Poucas são as expressões artísticas contemporâneas que podem, com segurança, remontar suas origens a uma fieira de séculos passados. Uma delas é o moderno teatro ocidental, herdeiro e tributário do teatro grego, que surgiu inicialmente associado a rituais religiosos na Antiguidade Clássica. Adaptando-se às transformações da cristianização da Europa, e passando pelos diversos períodos da história da cultura — a Idade Média, o Renascimento, o Romantismo etc. — , o teatro ocidental foi se sofisticando e se expandindo, explorando novas dimensões estéticas, revelando autores, métodos e possibilidades. Tudo isso se articulou na forma de um cânone, isto é, um conjunto referencial de autores, textos e estéticas. Porém, neste início do século 21, o mesmo cânone que ainda guia boa parte dos atores no seu desafio de dar vida às criações mentais dos dramaturgos está sendo questionado e reformulado pela pesquisa acadêmica em teatro.
A busca de um natural construído
Atriz e diretora com mais de três décadas de trabalhos na TV, cinema e teatro, Miwa Yanagizawa enfrentou recentemente o desafio de interpretar Lídia, uma chefe de enfermagem que, devido ao estresse da luta contra a pandemia de Covid-19, se vê levada a buscar a ajuda de um terapeuta. Lídia é uma das novas personagens da série Sessão de Terapia (Globoplay, onde contracena com o ator Selton Melo.
Durante a preparação para a série, Miwa conversou com profissionais de saúde e visitou hospitais. Mas ela explica que as experiências imersivas e transformações físicas são apenas uma parte do seu processo de construção de personagens. Sua abordagem incorpora também as referências do projeto artístico em questão, os parâmetros da própria personagem e, claro, o conjunto de vivências profissionais do artista,
Em sua atuação profissional, Miwa também oferece oficinas periódicas a outros atores e atrizes. Nessas atividades, uma das primeiras propostas feita aos alunos é o que ela chama de desintoxicação. A ideia base é que o ator, mesmo que inconscientemente, assimila uma série de vícios e elementos do senso comum ao seu exercício da interpretação. É necessário, portanto, um esvaziamento para que dali surja algo novo como proposta de personagem.
“Pode ser que o trabalho de criação esteja muito mais em acolher aquilo que surge durante o processo do que jogar suas ideias e saturar o espaço com a sua criatividade. Talvez isso que a pessoa está chamando de criação seja, na verdade, mais ligado ao que ela já possui como ideia posta”, sugere.
“Penso que fazer um trabalho cria a possibilidade de reelaborar uma porção de questões que uma personagem me traz. Essas questões permitem também que essa presença se instaure. Essa presença pode parecer algo muito natural, mas na verdade é tudo muito construído. Esse efeito natural é fruto de pesquisa”, afirma Miwa, que tem sua formação artística ligada principalmente ao teatro, onde os processos criativos costumam ser elaborados de forma coletiva.
A personagem tem sido um ponto central dos dilemas de representação do teatro moderno, explica Lúcia Regina Romano, docente do Instituto de Artes da Unesp. Especialista em interpretação teatral e performance, ela cita como exemplo o fato que, no teatro dito tradicional, atores e atrizes não se anunciam, o que restringe às suas personagens a possibilidade de “presença” em cena. “Bertold Brecht, por sua vez, vai dizer que esse apagamento da linha entre ator e personagem é uma espécie de ficção que favorece um teatro mais ilusionista, e propõe um teatro onde as opções que as pessoas fazem dentro da ficção são discutidas. Neste sentido, é importante para Brecht que ator e atriz também se posicionem no ato ficcional”, explica Lúcia.
Essas e outras discussões sobre a presença do ator e da atriz em cena são parte fundamental da formação dos alunos do curso de artes cênicas Nos últimos anos, entretanto, outras temáticas contemporâneas vêm se somando a esse tema, algo aliás esperado no universo as expressões artísticas. Temas como decolonialismo, feminismo, direitos das minorias ou lugar de fala têm encontrado eco nos cursos de artes cênicas, e vêm pautando projetos de pesquisa e mudanças na formação na área.
Lúcia explica que a chegada de um novo perfil de estudantes ao Instituto de Artes vem estimulando outros debates sobre a presença do ator e da atriz em cena. Desta vez, o foco está na perspectiva de desconstrução do estatuto ficcional do teatro, que é tradicionalmente europeu e ocidental. Desde 2014, a Unesp adota um sistema de cotas para ingresso dos alunos que vem promovendo um aumento na inclusão de estudantes de escola pública, negros, pardos e indígenas ao corpo discente da Universidade. Em 2018, pela primeira vez, metade dos estudantes que ingressaram no vestibular pertenciam a esses grupos.
Para interpretar Shakespeare, tudo deveria ser apagado?
“Minha pesquisa tem sido principalmente nesse encontro: como se dá a junção dessa tradição europeia e ocidental do teatro com o que essas pessoas trazem de singularidade de suas experiências encarnadas?”, questiona Lúcia. A professora argumenta que o teatro passou muito tempo ignorando as experiências pessoais e culturais de determinados sujeitos em nome de uma busca pela neutralidade em cena. “Pouco importava se você veio do Nordeste ou da Suiça, se você era um homem homossexual ou heterossexual, branco ou negro: isso tudo deveria ser supostamente neutralizado ou apagado para se interpretar Shakespeare”, diz ela. “O que, nós sabemos, é algo praticamente impossível.”
O questionamento que se levanta a partir deste ponto é que, em nome da busca por um teatro supostamente neutro e universal, foram apagados outros teatros e outros sujeitos que não se enquadraram no perfil do europeu ocidental, branco, homem e heterosexual. Resgatar a história desses sujeitos apagados é parte do trabalho proposto pela professora, que em seu doutorado na USP, ainda em 2009, pesquisou o teatro feminista.
A discussão sobre o apagamento de sujeitos ao longo da História, cabe lembrar, não está restrita ao teatro. Na ciência, por exemplo, aponta-se a contribuição de Mileva Maric Einstein às descobertas do marido Albert, enquanto na literatura discute-se o processo de embranquecimento de Machado de Assis.
“O teatro é um exemplo das disputas que acontecem no campo social. Ele é um microcosmo que espelha outros movimentos em curso na sociedade”, aponta Lúcia.
A mudança no perfil do aluno colabora ainda para levantar uma outra demanda: modificar a grade curricular dos cursos de artes cênicas de forma a contemplar outros tipos de teatro que também foram historicamente omitidos. “Nos Brasil dos anos 50, por exemplo, a principal e mais ousada companhia de teatro foi o Teatro Experimental do Negro. Eu nunca estudei isso na faculdade”, afirma, em referência ao projeto idealizado por Abdias Nascimento.
Incorporar esses novos sujeitos periféricos ao teatro não é negar Shakespeare, Brecht ou Stanislavski. Trata-se de promover um encontro que desperte a reflexão e produza um novo e terceiro teatro igualmente capaz de se conectar com a plateia, uma vez que ela também é formada por múltiplos sujeitos.
Na imagem acima, Lúcia Romano em atuação na peça “Revoltar”, de 2018