No Brasil, impacto econômico da pandemia será forte e duradouro

Para retornar à normalidade, será preciso reorganizar a cadeia produtiva e o mercado de trabalho, especialmente para as mulheres

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A pandemia do coronavírus assumiu no Brasil a dimensão de uma catástrofe humanitária. Centenas de milhares de pessoas perderam a vida, outras tantas apresentam as sequelas de uma lenta recuperação, e milhões foram levados ao desemprego e à faixa da pobreza extrema. 

O drama se aprofunda pelo fato de que experimentamos quatro grandes crises simultâneas e interconectadas: sanitária, econômica, política e comportamental. São diversos os fatores que as retroalimentam, tais como o negacionismo, a necropolítica, a gestão pública mórbida e ineficiente, a indiferença com o próximo e a falta de coordenação no nível federal.  

A crueldade da pandemia de Covid-19 tem deixado marcas profundas na história da humanidade, com quase 4 milhões de vidas perdidas. Em nenhuma das crises sanitárias do século 21 o número de mortes foi tão grande, ou exigiu do Estado a injeção de recursos financeiros em escala tão elevada com o fim de reduzir os impactos econômicos e o agravamento das desigualdades sociais. 

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2020 os países do G-20 aportaram US$ 25 trilhões em suas economias por meio de medidas de estímulos fiscais (US$ 15,23 trilhões) e de estímulos monetários (US$ 9,32 trilhões). Os déficits fiscais médios, ou seja, a diferença entre as receitas orçamentárias dos países e suas receitas, medidos como proporção do PIB, atingiram em 2020 11,7% no caso das economias avançadas, 9,8% nas economias de mercado emergentes e 5,5% para países em desenvolvimento de baixa renda (FMI, 2021). 

Cenário internacional 

A fim de reduzir os impactos da recessão econômica e as altas taxas de desemprego, os governos de vários países utilizaram o espaço fiscal, que é o limite em que é possível oferecer estímulos fiscais sem que haja comprometimento da solvência fiscal e da solidez do balanço patrimonial do setor público (ou seja, sem comprometer o funcionamento da máquina pública e a capacidade de honrar seus compromissos). 

Nos países de economia avançada os estímulos fiscais, medidos na comparação com seu PIB, foram bastante expressivos em 2020, como mostram os casos do Japão (44%), Itália (42,3%), Alemanha (38,8%) e Reino Unido (32,4%). No caso dos países emergentes e de renda média, os pacotes de estímulos, embora proporcionalmente menores, também foram bastante robustos, como é o caso do Peru (15%), Brasil (14,5%), Polônia (13,1%), Tailândia (12,6%) e Turquia (10,1%), conforme os dados dos gráficos 1 e 2. 

Gráfico 1

Gráfico 2

Os resultados apresentados no Gráfico 3 mostram que, mesmo com os polpudos estímulos fiscais feitos em 2020, não foi possível evitar a recessão econômica mundial, com forte queda no nível de atividade econômica e redução drástica do PIB em praticamente todos os países. 

No Brasil, o crescimento econômico ocorrido no segundo semestre de 2020 surpreendeu e permitiu uma retomada agregada da economia em “V”, o que suavizou as previsões de queda superior a 9% no Produto Interno Bruto (PIB)1. A reversão parcial das expectativas, no entanto, não evitou uma das maiores retrações econômicas e sociais da história do país. O PIB brasileiro em 2020 fechou em R$ 7,4 trilhões, o que representou uma queda de 4,1% em relação a 2019. 

Gráfico 3

PIB Real 2020 de países selecionados em %

Fonte: FMI, World Economic  Outlook, abril 2021.
 

Como o governo federal buscou responder à crise? 

Para reverter o forte processo de retração econômica, o Governo Federal tem adotado um conjunto de políticas anticíclicas, por meio de medidas destinadas a fomentar a produção e a manutenção do emprego. 

A resposta fiscal do governo brasileiro foi bastante significativa em 2020, embora tenha ocorrido em velocidades muito distintas para atender o sistema financeiro (promovendo suporte à liquidez e ao crédito) e as famílias mais vulneráveis (com o auxílio emergencial). As medidas utilizadas pelo governo federal para reduzir os efeitos econômicos da pandemia apoiaram o setor bancário, as empresas, os empregos, as pessoas mais vulneráveis e os governos estaduais, conforme exposto no Quadro 1. 

Os recursos financeiros destinados pelo governo federal para as medidas para amenizar os danos da Covid-19 alcançaram R$ 604,75 bilhões em 2020, dos quais foram gastos apenas R$ 524,02 bilhões, deixando em caixa o montante de R$ 81 bilhões. Dentre as medidas, destaca-se o montante de R$ 322 bilhões separados para o auxílio emergencial, porém dos quais apenas R$ 293 bilhões foram efetivamente liberados em 2020 (ver o Quadro 1 abaixo).  

Do total de R$ 81 bilhões que foram separados, mas não chegaram a ser executados em 2020, R$ 70 bilhões destinavam-se a três programas: R$ 29 bilhões do Auxílio Emergencial, R$ 18 bilhões do Programa BEm e R$ 22 bilhões para a aquisição de vacinas. 

Além das medidas elencadas no Quadro 1 o Banco Central anunciou logo no início da pandemia um pacote de estímulos monetários/creditícios para garantir maior liquidez da economia (R$ 546 bilhões) e redução das exigências de capital, permitindo às instituições financeiras maior alavancagem de crédito (potencial de R$ 1,157 trilhão). Ao longo do ano de 2020, outras medidas foram adotadas para facilitar as renegociações de prazos de empréstimos e de financiamentos para pessoas físicas e jurídicas, como forma de reduzir as possibilidades de inadimplência com o sistema bancário e responder à elevação da preferência pela liquidez. 

Comércio e serviços, os setores mais afetados 

A pandemia de Covid-19 afetou de maneira expressiva a atividade econômica, impondo um padrão de gestão do tipo stop and go, isto é: quando pioram os dados de saúde, fecha-se a economia; quando os dados melhoram, ela é reaberta. Porém, a intensidade de seus efeitos variou bastante em cada setor.  

Se dividirmos a economia em grandes grupos de atividade para análise, veremos que os setores de serviços e de comércio foram os mais afetados pela pandemia, devido às medidas de isolamento social para diminuir o ritmo de contágio pela Covid-19. As perdas no faturamento do comércio resultaram na redução de 1,7 milhão de postos de trabalho em 2020, dentre um total de 16 milhões de pessoas que trabalhavam no setor no período imediatamente anterior à crise. 

Outro setor bastante afetado pela pandemia foi o de serviços, que representa cerca de 63% do PIB brasileiro e 68% do emprego. Dentre os grupamentos de serviços, destacaram-se pelo resultado negativo os serviços de Alojamento e Alimentação, que apresentou uma redução estimada em 21,3% na comparação com 2019, o que significou a redução de 1,2 milhão de postos de trabalho. Antes da pandemia, essa atividade tinha crescimento médio anual de 5,3%, e respondia por parte importante da ocupação de trabalhadores informais no segmento de serviços de alimentação. Os serviços de empregados domésticos tiveram a segunda maior queda em 2020: 19,2%. A atividade passou a contar com 5,1 milhões de trabalhadores em 2020, o que representa redução de 1,2 milhão de postos de trabalho em relação a 2019. A queda nos rendimentos das famílias e o home office explicam parte significativa das demissões de profissionais que atuavam nesta área. 

Entretanto, também no setor de serviços, houve exceções que apresentaram um desempenho muito positivo durante a crise, como nos segmentos de Intermediação Financeira e de serviços Imobiliários. 

Os impactos sobre o mercado de trabalho 

A análise dos impactos da Covid-19 no mercado de trabalho, com base nos dados do trimestre móvel encerrado em março de 2021 da Pnad Contínua, mostra que o Brasil possuía 14,8 milhões de pessoas desempregadas, 33,9 milhões de trabalhadores informais e 6 milhões de desalentados, isto é, aqueles que desistiram de buscar uma vaga no mercado de trabalho, deixando, portanto, de ser considerados na contagem de desempregados. 

Os trabalhadores mais afetados foram aqueles com menor grau de instrução que atuam em subocupações (que são os que trabalham menos de 40 horas em suas ocupações, e que gostariam de trabalhar mais horas) ou como informais. A forte precarização das relações trabalhistas, anterior à crise pandêmica, favoreceu a adoção do regime de trabalho intermitente na economia brasileira, uma modalidade na qual o funcionário trabalha apenas algumas horas por semana, o que não apenas reduz a jornada de trabalho, mas também implica significativas perdas de renda. 

Já a análise da crise sob a perspectiva de gênero revela que os custos da pandemia recaíram mais fortemente sobre as mulheres do que sobre os homens. O fechamento das escolas e das creches, que viabilizavam a dupla jornada, impôs às mulheres o cuidado dos filhos, assim como a necessidade de cuidados com os idosos da família. 

A pandemia trouxe efeitos devastadores para a população economicamente mais vulnerável, assalariada ou que exercia trabalhos informais, na qual o percentual de negros é expressivo. Nesse sentido, essa população foi duplamente afetada, pela perda da renda e pela impossibilidade de fazer o distanciamento social. 

De acordo com a revista The Economist, em tempos de pandemia o sofrimento variou muito conforme a cor da pele. Um hispano-americano de 40 anos tem 12 vezes mais probabilidade de morrer de Covid-19 do que um norte-americano branco da mesma idade. Ao passo que, em São Paulo, os brasileiros negros com menos de 20 anos têm duas vezes mais chances de morrer nessa faixa etária do que os brancos (The Economist, 2020). 

O recrudescimento da crise sanitária no início de 2021, com a emergência de uma segunda onda de contaminação pela variante P1 (cepa de Manaus), impôs definitivamente ao Brasil uma tragédia sanitária amplamente anunciada e sem precedentes, com aproximadamente 4 mil mortos diariamente, como estampou o jornal francês Libération em sua capa do último dia 15 de abril (Covid La Tragédie Brésilienne). Diante de um quadro de ampliação do contágio e do colapso do sistema de saúde, tornou-se necessária a adoção de medidas ainda mais restritivas de isolamento social para combater a doença e achatar a “curva de contágio”, o que reverberou diretamente sobre o ritmo da atividade econômica. 

Como será a recuperação da economia no mundo pós-pandemia? 

A superação da crise econômica imposta pela Covid-19 está diretamente associada à circulação do vírus, o que implica a articulação de dois tipos de ações: a) dar condições econômicas efetivas para que a população faça isolamento social; e b) executar um plano nacional de imunização com eficácia, garantindo a vacinação do conjunto da população o mais rápido possível. 

As incertezas quanto ao processo de recuperação da economia brasileira são elevadas, considerando o agravamento da crise sanitária (novas cepas), o ritmo da imunização da população, o risco de estagflação, a necessidade de restrições da mobilidade intermitentes, as incertezas e restrições do quadro fiscal, o risco de desancoragem das expectativas inflacionárias e o processo de normalização da política monetária. 

Num ambiente de elevada incerteza e de águas turvas, as únicas ações nobres são aquelas associadas à luta pela vida humana e a solidariedade. Estranhamente, parte da sociedade brasileira se manifesta com eloquência para criticar a implementação do lockdown, porém faz um silêncio sepulcral em relação às vidas ceifadas. 

A certeza que podemos ter sobre o choque econômico gerado pela Covid-19 é que as incertezas e os equívocos na gestão da pandemia tornarão seus efeitos expressivos e duradouros. Não basta retomar as taxas de crescimento econômico; é necessário reorganizar as cadeias produtivas e o mercado de trabalho, especialmente para as mulheres. 

O historiador israelense Yuval Noah Harari, num artigo publicado recentemente no Financial Times para analisar as lições de um ano da Covid, nos coloca uma questão importante para reflexão, quando afirma taxativamente: “Podemos vencer o vírus, mas não temos certeza se estamos dispostos a pagar o custo da vitória”

Crédito da imagem acima: RHJ – Ishutter