Reabertura de São Paulo não pode levar a afrouxamento das medidas de proteção

Especialistas da Unesp alertam para alta transmissibilidade da nova variante Delta e necessidade de evitar expectativas quanto a um fim próximo da pandemia

A flexibilização das medidas restritivas anunciadas pelo governo do estado de São Paulo no final de julho representa uma nova fase no enfrentamento da pandemia. Mas, para especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp, esse processo deve ser acompanhado pela manutenção das mesmas precauções sanitárias amplamente divulgadas desde a chegada da Covid-19: distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos. Isso porque artigos científicos e a experiência de outros países vêm demonstrando que as vacinas, embora eficazes contra casos graves da doença, têm encontrado dificuldades para evitar a transmissão do vírus, especialmente no que diz respeito à variante Delta. 

No último dia 28 de julho, o governador João Doria apresentou as medidas da chamada fase de transição, que permite ocupação de até 80% de comércios e serviços, além do funcionamento até as 24h. A partir do dia 17 de agosto, o estado deve iniciar a “retomada segura” com liberação de 100% da ocupação dos estabelecimentos. Segundo o governo, o anúncio foi amparado por melhoras nos índices de saúde e vacinação.

Para o epidemiologista Alexandre Naime, a reabertura gradual reflete a entrada em uma nova etapa da pandemia em que é possível vislumbrar melhora nos números. “É a primeira vez em muitos meses que a média móvel de óbitos cai abaixo de mil. Então devemos entrar em uma fase de coabitação, em que o vírus vai circular, vai ser transmissível, mas não vamos ter tantos casos graves, óbitos ou o sistema de saúde colapsado, como houve de fevereiro a maio no país”, aponta. Nesta terça-feira, dia 10 de agosto, a média móvel de mortes ficou em 899 e a de casos em 34.474.  

Naime atribui a melhora a “um verdadeiro milagre das vacinas”, mas alerta que a transmissão do vírus ainda representa uma preocupação para a saúde pública. “O objetivo das vacinas é reduzir a gravidade dos casos e atenuar o número de pessoas que vão precisar de hospitalização e que podem ir a óbito por Covid-19. Mas ela não vem no intuito principal de reduzir a transmissão. Principalmente no contexto dessas variantes mais transmissíveis”, afirma o professor da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), da Unesp, apontando, em especial, a variante Delta.

Nas últimas semanas, alguns países em estágios avançados de vacinação tiveram que voltar atrás quanto à liberação do uso de máscaras por conta de novos surtos de infecção, causados pela variante que foi detectada pela primeira vez na Índia. “Estudos recentes mostraram que pessoas vacinadas têm a mesma chance de aquisição e transmissão do coronavírus que pessoas não vacinadas. Isso para o caso de vacinas Pfizer, que tem uma eficácia maior em termos de diminuição da transmissão”, alerta Naime. Para ele, durante esse período de flexibilização das atividades, seria fundamental reforçar ainda mais a mensagem de que a manutenção do distanciamento social, o uso de máscaras e a higiene das mãos ainda são obrigatórias e essenciais.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) registrou um número alto de infecções pela variante Delta em indivíduos já vacinados. O resultado foi uma reversão na orientação ao público quanto à liberação do uso de máscaras, com direito a nota oficial da Casa Branca. Um dos eventos cruciais para esta decisão foi um estudo da entidade a respeito de um surto de Covid-19 nas festas do 4 de julho em uma cidade do Massachusetts. Dos 469 casos positivos identificados pela pesquisa, quase três quartos dos casos ocorreram em pessoas totalmente vacinadas. A variante Delta foi encontrada em 90% dos casos.

O contexto de São Paulo

No estado de São Paulo, a variante Delta ainda não é tão representativa. Segundo o último boletim epidemiológico da Rede de Alerta de Variantes, coordenada pelo Instituto Butantan, a variante P.1, ou Gama, ainda é a predominante no estado, representando quase 90% das variantes identificadas, enquanto a incidência da variante Delta (B.1.617.2) ainda é de apenas 0,54%. 

A Rede integra um conjunto de pesquisadores e laboratórios do estado com o objetivo de identificar as linhagens do SARS-CoV-2 em circulação na população paulista. O monitoramento, que começou em janeiro de 2021, está em sua 29a semana e já sequenciou mais de 15 mil genomas completos de casos positivos. 

Surgida em Manaus no final de 2020, a variante Gama se espalhou pelo país, exercendo papel decisivo para o surgimento de uma segunda onda e para o aumento expressivo no número de óbitos por Covid-19 no país. Uma das pesquisadoras que integram a Rede de Alerta de Variantes, Rejane Grotto reforça a preocupação com o risco de a variante Delta se sobrepor à Gama, nem tanto pela sua mortalidade, mas por conta de sua maior capacidade de transmissão. Soma-se a isso, o fato de uma parcela grande da população ter recebido apenas a primeira dose da vacina ou dose nenhuma. 

“Quanto mais gente deixar janelas abertas para a doença, seja por um esquema vacinal incompleto ou por descaso com as medidas de proteção, maior a chance de que o indivíduo contraia uma variante e aconteçam mutações”, alerta a pesquisadora, que é responsável pelo Laboratório de Biologia Molecular do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, em Botucatu. “Com o esquema vacinal completo, quando o vírus se replicar, o organismo vai combater e a chance dele mutar é menor. O sistema vacinal incompleto deixa brechas para escape e nessas brechas podem surgir novas variantes”. 

Além das medidas de proteção, Rejane afirma que o processo de flexibilização deve levar em conta a particularidade de cada município e de cada atividade em si. Ela cita como exemplo a reabertura das escolas e o retorno de 100% dos alunos à sala de aula. “É mais simples retomar o ensino fundamental em que a grande maioria dos alunos é da mesma cidade do que quando você considera o contexto da universidade, por exemplo, em que nós temos alunos de todo o Brasil chegando cada um de uma região. É um cenário mais difícil de ser controlado”, explica.

Embora o efeito da vacinação nos números da pandemia seja incontestável, os especialistas concordam que não é seguro fazer uma perspectiva de quando teremos um ponto final na pandemia, uma vez que as suas variáveis são dinâmicas, tanto quando falamos no hospedeiro, o ser humano, ou quanto ao próprio vírus. Naime explica que um grande evento disseminador pode alterar as previsões tanto quanto uma mutação que crie uma nova variante de atenção. “Uma coisa que a pandemia ensinou para gente é fazer projeções a curto prazo. Qualquer projeção a médio e longo prazo corre o risco de ser um tiro no pé”, alerta. 

Imagem acima: iStock.