O Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC), o órgão consultivo que assessora a Organização das Nações Unidas (ONU), reúne 195 integrantes. Porém, para produzir seus extensos e completíssimos periódicos relatórios, o comitê conta com o trabalho de milhares de cientistas voluntários. No último dia 9, quando alguns integrantes brasileiros apresentaram o conteúdo do sexto e mais recente Relatório de Análise, por meio de uma transmissão online, um dos nomes de colaboradores cuja contribuição foi publicamente mencionada foi o de Marta Llaport, que é professora da Unesp no câmpus de Bauru.
Organizado em três grupos principais de trabalho, o IPCC em si não produz ciência. Seu papel é compilar o conhecimento sobre as bases físicas da mudança climática, sobre os seus impactos e sobre as formas de mitigá-las, a fim de orientar os tomadores de decisão, e a sociedade em geral, a respeito do que está acontecendo com o clima na Terra. Os Relatório de Análise são produzidos pelo Grupo de trabalho 1 do IPCC. O anterior havia sido publicado em 2014. Para açambarcar toda a pesquisa produzida nestes oito anos, o novo levantamento envolveu 234 autores principais e outros 517 colaboradores, que produziram nada menos do que 3,5 mil páginas divididas em 12 capítulos.
Cada um desses capítulos conta com um grupo pequeno de coordenadores líderes, um grupo de aproximadamente dez autores líderes e um grupo grande com dezenas de autores contribuintes. O professor da USP, Paulo Artaxo, por exemplo, é um dos autores líder do capítulo 6, Short-lived climate forcers. E Lincoln Alves, pesquisador do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), é um dos autores líderes do capítulo referente ao Atlas de Mudanças Climáticas.
O Atlas de Mudanças Climáticas é uma ferramenta interativa, e foi considerado como uma das principais novidades deste último relatório. Por isso, ganhou um capítulo só dele. Climatologista com ampla experiência em modelagem climática, Lincoln convidou Marta Llaport para integrar a equipe de pesquisadores contribuintes, que neste capítulo soma quase cem cientistas.
“Por vezes, surge a demanda de alguma expertise que os autores do artigo não possuem, ou é necessária alguma ajuda técnica. Foi nesse contexto que eu, como autor líder, achei necessário envolver mais autores da América do Sul que dessem maior suporte técnico aos diferentes tópicos que iríamos trabalhar”, explica Lincoln. Cada convites, porém, precisa passar antes pela aprovação dos coordenadores, que avaliam principalmente a “bagagem científica” que o pesquisador tem no tema.
Professora da Unesp desde 2015, Marta está locada no Instituto de Pesquisas Meteorológicas (IPMet), no câmpus de Bauru. Durante seu doutorado pela USP, obtido em 2014, teve a oportunidade de realizar um estágio no prestigiado Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), na cidade de Trieste, na Itália. Ali, Marta atuou no grupo que desenvolve um dos modelos mais utilizados no mundo para realizar projeções climáticas, chamado RegCM.
A pesquisadora ainda retornaria para o centro italiano em 2015, para um estágio de pós-doutorado, quando se aprofundou no modelo com foco na realização de projeções climáticas específicas para a América do Sul. “As projeções que eu fiz neste período do doutorado que estive no ICTP foram incluídas entre os artigos analisados para compor o relatório final. Mas a razão da minha presença diz respeito muito mais à minha expertise em clima futuro do que nesse modelo, especificamente”, afirma Marta.
O capítulo do relatório em que Lincoln e Marta trabalharam envolve a análise das publicações científicas mais relevantes da última década relativas a aspectos observacionais, validação dos modelos e as projeções climáticas em cada região do planeta, incluindo aí os continentes, mas também a região polar e pequenas ilhas. Coube à professora do câmpus de Bauru a análise de artigos especificamente em sua área de expertise: as projeções climáticas para a América do Sul.
O principal trabalho neste capítulo — e isso vale para o relatório como um todo — é ir além da simples revisão bibliográfica, mas também avaliar o grau de confiabilidade dos milhares de artigos produzidos, de forma a conseguir apontar qual a “direção” que este conjunto de análises realizadas pela comunidade científica está seguindo. No total, o relatório analisou mais de 14 mil artigos científicos.
Uma contribuição pessoal
O fato de ser uma atividade voluntária e não remunerada em nada impacta a dimensão das tarefas que cabe aos pesquisadores. Ao longo dos últimos três anos, a pesquisadora perdeu as contas de quantas vezes ficou até às 23h no IPMet lendo os artigos depois de concluir as tarefas relacionadas à Universidade, como preparação de aulas, correção de provas, orientação de alunos.
“O trabalho é gigante. Apenas para realizar a parte pela qual fiquei responsável, a de projeções climáticas para a América do Sul, tive de ler mais de mil artigos científicos”.
“Foi uma experiência incrível no sentido de colaborar com um tema tão importante, apesar de ter sido muito desgastante”, afirma Marta. “Mas, já que não tenho um microfone para ficar falando todo dia que a sociedade precisa se ligar porque a situação climática já está irreversível e pode piorar, essa é minha forma de colocar a mão na massa e dar minha contribuição”.
O relatório ganhou ampla repercussão em veículos de mídia de todo o mundo, chamando a atenção da opinião pública sobre a responsabilidade humana na alteração do clima no planeta, a necessidade urgente na redução das emissões de gases do efeito estufa e para as consequências que alcançarão todas as regiões do globo.
O material divulgado até agora tratou apenas das bases físicas das mudanças climáticas. Nos próximos meses, o Painel ainda divulgará outros relatórios tão importantes (e trabalhosos) como este, que irão abordar os impactos das mudanças climáticas para o homem e a biodiversidade e as formas que ainda temos para mitigar essas tendências.
Imagem acima: capa do sexto relatório do IPCC. Crédito: Lisa Singer.