Minhas reminiscências me trazem de volta a 1984. Ano que está no passado e, literariamente, no futuro. Adolescente, eu vivia os estertores da ditadura. O palco é Porto Alegre, o antigo Colégio de Aplicação da UFRGS, enclave progressista numa sociedade ainda muito conservadora.

Imaginem a cena: um jovem magro, espinhento, imerso em suas lutas pela descoberta de sua identidade.

Essa fase da minha existência foi marcada pela mão invisível do acaso. Meu pai, quando eu nasci, decidiu homenagear um amigo que, nunca se soube ao certo quem, respondia pela alcunha de Ney. E, após disputa com minha mãe, venceu duas batalhas. Escolheu meu nome minha mãe queria Marcelo e extirpou o sobrenome dela da formulação final: “Ney Lemke”.

Essa escolha, de certa forma inócua, gerou impactos importantes na minha adolescência. Por três fatores: o nome Ney rimava com gay, havia gays famosos com esse nome (Matogrosso, Latorraca e Galvão) e, finalmente, meu número na chamada era 24.

A essa conjugação de fatores se acrescia mais um: o personagem Capitão Gay, do Jô Soares, fazia estrondoso sucesso na TV. Ele e o grande Carlos Sueli faziam chacota com os gays obesos do mundo.

Mesmo a mais paciente das criaturas humanas tem um limite na sua capacidade de ouvir chacotas. Eu, adolescente, estava bastante longe deste ideal. E assim tentava aguentar com galhardia quando cantavam parabéns para mim, no dia 24 de todos os meses, as óbvias variantes com a música do Capitão Gay e o meu nome e o que chamaríamos de bullying nos dias de hoje. Obviamente, eu respondia com graus variados de intensidade a essas provocações, causando meus estragos nos demais.

Minha mãe, para me consolar, costumava dizer que preferia “ter um filho gay a um filho maconheiro”. A maconha era ainda resquício dos arroubos hippies da década de 1970 e seguia inspirando terror nas mães, que viam risco até mesmo em inocentes balinhas vendidas nas carrocinhas de pipoca.

No Rio Grande do Sul da época, o adjetivo “fresco” não era uma qualidade de uma leguminosa. Era uma ofensa reservada aos causadores de caso, aos que demonstravam ter sentimentos e aos gays. Em geral se dizia “não seja fresco”, “deixa de frescura”. No Sul da época, nem mesmo para as meninas era tolerada a “frescura”.

Assim, apesar de meu desejo, ainda que tímido, ser exclusivamente direcionado aos corpos pré-púberes de minhas colegas, usufruí da sensação clara de ser discriminado. Os docentes tentavam controlar e, sob muitos aspectos, conseguiram minimizar esses estragos.

A situação só se mitigou quando surgiu um novo aluno. Branco e alemão, como eu. Muito inteligente e contestador, desde sempre, deixou pouca ou nenhuma dúvida com relação às suas preferências. Sabe-se lá onde comprava sua calça de moletom roxo. Chocava os espíritos de todos nós. Daquele dia em diante, tive alguém para dividir as porradas.

Nessa era, dura e triste, surgiu a Aids. Que “oportunamente” foi chamada de câncer gay. Fomos vendo, ao longo dos anos, vários heróis serem consumidos na pandemia da Aids. A necessidade de reação levou à organização para fazer frente a essa política de extermínio, culminando no Dia do Orgulho Gay (Gay Pride), que começou a mudar essa história, ainda que sutilmente.

Não é de se estranhar que, com o retorno dos céus plúmbeos, volte-se a discutir a possibilidade de se exercer livremente a discriminação com qualquer um que não reze pela cartilha dos valores cristãos. Os gays são um inimigo visível, sua discriminação é amplamente amparada na Bíblia, que inclusive inspira a etimologia da palavra sodomia. O kit gay, a associação dos gays com pedofilia e até mesmo a invenção da fake news que a vacina transforma “homens de bem” em gays foram usados na guerra ideológica.

A muitos espíritos o movimento LGBTQIA+ parece datado, irrelevante ou exagerado, em resumo, “frescura”. Pois bem, eu presenciei na Unesp muitos eventos de discriminação de pessoas com orientações sexuais que não se encaixam nas delimitadas pela visão da família tradicional. Esses eventos, além de tristes, muitas vezes impactaram a imagem da instituição e cercearam a livre discussão de ideias.

Longe de ser datada, a luta contra a discriminação é essencial hoje. Se não nos levantarmos para defender quem é discriminado, corremos o risco real de passar a viver em uma sociedade autoritária na qual universidades não sejam toleradas.

A Monja Coen nos sugere um caminho interessante: ela propõe não a tolerância às diversas orientações sexuais, mas a sua aceitação completa. Enquanto não houver uma aceitação tranquila e profunda, hay que pelear.

Ney Lemke é físico, professor do Departamento de Física e Biofísica do Instituto de Biociências do câmpus de Botucatu e coordenador da CTInf (Coordenadoria de Tecnologia da Informação) da Unesp

Na imagem acima (Kira-Yan/iStock), a Rainbow Flag, símbolo do movimento LGBTQIA+