Embora o foco do combate à Covid-19 esteja na área da saúde, em especial na virologia e na epidemiologia, a pandemia impõe uma série de desafios paralelos, em especial para a gestão pública das grandes cidades. O sistema funerário paulistano, por exemplo, precisou se adaptar a um aumento expressivo na sua demanda para evitar um colapso, tal como ocorreu no Equador e na Itália.
Em abril de 2020, transcorrido pouco mais de um mês após o primeiro caso de Covid-19 no Brasil, uma comissão multidisciplinar foi convocada pela Defesa Civil do estado de São Paulo para analisar o processo funerário da capital e propor mudanças que o preparasse para o inevitável aumento no número de mortes. Entre os integrantes do grupo estava o engenheiro Irineu de Brito Junior, professor da Unesp no câmpus de São José dos Campos.
A primeira ação do grupo foi representar em um fluxograma (ver imagem abaixo) todo o processo funerário passo-a-passo e dimensionar o que havia de recursos. Em seguida, foram realizadas simulações em diferentes cenários de óbitos diários, usando o software ARENA (versão 16), cedido voluntariamente pela empresa Paragon Decision Science. “É um esforço de tentar entender o que está acontecendo colocando os dados no papel e desenhando os fluxos”, afirma Irineu.
A observação dos fluxos apontou uma margem para otimizar o uso dos automóveis. Antes da pandemia, explica o professor do curso de Engenharia Ambiental da Unesp e especialista em logística humanitária e gestão de desastres, era permitido realizar velório de um falecido num cemitério e o sepultamento em outro diferente. Isso fazia com que o processo demorasse mais, e exigia um duplo uso do carro funerário. “Logo notamos que o transporte seria um grande gargalo para o processo e sugerimos que o velório para mortes não relacionadas à Covid-19 acontecesse obrigatoriamente no mesmo cemitério.
Apenas com esse ajuste, o sistema, que suportava por volta de 280 óbitos por dia, conseguiu se ajustar para atender uma demanda de 400 óbitos.
A análise da comissão sugeriu ainda outras medidas, como a ampliação do funcionamento dos cemitérios por 24h por dia e o uso de refletores para sua iluminação.
A experiência foi relatada no artigo Managing funerary systems in the pandemic: lessons learned and an application of a scenario simulation in São Paulo City, Brazil (Gestão de sistemas funerários na pandemia: lições aprendidas e aplicação de uma simulação de cenário na cidade de São Paulo, Brasil, em tradução livre), publicado no Journal of Humanitarian Logistics and Supply Chain Management.
A simulação de eventos discretos (SED), explica o professor, é uma técnica relativamente simples e amplamente aplicada na indústria para simular desde linhas de produção até a dinâmica de filas de bancos. “O destaque do artigo foi para a inovação do tema, uma vez que na literatura não havia trabalhos sobre a SED aplicada ao sistema funerário”, afirma.
As ações sugeridas à prefeitura pelo grupo também incluíram também a otimização da dinâmica de transporte, a redução do período de duração dos velórios para óbitos não relacionados à Covid-19 de 24 horas para uma hora, além da já mencionada obrigatoriedade da realização de velórios e sepultamentos no mesmo cemitério.
Segundo a prefeitura, outras medidas preparatórias também incluíram a contratação de 220 sepultadores para auxiliar os profissionais efetivos, o adiantamento da compra de 38 mil urnas funerárias e a locação de mais de 20 carros para o transporte funerário e mais 12 carros cedidos pelo IML (Instituto Médico Legal) e SVO (Serviço de Verificação de Óbito).
O convite para integrar a comissão surgiu de um relacionamento anterior que o câmpus da Unesp em São José dos Campos estabeleceu com a Defesa Civil, para quem é oferecido anualmente um curso de extensão em logística aplicada a operações humanitárias e desastres naturais.
“Essa interação é importante não apenas em momento de crise, mas também em períodos de tranquilidade. Muitas vezes numa crise as demandas surgem muito rápido e não há tempo de procurar alguém. Então você busca as parcerias que já estão estabelecidas”, destaca o pesquisador.
A princípio, a demanda colocada em março, nos primeiros momentos da pandemia, era montar a logística para abastecimento humanitário de populações vulneráveis no estado de São Paulo, uma área em que Irineu atua internacionalmente. Contudo, entre março e abril surgiram as primeiras notícias de colapso no sistema funerário na região da Lombardia, na Itália, e depois em Guaiaquil, no Equador. As notícias estimularam a formação da comissão multidisciplinar para analisar a capacidade funerária do município e prepará-la para um provável aumento dos óbitos. Além de acadêmicos, também integraram o grupo representantes da Polícia Militar, do Instituto Médico Legal (IML), subordinado à Polícia Civil, da secretaria da Saúde, do Exército e Aeronáutica e do serviço funerário da cidade.
A rápida formação da comissão e o diálogo entre seus membros é apontado pelo professor como um dos principais fatores para a resposta eficiente do sistema funerário do município. Nos primeiros meses, o grupo se reunia duas vezes por semana para monitoramento dos dados da pandemia e atualização do modelo. “Quando falamos em desastres como inundações e deslizamentos de terra, já existem equipes treinadas e equipamento disponível para ação. No caso da pandemia, nós não estávamos preparados. Aprendemos na marra, trocando o pneu com o carro andando”, explica o docente da Unesp.
Crédito da foto: Prefeitura Municipal de São Paulo