nenhum tipo de interrupção (durante toda a pandemia)”, relata o professor Daniel Galera Bernabé, supervisor do COB.
Caoe e COB fazem parte de um grupo de unidades auxiliares da Unesp que prestam diversos tipos de assistências em saúde gratuitas aos cidadãos paulistas. Essas unidades, que aliam a prestação de serviços à comunidade a um papel acadêmico essencial para a formação dos estudantes, são o foco da série de reportagens Unesp Cuida – este recorte do câmpus de Araçatuba é o terceiro de cinco episódios semanais.
É sempre importante lembrar que as unidades auxiliares retratadas nesta série representam apenas uma parcela das assistências e dos atendimentos em saúde oferecidos pela Unesp. Os dois outros cursos de Odontologia da Universidade, nos câmpus de Araraquara e São José dos Campos, por exemplo, também prestam diversos serviços à população, mas eles não estão vinculados a unidades auxiliares, que são o foco desta série do Jornal da Unesp.
Pioneirismo na assistência odontológica a pessoas com deficiência
Oferecer atendimento odontológico a pessoas com deficiência, tanto física quanto intelectual, pode ser extremamente desafiador. O paciente pode ter limitações físicas que não permitam que ele se sente na cadeira odontológica, permaneça imóvel durante o tratamento ou abra a boca de forma adequada. Aspectos psicológicos também podem resultar em comportamentos agressivos e movimentos involuntários.
Observando a dificuldade dessa população em obter tratamento especializado, o professor Ruy dos Santos Pinto, da FOA-Unesp, idealizou o Centro de Assistência Odontológica à Pessoa com Deficiência (Caoe). Fundado em 1984, é popularmente conhecida como Centrinho.
“O centro começou a prestar atendimento a essas pessoas e conseguiu a contratação de profissionais da área, além dos docentes”, conta Letícia Theodoro, professora da FOA e atual supervisora do Centrinho. “Começou de forma bem humilde e singela e foi crescendo. O número de pessoas do Brasil inteiro que procurava atendimento era muito grande, e ele conseguiu montar um centro multiprofissional.”
Na década de 1990, o Centrinho ganhou um prédio próprio na FOA, onde está localizado até hoje. A unidade chegou a ter 50 servidores. Atualmente, com a aposentadoria de muitos desses profissionais, a equipe é composta por um médico, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, uma enfermeira, uma psicóloga, sete cirurgiões dentistas e quatro auxiliares, além dos docentes e alunos.
“O centro se tornou uma referência nacional e formou muitas pessoas. No início, não havia cursos especializados. Com isso, o centro conseguiu disseminar conhecimento sobre o assunto para várias partes do Brasil”, diz Theodoro. Atualmente, a unidade atende pacientes dos 40 municípios da região de Araçatuba que compõe o DRS-II (DRS é a sigla para Departamento Regional de Saúde) por meio de um convênio da Universidade com o SUS, mas também recebe pacientes de outros estados, de mais de 400 municípios do Brasil. Em 2019, foram 5.140 atendimentos e 48.937 procedimentos realizados.
Theodoro explica que existem três níveis de tratamento oferecidos pelo Centrinho. O primeiro é o nível ambulatorial, que são as assistências de pacientes que, apesar da deficiência física ou intelectual, conseguem colaborar com o tratamento, sentando-se na cadeira sem necessidade de sedação. O segundo nível se destina aos pacientes que necessitam de sedação, mas podem ser atendidos no próprio centro, com a presença do médico para monitorá-los. O terceiro nível é quando o paciente necessita de anestesia geral. Nesses casos, o procedimento é feito na Santa Casa de Araçatuba, que tem um convênio com a Unesp.
Uma das pacientes que foram beneficiadas pelo atendimento no Caoe foi Amanda Espósito Pinheiro, de 29 anos. Ela nasceu sem os braços e pernas, e usava a boca para escrever e pintar guardanapos. Por causa disso, desenvolveu problemas nos dentes. No Centrinho, foi tratada e recebeu um aparelho fixo. “Foi ótimo, eu gostei deles e hoje os dentes estão certinhos”, diz Amanda. Para permitir que ela continuasse pintando, a equipe confeccionou uma órtese para usar no ombro. “Eu tinha um molde para comer sozinha, mas não me acostumei. Então ela fez um só para pintura”, conta Amanda.
Outro serviço que o Caoe oferece é o de atendimento odontológico para bebês com deficiência. “Quando realizam prevenção desde quando nascem, a probabilidade de que venham a desenvolver alguma doença por falta de higiene bucal é muito baixa”, diz Theodoro. “Isso vai impactar no futuro deles, para que não apresentem os mesmos problemas dos adultos que recebemos.”
Atualmente, alunos de graduação da FOA têm uma disciplina específica sobre odontologia para pacientes com necessidades especiais que é integralmente ministrada no Caoe, que também recebe disciplinas práticas e teóricas da pós-graduação. Alguns dos principais temas de pesquisa desenvolvidos na unidade são o atendimento de pacientes com síndrome de Down e com transtorno do espectro autista, trabalhos que colaboram para gerar protocolos de condutas a serem empregadas na atenção a esses pacientes.
Tratamento e suporte para pacientes com câncer
O Centro de Oncologia Bucal (COB) foi oficialmente estabelecido como uma unidade auxiliar da FOA-Unesp em 1995, mas atende a pacientes desde 1991. Ao longo desses 30 anos, a unidade tornou-se referência em oferecer os cuidados multidisciplinares necessários para o manejo do câncer de cabeça e pescoço.
Assim como o Caoe, a unidade também atende por meio do SUS pacientes da DRS-II. Segundo o professor Daniel Galera Bernabé, supervisor do COB, os pacientes chegam ao COB por diversas vias, incluindo a Clínica de Estomatologia da FOA, Ambulatórios Médicos de Especialidades (AME), Unidades Básicas de Saúde (UBS) e até clínicas particulares.
A multidisciplinaridade é especialmente importante no tratamento do câncer de cabeça e pescoço devido à complexidade das funções fisiológicas que se concentram nessa região, incluindo fala, mastigação e deglutição. A equipe do COB é composta por médicos, cirurgiões-dentistas, enfermeira, fonoaudióloga, fisioterapeuta e psicóloga, que realizam o suporte e reabilitação do paciente oncológico em todas as fases do tratamento da doença.
Desde sua criação, o COB realizou 132.990 atendimentos, incluindo as diversas especialidades, segundo a supervisão da unidade. Em 2019, foram 8.790 assistências a pacientes.
“O paciente é acompanhado por nossa equipe, recebendo todo o apoio nessas diferentes áreas e isso promove uma maior qualidade de vida do que se ele estivesse fazendo só o tratamento médico oncológico”, afirma Bernabé. “Embora nosso modelo de saúde ainda esteja focado no tratamento da doença, a nossa equipe se esforça para oferecer atenção ao indivíduo que porta a doença, respeitando suas crenças, seus conceitos, sua vulnerabilidade física e psicológica, tentando oferecer, além do tratamento físico, um suporte biopsicossocial.”
Pacientes tratados e em acompanhamento pelo COB podem participar das atividades do grupo “Tocando em Frente”, que estimulam a comunicação com linguagem oral e socialização, e do grupo “Oficina Viva Voz”, cujo objetivo é treinar a fala após a remoção da laringe. O centro também realiza um projeto de extensão em parceria com a prefeitura de Araçatuba voltado para a prevenção do câncer de cabeça e pescoço.
“Nós desenvolvemos há 8 anos um trabalho específico com a população de risco para orientar sobre os efeitos do tabagismo e do alcoolismo. Também fazemos exames na população de risco da cidade para detecção precoce do câncer de boca e identificação de lesões precursoras do câncer de cabeça e pescoço, pois conseguimos melhores resultados quando a doença é diagnosticada de maneira precoce”, afirma Bernabé.
Além da assistência aos pacientes, o COB desempenha um papel importante no treinamento de estudantes de graduação da FOA para diagnóstico do câncer de boca e atendimento odontológico ao paciente oncológico. A unidade também se destaca pela excelência das pesquisas pré-clínicas e clínicas desenvolvidas nas áreas de carcinogênese e epidemiologia do câncer, estomatologia, biologia molecular, odontologia oncológica, prótese buco-maxilo-facial, psiconeuroimunologia e psicossomática.
Tanto dentistas quanto profissionais de outras áreas de saúde têm a possibilidade de cursarem mestrado e doutorado nas linhas de pesquisa do COB, que está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Odontologia da FOA, na área de Estomatologia e Psiconeuroimunologia. Até o momento, pesquisadores vinculados ao COB já publicaram 145 artigos completos em revistas científicas internacionais, 41 artigos completos em revistas científicas nacionais, 295 trabalhos em anais de eventos científicos, 20 capítulos de livros e um livro.
Imagens: Equipe de Arte/ACI Unesp